Leandro é considerado, ao lado de Djalma Santos e Carlos Alberto Torres, um dos maiores laterais do futebol brasileiro de todos os tempos. Nesta quinta-feira (17) o eterno camisa 2 rubro-negro faz aniversário e o jornalista Marcos Vinicius Cabral, o mesmo que, nas peladas de rua, quando moleque, lá na longínqua década de 1980, no Barreto, em Niterói, imitava o Leandro, enquanto todos os outros meninos personificavam o Zico. Fã de carteirinha do craque que vestiu apenas o Manto Rubro-Negro em toda carreira, o autor da série Vozes da Bola, coletânea que homenageia craques do passado, escreveu sobre o jogo mais emocionante que o ídolo disputou, até se aposentar em 1990. Jogo este que é até hoje lembrado por rubro-negros e tricolores: o Fla-Flu, ou melhor, o Fla-Flu do Leandro!
por Marcos Vinicius Cabral
Leandro já havia passado por muitas coisas, até chegar o ano de 1985. Uma delas era a sua autoafirmação na posição de beque central do Flamengo (a escolha do número 3 foi obra do destino e também para homenagear o amigo Figueiredo, zagueiro que morrera em um acidente aéreo com o monomotor prefixo PT-NJS 193, que espatifou-se contra uma das partes dos 2.237 metros de altura do Pico da Caledônia, na Região Serrana de Nova Friburgo, em 1984), pois, com as articulações dos joelhos desgastadas pelo vai e vem que a lateral-direita lhe exigia, mudar àquela altura, era arriscado.
A outra, era conviver com dores e tratamentos específicos para continuar jogando em alto nível, já que lhe era cobrado – não só pelos torcedores, mas também pela imprensa esportiva, treinadores e dirigentes rubro-negros – um futebol à altura da habilidade daquele menino de cabelos escorridos e olhos verdes, que deixou o futebol de salão do Tamoyo Esporte Clube, em Cabo Frio, Região dos Lagos, para jogar na lateral-esquerda do Santos, time amador de São Pedro da Aldeia, antes de mostrar grande repertório técnico e ser aprovado por Américo Faria, ex-coordenador da Seleção Brasileira, nos treinos no Campo da Base de Fuzileiros Navais da Ilha do Governador, Zona Norte do Rio.
“Em 1976, eu era treinador do juvenil do Flamengo e realizávamos treinos de experiência toda às segundas-feiras. De tantos garotos, dois foram aprovados com sobras e encaminhados à Gávea”, relembrou em conversa com o Museu da Pelada pelo telefone.
Cabeça de área dos bons, um foi Vítor Luís Pereira da Silva, nascido do dia 4 de novembro do ano de 1952 em Governador Portela, no interior de Miguel Pereira, sendo até hoje um dos poucos jogadores que defendeu os quatro grandes clubes do Rio de Janeiro – sagrou-se campeão em cada um deles. No Flamengo, jogou 136 vezes. Fez gols decisivos, como o da virada por 3 a 2 na semifinal do Campeonato Brasileiro de 1982, contra o Internacional, no Beira-Rio, e no Brasileiro do ano seguinte contra o Athletico-PR, na vitória por 3 a 0, no Maracanã, além, é claro, de ter conquistado os maiores títulos da história do clube, como a Libertadores e o Mundial, ambos em 1981.
“Eu e o Leandro chegamos juntos no Flamengo e, por obra do destino, acabamos caindo no mesmo time nos treinos. O nosso treinador, o professor Américo Faria, viu qualidades no nosso futebol e nos aprovou de imediato. Havia a dúvida se o Leandro era direito ou esquerdo, devido a facilidade com que jogava com as duas pernas. Leandro foi um senhor jogador de futebol e, não à toa, virou esse monstro da posição”, revelou Vítor ao relembrar que, ao lado do camisa 2, disputou três finais consecutivas do Carioca de Juniores contra o Botafogo, perdendo as de 77 e 78 e vencendo em 79, antes de subirem para os profissionais.
O outro, José Leandro de Souza Ferreira, tornaria-se um dos maiores laterais do futebol brasileiro, eternizado no coração e mente dos flamenguistas como simplesmente Leandro, que vestiu apenas uma camisa em 12 anos como jogador profissional: a rubro-negra.
E com ela, em 415 partidas disputadas, entre vitórias, empates e derrotas, uma em especial, até hoje, passados 36 anos completados em dezembro do ano passado, é lembrada por todos: o Fla-Flu do Leandro! Inclusive para o craque ambidestro, que considera aquele jogo o mais emocionante de todos os que jogou na carreira.
