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‘SEMPRE PENSEI MAIS NA VITÓRIA QUE NO DINHEIRO’. OBRIGADO, ALTAIR, PELA LIÇÃO

10 / agosto / 2019

Um dia Altair se perdeu da delegação de campeões mundiais, que estava sendo homenageada em Brasília, em 2014. Conseguiram encontrá-lo somente à noite, ao avistá-lo em um canteiro, urinando. Respondeu apenas que estava procurando o ônibus do Fluminense para voltar para as Laranjeiras com Castilho. Dali em diante, a degeneração física do ídolo avançou impiedosamente. Altair morreu ontem, esquecido pelo Fluminense que “procurava”. Conheça um pouco da história deste que é o maior lateral-esquerdo tricolor em todos os tempos. Ídolos como ele não aparecem da noite para o dia.

por André Felipe de Lima


O maior temor das torcidas dos clubes adversários do Botafogo nas décadas de 1950 e 60 era não encontrar um lateral-esquerdo capaz de marcar Garrincha. Missão quase impossível que o Fluminense acredita ter cumprido ao contratar um garoto franzino, logo apelidado de “Magro”, que se transformaria em um dos mais leais marcadores do endiabrado “gênio das pernas tortas” ou, para os mais irônicos, um “João” — como “Mané” se referia às vítimas de seus dribles — dos mais “conformados”. “João” ou não, esse craque chama-se Altair Gomes de Figueiredo, um cidadão de Niterói, que nasceu no dia 22 de janeiro de 1938, para escrever seu nome na história do tricolor das Laranjeiras.

De Altair, Nelson Rodrigues dizia: “Joga alegremente, joga brincando, com uma espécie de gana dionisíaca. E muitos pensam que o menino não leva nada a sério, nem o próprio time, nem o adversário, nem o público”. Para Nelson, Altair era da mesma “linhagem” do craque Fortes, dos primeiros times do tricolor. “Ninguém com mais amor ao Fluminense e disposto aos maiores sacrifícios clubísticos.”

Muitos especialistas do esporte bretão in Brasilis defendem a tese de que Altair seria o titular absoluto da lateral-esquerda da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1962, no Chile, caso não existisse o maior de todos os tempos na posição: Nilton Santos. Foi reserva do jogador do Botafogo na conquista do bi mundial, mas acabou lembrado por Vicente Feola para ocupar a lateral na fatídica campanha da Copa de 66, na Inglaterra.

Quatro anos antes, em 1958, Altair também seria o reserva de Nilton Santos na Copa do Mundo realizada na Suécia, mas uma grave contusão no joelho provocou o corte de seu nome da lista de Vicente Feola. Altair chorou muito ao saber que não iria mais ao mundial. Logo ele, que apesar da aparência frágil foi um dos marcadores mais eficientes com o qual Garrincha se deparou nos gramados.

Para marcar o ponta-direita botafoguense, pode-se dizer que Altair era um verdadeiro cientista. Foi ele o inventor do “carrinho”, uma jogada que, em muitos lances, desdobra-se para a violência e num cartão vermelho como “brinde”. Mas esse não era o caso de Altair, que, em entrevista a Luiz Augusto Nunes, recordou o dia 18 de dezembro de 1957 como um dos mais singulares da sua carreira. Foi naquela data em que o Botafogo de Garrincha aplicou uma goleada de 6 a 2 no Fluminense de Altair. Somente “Mané” foi o responsável com seus dribles e passes por quatro dos seis gols do alvinegro na decisão do campeonato carioca.

“Nosso time tinha a defesa menos vazada do campeonato, mas o Garrincha estava endiabrado. Por quatro vezes passou por mim, não consegui nem ver a bola. O segredo daquele drible era o arranque — ninguém conseguia pegá-lo, era imarcável.”

GARRINCHA SOFRIA COM ELE


Está viva em sua memória a antológica final do campeonato carioca de 1957, em que o Botafogo — time para o qual Altair torcia na infância — aplicou um inesquecível 6 a 2 no Fluminense: “Lembro que levei um baile dele danado. Só faltou a orquestra na área. Não peguei ele nunca. Garrincha estava danado. Na bola dividida, eu ganhava, mas ele, com ela dominada… era ele! Toda hora driblava, ia no fundo, centrava, quando estava em boa situação, ninguém segurava Garrincha não.”

No livro “Estrela solitária: Um brasileiro chamado Garrincha”, o jornalista Ruy Castro escreveu que Garrincha e Altair criaram, talvez sem saber, um dos lances mais bonitos do futebol, que, desde então, incorporado “às regras não escritas do cavalheirismo esportivo universal”. Foi no jogo entre Botafogo e Fluminense pelo torneio Rio — São Paulo, de 1960, aos três minutos do segundo tempo. Tudo começou numa disputa de bola entre Altair e Quarentinha. Foi um lance que teria comovido até Mario Filho, como descreveu Ruy Castro.

