por André Felipe de Lima
“Não gosto de fazer nada que não esteja ligado ao futebol. Aliás, são duas as coisas que mais gosto de fazer na vida: cozinhar e tratar de futebol”. Assim, o sr. Elba de Pádua Lima, que atendia pelo singelo apelido de “Tim”, ia levando a vida. Um camarada completamente desprendido dos bens materiais. Jamais ligou muito para dinheiro. Davam para ele um fogão ou uma bola de futebol e estava tudo certo. Sim, Tim era simples e foi com essa simplicidade que se tornou um dos maiores nomes da História do futebol brasileiro, tanto como jogador, cujo estilo peladeiro foi inconfundível, quanto como marcante técnico, cuja (a boa) malandragem rendeu hilariantes histórias do dia a dia dos boleiros.
Fumante inveterado, Tim era filho do seu Vargas de Lima, pai que perdeu quando tinha apenas seis anos, e de Teresa de Lima, que, sozinha, sustentou-o e as suas quatro irmãs. Casou com dona Tomires com quem teve duas filhas, Miriam e Valéria. Foi craque também na cozinha, onde, gabava-se, jamais se apertou. Tim, um eclético. Suas feijoadas, macarronadas, cozido e dobradinhas eram insuperáveis. Como ele, na meia cancha da Seleção Brasileira ou do Fluminense. Ali, pelo meio do campo, ninguém o superou em seu tempo.
Poderia ter sido o herói do escrete na Copa do Mundo de 1938, na França, mas, por pura birra, o técnico Ademar Pimenta preferiu escalar Perácio, que, embora bom jogador, não chegava nem a um por cento do que jogava Tim. A implicância do treinador com o craque foi tão intensa que chegou a apelidá-lo de “Lero-Lero” porque o achava “conversa fiada” ou um “finge que vai, mas não vai”. Naquela Copa, Tim só entrou em campo contra a antiga Tchecoslováquia, que o Brasil derrotou por 2 a 1. Jogou uma barbaridade e encantou a imprensa local.
Muitas décadas depois, Pimenta veio com um papo meio torto, alegando que o Tim e o ponta-esquerda Patesko passaram da conta na birita, quando o navio que os levavam à Paris, para a Copa do Mundo, fizera escala em Salvador. Pimenta os queria fora do elenco imediatamente. Dizia que havia “privilégio” para ambos e que até vinho ou chope bebiam nas refeições. Tentou cortá-los, mas houve coragem?
Tim era o mais paparicado dos jogadores pelos jornalistas que acompanhavam a delegação até Paris. Leônidas da Silva, que se tornaria o grande craque daquela Copa ao lado do italiano Meazza, ainda não era o “Diamante Negro”. Domingos da Guia, esse sim, era o único campeoníssimo internacional naquele navio. Havia sido campeão na Argentina, com o Boca Junior, e no Uruguai, com o Nacional. Mas, no Brasil, Tim era o “cara”. Menos para Ademar Pimenta, que, segundo o biógrafo e jornalista Marcos de Castro, teve a cara de pau de pedir para o zagueiro Zezé Procópio “quebrar” o Tim durante um treino em Salvador, provavelmente após a “bebedeira” e “comilança” promovidas por Tim e Patesko.
Na primeira tentativa de sarrafo em Tim, Zezé Procópio recebeu imediatamente o revide. Pimenta o repreendeu. Tim era malandro e logo manjou que aquilo não era obra gratuita do companheiro de time. “Apertou” o Zezé e descobriu que o mandante tinha sido o Pimenta. Há poucas semanas da estreia na Copa do Mundo, o “El Peón” (apelido que recebera dois anos antes dos fãs argentinos) foi tirar satisfação com o treinador. Pimenta “amarelou”. Não havia como expulsar Tim da delegação. O cara era o queridinho dos jornalistas. Pegaria mal à beça. Seria um escândalo. O técnico decidiu, então, barrá-lo do time. Eis o desastre.