Mas, naquele Campeonato Carioca de 1985, disputado por 12 clubes em turno e returno, Vítor, seu companheiro das categorias de base, camisa 5, era titular do meio-campo do Vasco, que não se classificou para disputar o triangular, enquanto o número 3 pertencia a Leandro, zagueiro do Flamengo, que desejava o mesmo que o Bangu: impedir o tricampeonato do Fluminense.
Todavia, enfrentar a equipe que teve Preguinho (1905-1979), meio-campista e autor do primeiro gol do Brasil em uma Copa do Mundo, a de 1930, disputada no Uruguai, trazia à memória momentos inesquecíveis na infância na cidade onde deu seu primeiro choro em vida, a paradisíaca Cabo Frio.
Infância, Preguinho, Copa do Mundo, futebol amador, Fluminense… tudo girava no hipocampo do craque, a ponto de deixá-lo com os nervos à flor da pele quando ouvia “Fluminense”.
Este mesmo Fluminense, que na decisão do Carioca de 1969, vencia o Flamengo por 2 a 1, e fez o pequeno Leandro, então com dez anos, mentir para o pai Evilásio, com quem ouvia o jogo deitado na cama, ao dizer que iria ao banheiro fazer xixi. Na verdade, foi para a sala, rezar para que os santos ajudassem o Flamengo a empatar o jogo e eliminar a tristeza do pai. Resultado: o Flamengo empatou com Dionísio, mas tomou o terceiro e fatídico gol da derrota pelos pés de Flávio Minuano.
Se para Leandro, vencer o Fluminense era uma maneira de ver estampada no rosto do pai a alegria que faltou em 1969, para o Flamengo não restava outra coisa para se redimir dos dois outros triangulares infelizes que deram o bicampeonato ao Tricolor em 83 e 84 – gols do carrasco Assis (1952-2014).
“A gente sabia que o nosso time era inferior, pois o Fluminense tinha jogadores excepcionais como o goleiro Paulo Vitcor, Ricardo Gomes, Branco, Jandir, Romerito, Deley, Assis, Washington, Tato, e além disso, vinha de um bicampeonato, já que jogavam juntos há pelo menos três anos”, recordou Leandro.
Mas, se o entrosamento era arma importante do Tricolor, a sensação era o forte time do Bangu, alçado a uma das grandes forças do futebol brasileiro da época, comandada pelo técnico Moisés (1948-2008), que tinha Marinho (1957-2020) como principal estrela e era turbinado pelo dinheiro do patrono e mecenas Castor de Andrade (1926-1997).
Naquele ano de 85, Fluminense (campeão da Taça Guanabara), Flamengo (vencedor da Taça Rio) e Bangu (que somou mais pontos no campeonato todo) decidiriam entre si para ver quem seria o melhor time de futebol do Estado do Rio de Janeiro.
Flamengo e Fluminense entraram em campo para quase 96 mil pagantes presentes na noite de quarta-feira, 11 de dezembro. Na moeda jogada para o alto pelo árbitro Luís Carlos Félix no cara e coroa, vitória de Vica, capitão tricolor, que escolheu o campo e Leandro ficou com a saída de bola. Partida disputada pau a pau, Romerito é derrubado por Andrade na lateral do lado direito. Branco levanta na área e Washington sobe mais que a zaga do Flamengo e abre o marcador: 1 a 0 para o Fluminense, aos 38 minutos do primeiro tempo.
No segundo tempo, nervoso, Adalberto recebe entrada forte de Leomir e, mesmo caído, revida com um chute no camisa 4 do Fluminense. Confusão formada, os dois jogadores foram mandados mais cedo para o chuveiro.
Jogo aberto. De um lado, o Fluminense, muito superior tecnicamente, e do outro, o Flamengo, bem preparado mentalmente e que teve que usar raça, amor e paixão. O Rubro-Negro se agigantou na partida e o Tricolor procurou fazer da defesa o seu melhor ataque.
”Nós, torcedores, sabíamos que o time deles era uma equipe superior, mas no papel, pois o que se viu lá dentro de campo foi outra coisa”, diz o torcedor rubro-negro Luiz Antônio Lorosa, de 56 anos, morador de São Gonçalo, que estava nas arquibancadas naquele jogo.
Torcida gritando, tensão, nervosismo dos dois lados, jogo brigado e um Cantareli jogando de zagueiro, marcaram todos aqueles 45 minutos finais. O Flamengo em cima, buscando o empate. O Fluminense se defendendo e tentando manter a vitória.