“Não assisti, mas tive várias descrições deste jogo. O Garrincha jogou a bola para fora e na reposição o Altair também jogou a bola para fora. O Mario Filho deu um salto na tribuna de honra e gritou: ‘O Ghandi do futebol!’. Ghandi era o exemplo de humanitarismo daquela época. Daí veio essa ideia de que Garrincha injetava humanidade no futebol. Espetacular que tenha sido ele, que tenha protagonizado o primeiro registro histórico desse tipo de acontecimento de um jogo, você botar a bola para fora para um jogador ser atendido.”

O confronto com Garrincha nem sempre foi tolerado por Altair, que, às vezes, perdia a paciência com o ponta botafoguense quando este exagerava nos dribles. O ex-lateral por pouco não se transformou no algoz de “Mané” por aplicar-lhe um “chega-pra-lá” em um treino da seleção que se preparava para a Copa de 62. No “grito”, Altair se impôs e garantiu vaga na lista dos jogadores convocados.

O episódio aconteceu durante um treino preparatório, realizado em Campos do Jordão, para a Copa de 1962, no Chile, a poucos dias da viagem. Segundo Altair, a diretoria do Botafogo queria emplacar o lateral Rildo [ex-lateral do Botafogo e do Santos], junto com Nilton Santos na seleção que se preparava para embarcar para o Chile. “A diretoria do Botafogo ordenou ao Garrincha para que, quando treinasse contra mim, me bagunçasse e, quando treinasse contra o Rildo, deveria perder todas as bolas. O empregado do hotel, que varria a sala, ouviu a conversa e veio me contar. Ele falou para eu ter cuidado com o Garrincha: ‘Ele vai te bagunçar para o Rildo ir para o Chile’.”

Todo o cuidado era pouco com Mané. Altair, no treino anterior, realizado em Nova Friburgo, tomou um baile de Garrincha e os jornais começaram a vaticinar a ida de Rildo para a Copa. No treino seguinte, não haveria sopa para o Mané.

“Do meu lado, tinha um valão de uns cinco ou seis metros de profundidade. Garrincha recebia a bola e partia para cima de mim. Ele parou e ameaçou driblar. Quando ele ameaçou a segunda vez, dei um tapa nele, que passou por cima da cerca e caiu lá embaixo. Ficou cheio de mato em cima e o presidente João Havelange, Aymoré Moreira, Mário Américo, o doutor Hilton Borges vieram todos em cima de mim. Aí, pensei: ‘Vou ser cortado agora’ […] Daquele treino para frente, ele nunca mais passou por mim. Foram escolhidos 22 para irem pro Chile, os dois do Botafogo ficaram e eu fui, junto com Nilton Santos, para Copa do Mundo, no Chile. Se eu jogasse ele de novo no buraco, eu não iria à Copa, não. Ele não era mole, Garrincha era terrível.”

Após a Copa no Chile, Altair seria também convocado para a Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra. Dois anos antes do mundial, vivia, contudo, um drama pessoal, como descreveu à Gazeta Esportiva Ilustrada, em 1964, dentro e fora dos gramados. Por pouco não deixou o Fluminense. Especulava-se na imprensa que um cartola do próprio Tricolor estaria ajudando-o a procurar outro clube.

“Recebo, do Fluminense, apenas 88 mil cruzeiros por mês, devido a alguns adiantamentos que fui obrigado a solicitar, motivo: doença na minha família, e para reformar meu apartamento. Vou continuar nessa crise, até o fim do ano, quando terminar meu contrato, pois ainda tenho que pagar as mensalidades do imóvel. Já pensou? Com cinco bocas pra sustentar: duas irmãs, um irmão menor, uma sobrinha e minha mãe. E o pior é que não posso pedir aumento de salário […] Gostaria de continuar no Fluminense que me projetou no futebol brasileiro. Mas como? Ganhando o que ganho? O pior é que nenhum outro clube se interessou pela minha pessoa. Oficialmente não. Se algum dirigente estrangeiro ou paulista viesse falar comigo, eu o mandaria entender-se com a diretoria das Laranjeiras. Negócio honesto, antes de mais nada. E se acontecesse, seria bom para mim como para o Fluminense.”