Muito anos depois, o ex-zagueiro Nariz, titular no escrete de Pimenta, “acusou” Tim de ser o grande “culpado” pela derrota frente à Itália, na semifinal: “Isso mesmo. Se ele [Tim] tivesse jogado contra a Itália, nós não perderíamos”. Nariz estava coberto de razão. Romeu Pelicciari, outro companheiro de Tim nos ataques da Seleção — inclusive na Copa de 38 — e do Fluminense, foi seu amigo até o último minuto. Sobre Tim, que Romeu costumava receber no restaurante de massas que mantinha em São Paulo, declarava com imensa admiração: “Às vezes tínhamos a impressão de que o Tim amarrava a bola nos pés.”
Sim, Romeu estava certo. Tim, geralmente com o seu indefectível bonezinho branco, matava a bola no peito como se o dorso fosse aveludado. A bola rolava macia e tranquila até os pés e ali, neles, transformavam-no diabo em forma de gente… e futebol. Dribles curtos e desconcertantes. Lançamentos sobrenaturais de mais de trinta, quarenta metros. Quem viu e a mim contou dizia: “Tim era impressionante”. Todas as jogadas praticamente passavam por ele. Isso aconteceu tanto na Seleção Brasileira quanto no Fluminense, com o qual Tim, por pouco, não foi hexacampeão carioca. Sim, o Fluminense sob a batuta do maestro foi campeão carioca em 1937, 38, 40 e 41. Em 1936, Tim ainda não estava nas Laranjeiras, mas o clube foi o campeão carioca. A extraordinária saga de troféus dos tricolores foi interrompida em 1939, quando perderam o título para o Flamengo, que estava voando baixo, tendo na linha Leônidas da Silva e Domingos da Guia sensacionais. Mas certo estava o grande ídolo argentino Guillermo Stábile, craque na Copa de 1930, que assim definiu Tim: “O meia esquerda que o Brasil ainda não compreendeu.”
ALTIVO E CRAQUE DESDE MOLEQUE
Tim foi uma criança feliz, embora de família bastante humilde. Quando pequeno, a irmã mais velha, Valdívia, chamava-o de “Ti”. O acréscimo do “m” ao apelido só aconteceria depois, nos times que defendeu. Foi, quase sempre, o dono da palavra final em qualquer discussão, seja em peladas, ou nos clubes de futebol que treinou ou defendeu como jogador. Malandramente escondia o jogo como poucos. Manha que levou dos gramados para a profissão de técnico. Tanto que “El Peón” sempre cultivou (e muito bem…) a louvável fama de “estrategista”. E foi mesmo. Sagacidade e altivez que desenvolveu ainda moleque, em Rifaina, interior de São Paulo, onde nasceu no dia 20 de fevereiro de 1916. “Dizer que nasci talhado para ser craque é uma verdade clara como águas límpidas dum regato. Garoto ainda tracei meu futuro. Jogando bola na rua havia uma coisa que me deixava um bocado convencido: era na hora do par ou ímpar. Queriam me escolher ao mesmo tempo. Brigavam. Era o diabo! Alguns meninos chegavam a roubar frutas, me dar ‘cola’ durante as aulas, enfim, me ‘chaleravam’ [o mesmo que “puxar o saco”, “babar” de inveja e por aí vai…] escandalosamente afim de que eu nunca mudasse de time. Fui um ídolo em guri para a garotada da minha rua”. Tim foi um peladeiro de raiz. Essência da qual jamais se livrou. Ainda bem.
Quando começou a se destacar entre os meninos de sua idade, as peladas tinham de ser entre os mais velhos. Aí, meu Deus, Tim parecia de outro mundo. “Engraçado. O temor de mamãe era que eu poderia me dar mal enfrentando aqueles galalaus. Pois eram justamente aqueles barbados que eu mais facilmente dominava. É a velha história: maior o coqueiro, maior o tombo… e como eu driblava firme os grandalhões!”