Leandro fez carreira brilhante. Ganhou quatro Brasileiros, uma Libertadores e um Mundial. Amado pela torcida, tinha as fortes dores no joelho como maior inimiga. Passou para a zaga. Se em 1969, ouviu no rádio o terceiro gol marcado por Flávio Minuano, 16 anos depois, jogaria um Fla-Flu como zagueiro. Para ele, um Fla-Flu especial, o da redenção.
Sem Zico e Júnior, negociados para a Itália, ele era a estrela. No minuto final, após pressões sucessivas na área tricolor, a bola vem fora da área para quem quer arriscar. O Fluminense ganhava por 1 a 0, gol de Washington, aquele do Casal 20. O empate deixaria os rubro-negros ainda na briga. Leandro soltou o petardo. Um pombo sem asas. Indefensável. Paulo Victor ainda tocou na bola e ela bateu na trave, voltou nas costas dele e entrou mansamente. Era o empate. “Goooolaaaaaaaaaaaaço-aço-aço”, narrou Jorge Curi pelas ondas sonoras da Rádio Globo. O último minuto. Era um Fla-Flu. Era gol de Leandro.
Quatro dias depois, Flamengo e Bangu se enfrentaram no Maracanã, e o time de Moça Bonita saiu vitorioso, por 2 a 1. No dia 18, Fluminense e Bangu encerraram o triangular final. Por ter vencido o Flamengo, o Bangu possuía a vantagem do empate, mas o Fluminense venceu por 2 a 1 e conquistou o tricampeonato.
Mas aquela partida, disputada naquele 11 de dezembro de 1985, fez Zico e Junior confessarem: “Esse foi o Fla-Flu que faltou na minha carreira”.
O jogo foi também o último do clube narrado por Jorge Curi, rubro-negro confesso. Na semana seguinte, o locutor de voz forte inconfundível, que fez longa carreira na Rádio Globo, mas havia se transferido para a Tupi, narrou a final entre Fluminense e Bangu, e pouco depois, indo para Caxambú, encontrou a morte em um acidente automobilístico na BR-354.
A pedido da família do radialista, a camisa número 3 que Leandro usou naquele Fla-Flu foi colocada sobre o caixão de Jorge Curi, fã do jogador, que foi enterrado no jazigo perpétuo da família no Cemitério Municipal de Caxambu, Sul do estado de Minas Gerais.
Coisas do destino, do futebol, e do Fla-Flu. Aliás, do Fla-Flu do Leandro.
“Leandro, com sua excepcional qualidade, jogando na lateral-esquerda, encantou a todos e a mim em especial. Todas as vezes em que o treino se aproximava do fim, ele perguntava se havia sido aprovado. Eu, sempre brincando, dizia que ainda não havia decidido nada e que ele estava sendo avaliado. Dentro de campo, ele realizava coisas extraordinárias, de puro encantamento e magia e a cada jogada que ele fazia, olhava em minha direção como se dissesse:’Está gostando, professor?’. Eu fingia que não via e ele continuava a fazer aquelas coisas sobrenaturais a fim de me impressionar. E confesso, depois de anos, me impressionava”, revelou Américo Faria sorrindo, para depois falar sério, em tom profético:”Não há e jamais haverá outro igual. Leandro foi o melhor jogador que passou pelas minhas mãos e o maior lateral-direito de todos os tempos!”.
Profecia? Talvez, sim. A escassez de outros ‘Leandros’ no futebol, faz com que Leandro – que assopra 63 velinhas de aniversário – tenha se tornado, no imaginário do torcedor, uma divindade no panteão rubro-negro.
Passado tanto tempo, o eterno camisa 2 considera o Fla-Flu de 11 de dezembro de 1985 como o jogo inesquecível para ele e para os verdadeiros amantes do futebol. Para a Nação Rubro-Negra, fica a certeza que nada nesse mundo é eterno, mas Leandro é!
FICHA TÉCNICA
Flamengo 1 x 1 Fluminense
Data: 11 de dezembro de 1985
Local: Maracanã
Competição: Campeonato Carioca de 1985 – Triangular Final
Público: 95.049 pagantes
Renda: Cr$ 1.838.050.000,00
Árbitro: Luís Carlos Félix
Flamengo:Cantareli; Jorginho, Leandro, Mozer e Adalberto; Andrade, Adílio e Valtinho (Gilmar); Bebeto, Chiquinho e Marquinho (Júlio César Barbosa). Técnico: Sebastião Lazaroni.
Fluminense:Paulo Victor; Leomir, Vica, Ricardo Gomes e Branco; Jandir, Delei e Renê; Romerito, Washington e Tato. Entraram Paulinho e Rogério. Técnico: Nelsinho.
Gols: Washington (38’/1T) e Leandro (43’/2T).
Expulsões: Adalberto e Leomir.
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