TOURO INDOMÁVEL


Magro, mas forte como um touro. Talvez Altair compensasse a aparente fragilidade física com um temperamento vigoroso em campo. O ex-ponta-direita Paulinho, do Flamengo, sentiu na pele o que acontecia com os atacantes que ousassem brincar com Altair. Era dia de Fla-Flu e Joel não entraria em campo. Paulinho preparou-se para ocupar a vaga deixada pelo titular, mas cometeu a bobagem de tirar uma onda com Altair. A brincadeira de mau gosto custou-lhe alto. Altair lembra com detalhes o episódio:

“Eu quase que matei o ponta do Flamengo. Estávamos decidindo a Taça Guanabara. O Joel não ia jogar, então entrou esse tal de Paulinho na ponta-direita. Ele veio a mim e abraçou-me. Tudo legal… ia começar o jogo e ele perguntou antes de o juiz apitar o início do jogo: ‘Você mora em São Gonçalo, né?’. Respondi: ‘Moro’. Aí, ele disse: ‘Eu estava passando ontem em São Gonçalo, quando perguntei a um cara aonde você morava. Ele apontou para uma casa. Fui lá e você não estava em casa… eu ia te contar um troço, mas não vou contar não”. Fiquei cabreiro e perguntei ao Paulinho: ‘O que aconteceu, rapaz?!’. Imediatamente ele emendou: ‘Ah, é que eu namorei [sic] a sua mãe’. Era para eu dar um tapa nele antes de o jogo começar. O juiz era o Amilcar Ferreira. Aos 10 minutos de jogo, ele dividiu uma bola comigo. Entrei de bico. Rasguei camisa do Flamengo, rasguei tudo. Paulinho ficou lá atrás, com o massagista jogando água nele. Ele voltou ao campo e veio falar comigo: ‘O que é isso?!’. Respondi: ‘Rapaz, você pede pra sair porque na próxima você não vai jogar mais, não’. Depois dessa, ele se mandou pro vestiário.”

Tricolor desde menino, Altair chegou ao Fluminense em 1953, com apenas 15 anos. Jogava “peladas” em times de várzea em Niterói, sua cidade natal. Em 1955, o “Magro” já estava no time principal do tricolor das Laranjeiras, onde atuava como quarto-zagueiro, mas a disputa com Pinheiro e Píndaro seria infrutífera. Foi deslocado para a lateral-esquerda, posição em que se tornaria o maior de todos os tempos no Fluminense.

Quando menino, em São Gonçalo, seu prazer era o futebol. O que contrariava os pais, que queriam vê-lo apenas na escola. Estudava no Senai, no Barreto, bairro de Niterói. Vendo-o em ação, um olheiro do Vasco levou-o para treinar em São Januário. Tudo, obviamente, escondido dos pais. Ficou apenas três minutos em campo. Talvez o corpo franzino tenha impedido Altair de iniciar a carreira com a camisa da cruz de malta. Foi dispensado, mas não demoraria para que outra oportunidade surgisse. Os bons ventos vieram das Laranjeiras.


“Comecei no Mauá, em São Gonçalo. Depois de um ano lá, veio um empresário do Fluminense, que me levou para treinar nas Laranjeiras. Fui bem no primeiro treino e aí fizeram o contrato para mim, nos juniores. Disputamos o campeonato e fomos campeões. Com 19 anos, já estava no profissional. O treinador era o Tim [ex-ídolo do Fluminense]. Ele me perguntou se eu sabia jogar na lateral-esquerda. Respondi que sabia, mas a perna esquerda servia mesmo só para andar.”

Sobre Tim e Altair há, aliás, uma engraçada história, como narrou a revista Placar, em março de 1979.

Tim era um competente cozinheiro. O que fazia de melhor, diziam, era massas e, durante uma preleção aos jogadores, falava sobre várias formas e espessuras para o sabor. O centroavante Amoroso não perdeu a piada: “Mestre, aqui no Fluminense só macarrão fininho senão o Altair morre engasgado.”

Altair sempre levou na esportiva as brincadeiras dos colegas com a sua indefectível magreza. Era sua marca registrada tanto o grande futebol que exibia. Mas o mais difícil mesmo havia passado: a resistência dos pais.

RELAÇÃO DIFÍCIL COM O PAI

Os pais não davam, porém, trégua a Altair. Acima de tudo estava o estudo. Altair não deu muita bola para a rigidez dos pais.

Para a primeira autorização, pediu que a irmã imitasse a assinatura do pai. Foi ao cartório e conseguiu registrar o papel, com firma reconhecida e tudo o mais. Pouco importou-lhe a transgressão. Queria jogar bola.