Quando este jornalista era rapaz, morava em São Paulo e trabalhava como contínuo no escritório de uma empresa do ramo de Café. Havia lá um coroa que se chamava “Machado” e dizia ser irmão de outro “Machado”, este verdadeiramente famoso. Era o Machado zagueiro da Seleção de 38 e do poderoso Fluminense quase “hexa”. O Machado que conheci comentava sempre eufórico — e isso ficou marcado em minha memória —ter sido amigo do Tim e que El Peón, no campo, ostentava um drible curto impressionante. Escondia a bola do marcador de forma incomparável. O Machado menos famoso garantia ter jogado bola com o Tim. Eu acreditava e, como diria o Tim, ‘chalerava’ o Machado.
Até o último dia de vida, Tim respirou o futebol, mas sob uma condição irrevogável: que fosse o futebol vistoso, poético e plástico. Os detratores do futebol arte (e já existiam naquele tempo) tratavam de azucriná-lo com apelidos menos honrosos. Para eles, Tim era um “dançarino sem damas” ou “Rebeca”, e isso jamais foi esclarecido. Tim tampouco entendia o porquê do tal apelido “Rebeca”. Sequer ligava para o papo furado de quem dizia conhecer sobre futebol, mas não entendia bulhufas. Gostava mesmo era de narrar, com extremo orgulho, o gol mais bonito que assinalara ao longo da carreira. Marcou-o contra o Internacional de Porto Alegre.
O lance foi assim: Santamaria — um argentino importado do River Plate — centrou a bola e Tim a recebeu. Ao seu lado, como carrapato, o zagueiro colorado, que recebeu de brinde um lençol de El Peón. Veio o segundo zagueiro e também foi “coberto” pelo lençol de Tim. O desesperado goleiro Penha correu na direção do craque. Erro fatal, ingênuo, o coitado. Com um toque de gênio, Tim o encobriu e marcou um gol de placa. A torcida — gabava-se Tim sempre que descrevia o lance—ovacionou-o por mais de um minuto.
O jogador foi treinador. E dos melhores que se teve notícias até hoje. Quem discordar definitivamente não entende patavina de futebol. Mas a intolerância de Ademar Pimenta parecia persegui-lo obsessivamente. Tim seria o técnico da Seleção na Copa de 1966. João Havelange, na época o mandachuva da antiga CBD (Confederação Brasileira de Desportos), foi quem o vetou, mas, com aquela conversa mole que o caracterizou, emendou a seguinte desculpa, algo muito semelhante ao que o Pimenta alegara aos jornalistas em 1938: “Dentro de um princípio estabelecido por mim, de acordo com uma norma de trabalho, eu jamais poderia solicitar a presença de Tim porque entendo que tenho de ficar coerente com a Lei. Se Tim tivesse diploma da Escola Nacional de Educação Física, é possível que eu o tivesse ao meu lado. Mas eu me subordinei à Lei e assim é possível que tenha feito uma injustiça.”
“PSICOLOGIA PELADEIRA”
Ora essa. Tim foi vítima de sua independência e genialidade bruta. Não era letrado (mal frequentara um colégio, afinal), mas tinha uma inteligência fora do comum e muito acima da média. Um dos maiores “QI’s” que o futebol brasileiro já viu. Como treinador brilhou em vários clubes. Tinha um humor ácido. Foi um verdadeiro “psicólogo peladeiro”. Desviava-se das perguntas dos repórteres com calma e picardia. São muitas as situações narradas por vários cronistas, como Sandro Moreyra e Aristélio Andrade. Tim era um pândego refinadíssimo, capaz de deixar os jornalistas com a calça arriada. Leiam alguns diálogos e tirem suas próprias conclusões:
— Tim, cadê o Zé Roberto (então ponta-de-lança do Coritiba)? Por que ele não veio com a delegação?
— Ora, meu filho, você não sabe? Zé Roberto está com caspa.
Outra pérola foi a seguinte:
—Tim, como vai jogar o Coritiba?
— Ora, meu filho, de calção, camisa, meias e chuteiras.
Outra também teria ocorrido nos tempos de Coritiba. Lá pelas tantas do jogo, o ponta-esquerda Aladim foi expulso e o time ia mal em campo. O afoito “apolinho” corre para o banco do Coxa e indaga:
— Tim, o que falta ao Coritiba?
