por Elso Venâncio
A última grande final do Carioca se deu em 1995, no jogo que ficou marcado pelo gol de barriga do Renato Gaúcho. Aquela competição foi disputada em todo o primeiro semestre, com direito a um octogonal final disputadíssimo, que pegou fogo.
No ano do seu Centenário, o Flamengo era o favorito ao título – principalmente após a espetacular contratação de Romário, o melhor jogador do mundo. No entanto, na véspera da decisão, durante o último treino, realizado na cidade de Friburgo, os desentendimentos eram mais que visíveis.
Vanderlei Luxemburgo, técnico que levara o Palmeiras ao bicampeonato paulista e brasileiro, havia sido contratado por Kleber Leite. O treinador, contudo, não aceitava as regalias de Romário. Por dentro, ardia de ciúmes. A verdade é que, em todos times pelos quais o Baixinho jogou no Brasil após a Copa do Mundo dos Estados Unidos, o camisa 11 deixava bem claro aos presidentes:
– Gosto da noite, mas não bebo. Por isso, só treino de manhã se eu quiser.
Evidenciando o mal-estar, Romário, até por não falar com Luxemburgo, voltou ao Rio no sábado à tarde, de carro, junto aos amigos que o cercavam, seus “parças”. Ou seja, o ônibus rubro-negro desceu a serra, direto para a concentração de São Conrado, sem o seu principal jogador.
Do lado do Fluminense, Renato Gaúcho chegara às Laranjeiras contra a vontade do técnico Joel Santana. Nosso amigo Pierri Carvalho havia sido fundamental na contratação. Ele era o setorista da Rádio Globo nas Laranjeiras e viajou a Búzios com o dirigente Alcides Antunes para contatar o atacante, que estava curtindo férias forçadas, após o rompimento do contrato do atacante com o Atlético Mineiro, um dos raros fracassos do camisa 7, que sempre foi carro-chefe nos clubes que defendeu. A recepção, após um longo chá de cadeira, não foi nada boa:
– Vocês estão de sacanagem… Esse treinador não me quer! – vociferou Renato, apontando para uma manchete de jornal.
Alcides avisou que contratar era responsabilidade dele. A fera gaúcha sentiu firmeza:
– Vocês querem ser campeões? Eu dou o título a vocês! – bradou Renato, com uma bola de futevôlei à mão.
Nem o Campeonato Carioca de 2001, que terminou com aquele indefectível gol de falta de Petkovic contra o Vasco, foi mais emocionante do que a disputa que estamos falando. Teve o lance decisivo, sim, mas no todo, o “Fla-Flu do Século” foi imbatível.
Sem falar que, de quebra, estava em jogo a coroa de “Rei do Rio”. Romário, Túlio Maravilha, Renato Portaluppi e Valdir Bigode estavam no páreo. Os craques “vendiam” o jogo e, nisso, lotavam o Maracanã. Como de costume, Túlio provocava. Sem papas na língua, Romário respondia ao vivo, pelas rádios e TVs. Detalhe: não havia ainda Internet. Muito menos redes sociais.
O Flamengo jogava muito na Gávea, sempre contra os times de menor investimento. Naquele ano, o estádio do Mais Querido contava com arquibancadas tubulares no entorno do gramado. Numa partida contra o Madureira, me avisaram que o cantor Nelson Gonçalves estava atrás do gol que ficava à direita da velha arquibancada. Para os mais jovens, vale dizer que, até hoje, no Brasil, apenas Roberto Carlos vendeu mais discos do que ele. Foram 79 milhões de cópias consumidas entre os anos 40 e 90.
Assim que fui entrevistá-lo, o velho boêmio pegou meu microfone e cantou:
– Ô-lê-lê, ô-lá-lá… Romário vem aí…. o bicho vai pegar!
De repente, com vários rádios ligados, surge o coro que viraria símbolo da “Era Romário”:
– Ô-lê-lê, ô-lá-lá… Romário vem aí…. o bicho vai pegar!
Pois bem; vamos para a histórica decisão do dia 25 de junho de 1995. Astuto, Alcides Antunes, sem avisar a ninguém, tirou no sábado a delegação tricolor do antigo Leme Palace após o jantar, levando a equipe para o Sheraton. A torcida do Flamengo, com direito a intensos foguetórios, não deixou nenhum hóspede dormir no Leme naquela madrugada, sem saber que os tricolores roncavam tranquilíssimos na Avenida Niemeyer.
Leo Feldman no apito. Um temporal forte surge do nada, dificultando a bola rolar. Até a visão do campo se torna turva. O jogo se equipara e os tricolores demonstram uma garra, uma gana, incomum. Ouso dizer que ali surgiu o “Time de Guerreiros”.
Mais de 100 mil torcedores viram Renato Gaúcho e Leonardo marcarem, calando a massa rubro-negra no primeiro tempo. Aos 26 da etapa final, Romário, que nunca havia vazado redes tricolores em toda a carreira, desencantou. Seis minutos depois, Fabinho empatou. Resultado que dava o título ao Flamengo.
Pandemônio no estádio, vários jogadores foram expulsos em sequência: um pelo Flamengo e três pelo Fluminense, que se viu com apenas oito atletas em campo. Até então contida, a nação rubro-negra explodiu:
– É campeão!!! É campeão!!!
Eis que, aos 41 minutos, Ailton, outro ex-rubro-negro, driblou duas vezes Charles Guerreiro e bateu cruzado, marcando o terceiro. Na súmula, gol dele, Ailton. O grande José Carlos Araújo, o “Garotinho”, narrou gol de Ailton. Na mesa redonda da CNT, graças aos exaustivos replays, notamos que a bola, antes de estufar as redes do goleiro Roger, tocou a barriga de Renato.
Na tribuna de honra, incrédulo, o presidente Arnaldo Santiago comentou com Juber Pereira, seu vice de finanças:
-
– Do coração eu não morro mais!
Pois então…. Médico, Arnaldo Santiago faleceu cinco anos depois após um infarto fulminante enquanto jogava basquete com amigos, no Clube Caiçaras, na Lagoa.
Valorizado, Joel Santana assinou com o Flamengo poucos dias após o “Fla-Flu do Século”. Porém, só desembarcou na Gávea em janeiro do ano seguinte. Essa notícia estou revelando somente agora. Na época, não vazou porque “Papai Joel” pediu a seu procurador para guardar todas as vias daquele contrato.
Em 1996, Joel levou o Flamengo ao título carioca. Roubando de Renato a coroa de Rei do Rio.
0 comentários