por Péris Ribeiro
Quando alguém com os sentidos mais atentos, e o faro mais aguçado, se dispuser a contar em detalhes sobre a primeira grande epopeia da história do Maracanã, não terá maiores dificuldades em se deparar com o heroico Tricampeonato do Flamengo. Uma façanha e tanto, obtida ainda na primeira metade dos anos 1950.
Logo se fará íntimo também das peripécias cometidas por um certo Rubens, o genial Doutor Rúbis, meio-campista que era a estrela da companhia e o maior ídolo da frenética massa rubro-negra. Ainda mais naqueles tempos, em que o mais famoso estádio do mundo, no seu gigantismo de meter medo, ainda cheirava a tinta fresca, cimento e concreto armado, e começava timidamente a ser chamado de Maraca pelo entusiasmado torcedor das arquibancadas.
Mas que não se impressione, lá, o nosso pertinaz pesquisador se, quase em seguida, se deparar com o simples nome de Dida. Um Dida cravado ali, no entanto, como o grande personagem da consagração do heroico Tri. Um título tão sonhado quanto inédito, e que viria na memorável noite de 04 de abril de 1956 – com direito, inclusive, à invasão do cemitério de São João Baptista. Uma invasão ocorrida já em plena madrugada, numa comovida homenagem póstuma ao dr. Gilberto Cardoso, o apaixonado presidente falecido na reta final da campanha, no mês de novembro de 1955.
Dida foi, sim, “o grande mocinho da “negra” com o América”, como estamparia no título de sua principal matéria, em letras garrafais, a revista “Manchete Esportiva”. Afinal, depois de vencer o primeiro jogo por 1 a 0, e de ser goleado de maneira acachapante por 5 a 1 no segundo, no domingo seguinte – logo em um domingo, 1° de abril -, eis que o Flamengo praticamente como que ressurgiu das cinzas. E ressurgiu naquela noite encantada de quarta-feira, com o Maracanã superlotado e com as ilustres presenças do presidente da República, Juscelino Kubitschek e do bispo Dom Hélder Câmara nas tribunas especiais.
Falaram – e muito! – durante dias e dias, logo em seguida à grande decisão, da proteção divina do dr. Gilberto lá dos céus. Disseram pela cidade que o profético padre Góes rezara à exaustão, até não poder mais, lá na igreja de São Judas Tadeu, no Cosme Velho. E foram bem mais além, garantindo que prometeram oferendas sem fim a Iemanjá, e que os tambores dos terreiros de umbanda rufaram sem parar até o sol raiar.
Mas a verdade, a grande e exclusiva verdade é que, se o ágil e habilidoso garoto alagoano não estivesse realmente predestinado, nada daquilo teria acontecido. Melhor dizendo: aquela noite de glória jamais teria entrado para a história. E é aí que os números são realmente de espantar. Flamengo 4 x América 1. Quatro gols de Dida! Uma quarta-feira, à noite. E mês… quatro. Abril!
Que Dida ficou imortalizado como o mocinho daquela noite mágica, ninguém jamais irá contestar. Seria, no mínimo, uma blasfêmia irreparável. Imperdoável! Ainda mais, se lembrarmos de um certo – e imponderável – detalhe. Até a véspera do jogo, ele sequer estava escalado. Aliás, o irrequieto atacante andava fora do time desde a volta de Evaristo, finalmente recuperado de uma fratura no pé esquerdo.
Portanto, Dida acabara entrando naquela finalíssima graças a uma daquelas decisões inesperadas de Don Fleitas Solich, o festejado técnico do Flamengo, sempre exaltado por tirar coelhos da cartola nos momentos mais imprevisíveis. Só que, em meio à indescritível alegria pelo primeiro Tri da Era do Maracanã, caberia muito bem uma pergunta. Quem se lembraria, ali, de Rubens, o quase intocável Doutor Rúbis, o mais festejado herói do Bicampeonato, conquistado nas temporadas de 1953 e 54?
Ou, de algo bem mais recente ainda: quem se lembraria, agora, de Paulinho? O Paulinho Almeida que só não jogara a “negra” decisiva com o América. Que estivera em campo em 29 daqueles desgastantes 30 jogos, no mais longo Campeonato Carioca da história – começara em finais de junho de 1955, só terminando em 04 de abril de 1956. O Paulinho que fora o artilheiro absoluto da competição, com 23 gols. E mais: que acabara escolhido como “O Craque do Ano” pela tradicional e conceituada revista “Esporte Ilustrado”- a mesma que havia elegido Rubens o “N° 1”, nos anos de 1953 e 54.
Quem se lembraria, afinal, em meio ao delírio coletivo pela extraordinária conquista, da dívida de gratidão da torcida rubro negra – dívida, que ela jamais poderia pagar – para com heróis do porte de um Rubens, dos artilheiros Índio e Benitez, do injustiçado Paulinho Almeida? Quem se lembraria?
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