— Você não está vendo, meu filho? Falta o Aladim. Ou você não viu a expulsão?
Tim reclamava que as perguntas dos repórteres eram feitas nas horas mais inconvenientes, quando estava ligadão no jogo imaginando o que faria para reverter o cenário ruim em campo.
Tim jamais foi descortês ou grosseiro com jornalistas. Com aquela fala mansa, jamais perdeu (ou quase) a paciência e, claro, a piada:
— Tim, o Coritiba vai se classificar?
— E eu estou de turbante, não é? Quer dizer que eu não sou pitonisa (sacerdotisa grega e profética), não é mesmo?
Em 1970, Tim era o técnico do Vasco. Silva “Batuta”, por sua vez, uma das feras do time. O ponta-de-lança, que se achava mais malandro que o Tim, tentou arriar uma cascata para cima do técnico com o papo de que, no dia seguinte,teria de chegar tarde ao treino para “experimentar” um terno no alfaiate. Malandro com mil encarnações a mais que Silva, Tim emendou: “Ótimo, vou com você. Preciso mesmo de um alfaiate.”
Silva teve de levá-lo a tiracolo e, constrangido, ouviu um assustado alfaiate interrogá-lo: “Ué, Silva, o que está fazendo aqui? Você já provou o terno ontem”. Tim, sabiamente, contemporizou: “Ele me trouxe aqui para fazer um paletó”. O que imediatamente foi feito pelo alfaiate. Toda vez que um jogador do Vasco metido a esperto chegava para o Tim com um papo torto, ele apontava para o cabide no vestiário e emendava: “Meu filho, vou te contar a história daquele paletó…”. Com a “psicologia peladeira” dele, o Vasco acabou campeão carioca de 1970. E o time nem era lá aquelas coisas…
Outra no Vasco aconteceu com o centroavante Valfrido, que se recusava a cair pela esquerda, seguindo a recomendação do treinador: “Seu Tim, o Alcir não vai passar a bola”. Tim insistiu: “Pode cair que ele passará sim”. Um teimoso Valfrido resistiu: “Não vai”.
O chove não molha durou alguns milenares minutos até que o “psicólogo” Tim abordou novamente o inseguro atacante vascaíno: “Valfrido, meu filho, você pode cair para a esquerda. O Alcir é muito meu amigo e ele me garantiu que vai passar a bola para você”. Tudo, enfim, resolvido no papo.
A “psicologia peladeira” do Tim internacionalizou-se. Quando treinava o San Lorenzo de Almagro, chamou um beque num canto e aconselhou: “Olha, meu filho, quando você estiver com a bola dentro da área, e não souber o que fazer com ela, não pense duas vezes: chute para o Brasil. Não se preocupe com a bola porque a minha mulher vem sempre a Buenos Aires e traz ela de volta.”
Tim tinha uma paciência de Jó para lidar com seus comandados. Um garotão que mal começara a jogar bola e se achava um bastião da moral e dos bons costumes, chegou para ele e emendou: “Nunca bebi, nunca fumei, nunca fiz farra”. O garoto achava mesmo que com aquela conversinha mole cairia nas graças do treinador. Tim, como sempre foi rápido no gatilho: “E você veio aqui para aprender tudo isso, meu filho?”
Nesta sexta-feira, dia 20, o grande ídolo “peladeiro” do futebol brasileiro nas décadas de 1930 e 40 completaria 101 anos. Como escreveu um jornal francês, durante a Copa de 38, o craque foi, disputando apenas um jogo naquele mundial, “um virtuoso do Brasil”.
Tim, o “boa praça”, era assim. Amigo dos amigos. Amigo do futebol com a genuína alma de peladeiro a mostrar-lhe, sempre, o melhor caminho da vida.
LEITURAS OBRIGATÓRIAS:
“Gigantes do futebol brasileiro”, de João Máximo e Marcos de Castro, editora Civilização Brasileira, 2011.
“Tim, o estrategista”, de Pedro Zamora, Livraria/Editora Goal, 1969.
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