“Minha mãe queria que eu só estudasse. Eu não ia à aula para poder treinar. Ela achava ruim comigo. O empresário vinha me pegar em casa para os treinos. Meu pai também não queria que eu jogasse. Estava treinando e veio um diretor pedindo para que meu pai assinasse um documento [o primeiro contrato como profissional] que autorizasse minha inscrição no campeonato carioca. Disse a ele que o meu pai não assinaria. O camarada perguntou por quê. Respondi que meu pai não queria que eu jogasse bola. Mas disse ao cartola que se levasse uma graninha para ele, ele assinaria. O cara chegou com um embrulho cheio de dinheiro. Botou-o em cima da mesa e deu o dinheiro pro meu pai. Com o papel assinado, o cara foi embora. Aí, perguntei ao meu pai: ‘Vamos rachar isso?’. Ele respondeu: ‘Rachar nada… você vai ganhar muito mais depois como jogador’. Com aquele dinheiro, meu pai comprou duas casas e um carro.”

Enquanto estava no juvenil do Fluminense, os pais sequer imaginavam o filho trocando a sala de aula pelos gramados. Acreditavam piamente que Altair estava na escola. Para concentrar-se com o time do Fluminense nos fins de semana, mentia aos pais que estava na casa de um colega da escola. O amigo, naturalmente, confirmava a história aos pais de Altair.

O amor pelo Fluminense ou as conquistas pela seleção brasileira nunca comoveram seu pai. Seu Egídio sequer ia ao Maracanã. Nas raríssimas vezes em que o Tricolor enfrentou o Canto do Rio em Niterói, Altair esperava ansioso a possibilidade de encontrar o pai na arquibancada. Isso, lamentavelmente, nunca aconteceu.


Altair foi o quarto jogador que mais atuou com a camisa do Fluminense. O ex-lateral-esquerdo disputou 549 jogos pelo tricolor entre os anos de 1955 e 1971. Foi campeão carioca em 1959, 64 e 69 e do torneiro Rio-São Paulo em 57 e 60. Foi também campeão do Torneio Início nos anos de 1956 e de 1965. Levantou a Taça Guanabara em 1966.

Mesmo que fosse contemporâneo de Nilton Santos, “Magro” sempre foi lembrado pelos técnicos da seleção brasileira. Ele, o goleiro Castilho e o também lateral-esquerdo Branco são os jogadores do Fluminense que mais atuaram em Copas do Mundo. Altair, nas de 62 e 66, Castilho, o “Leiteria”, em 54, 58 e 62, e Branco em 86, 90 e 94.

Com a “amarelinha”, estreou em 1959 na vitória do Brasil sobre o Chile por 1 x 0, pela Taça Bernardo O’Higgins. Foi reserva de Nílton Santos em 62, no Chile, mas assumiu a posição em 66, na Inglaterra, nas partidas contra Bulgária e Hungria. Fez 22 partidas pelo escrete nacional sem nunca ter marcado um gol.

Ao encerrar a carreira assumiu o comando técnico do Canto do Rio, clube de Niterói.

Foi um grande formador de futuros talentos nas divisões de base do Fluminense e chegou a ser auxiliar-técnico dos profissionais na década de 1990. Três anos antes esboçou, com Zizinho e o amigo Jair Marinho, uma tentativa de resgate do antigo Canto do Rio, clube de Niterói, na terceira divisão carioca. Mas não deu certo.

Pela Secretaria municipal de Esportes de São Gonçalo, Altair desenvolveu importante trabalho social em mais de uma dezena de campos de futebol. Um olhar clínico que pode garantir futuras gerações de craques dos gramados brasileiros. Uma tolerância que Altair desconheceu em sua família quando iniciou a carreira, mas que concedeu — com sobras — à meninada do presente.

Em dezembro de 2010, o grande ídolo Altair perdeu a esposa, com quem vivia há cerca de cinco décadas. Em abril do ano seguinte, identificou o Mal de Alzheimer. Mesmo com a doença, Altair morava sozinho, em São Gonçalo, porém sempre sob o cuidadoso olhar da enteada.

O trauma pela perda da esposa é, no entanto, o drama mais difícil de superar, mas o conforto vinha da família e do inseparável amigo Jair Marinho, ex-lateral direito do Fluminense, com quem Altair manteve uma longa amizade desde os tempos em que jogavam pelos juvenis do Tricolor das Laranjeiras.

Seu amor pelo Fluminense nunca teve dimensão. Até o sucesso do lateral-esquerdo Branco, no time tricampeão estadual em 1983, 84 e 85 e campeão brasileiro em 1984, Altair era, para muitos, o lateral titular de todos os times de sonhos de torcedores do Tricolor. “Ganhar dinheiro no futebol eu nunca consegui, principalmente porque sempre pensei mais na vitória do que no dinheiro. Fui a vida toda um cara magro, pesava 57 kg e perdia quatro em todo o jogo. Quer dizer, eu deixava um pouco de mim em campo.”

A mais pura verdade. Garrincha, se vivo fosse, concordaria com o bravo Altair.

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