por André Felipe de Lima
Imagine um corintiano em uma família onde todos torcem pelo Palmeiras. Todos italianos e descendentes. Algo quase impossível aconteceu na casa dos Cammarota, no bairro São Judas, em São Paulo. O menino Rafael era corintiano. Exceção. E queria ser goleiro. Encasquetou que defenderia, um dia, o Corinthians. Ninguém tirava ideia tão fixa de sua mente. Quem ousaria?
Em 1969, Rafael, já com 19 anos, realizou seu sonho. Um professor o levou para uma peneira no Parque São Jorge. Foi aprovado, mas teve de esquentar banco durante quase cinco anos até algum treinador oferecer uma oportunidade. “Ei, você aí. Hoje é o teu dia. Vai estrear, garoto”. Deve ter sido mais ou menos isso que Durval Knippel, o mitológico e polêmico Yustrich, então técnico do Corinthians, disse para Rafael naquela tarde de 1974 em que o Timão disputava um amistoso em Poços de Caldas contra a Caldense. O menino fez bonito embaixo das traves. Titular do time, o goleiro Ado, tricampeão mundial em 70, rasgou elogios ao rapaz.
Mas a permanência de Rafael no Timão não durou muito tempo. Foi emprestado à Ponte Preta. Chegou a ser reserva de Carlos na final do campeonato paulista de 1977. Foram cinco anos no clube de Campinas até ser emprestado ao Grêmio Maringá, o primeiro clube paranaense na vida de Rafael. E o rapaz não decepcionou a torcida. Tornou-se ídolo. Era a grande revelação do certame local. Teve gente do Corinthians atrás dele.
Levaram Rafael novamente ao Parque São Jorge, em 1981. Perguntem ao goleiro se ele gostou? É claro. Afinal, tratava-se de um corintiano nato. Irrevogavelmente alvinegro. A estada foi, porém, pouco auspiciosa para Rafael. Sentou no banco para ver o baixinho goleiro César, companheiro de time, jogar. Não havia Democracia Corinthiana que amenizasse a decepção de Rafael com o seu clube de coração. Gostava dos companheiros. Desejava permanecer no clube, apesar da reserva. Lutava pela vaga com brio, técnica e esmero nos treinos. Esforço que nunca foi problema para Rafael. Mas havia um problema sim: Rafael batia de frente com a Democracia Corinthiana, movimento político dos jogadores do clube que, para o goleiro, soava falso. “Só três” falavam e o resto dizia “amém”. Era o que Rafael dizia naquela longínqua época.
Memória em dia, vamos lá: os pilares da Democracia eram Sócrates, Wladimir e Casagrande, com aval, ressalte-se, do então diretor de futebol, Adilson Monteiro Alves.
Não houve jeito. Rafael colheu desafetos no Timão. Wladimir — em reportagem de 1984, assinada por Roberto José da Silva — chegou a dizer naquele período: “O Rafael prejudicava o bom ambiente que estávamos formando na época. Foi expelido pelo grupo.”
Rafael acabou negociado em 1982 para outro clube do Paraná. O Atlético.
Finalmente a carreira, após mais de 10 anos, decolaria. É o que imaginava. No Furacão, Rafael não chegou a fazer história logo de cara. Sofreu grave contusão em 1982. Rompeu o tendão do pé esquerdo. Por isso fazia outra coisa: sombra para o goleiro titular Roberto Costa, mais um que não morria de amores pelo irascível Rafael. “Ele tem um gênio de lascar, costuma alardear pelos corredores que é o melhor em tudo, o mais profissional. Enfim, uma pessoa difícil de se relacionar”, disse Roberto Costa. No final das contas, Costa saiu e Rafael ficou.
Além do gênio intempestivo, as constantes contusões podem ter sido o grande entrave para que Rafael mantivesse a regularidade nos clubes que defendeu até a chegada ao time da Baixada. Na matemática desesperadora, foram oito. A mais grave em 1978, ainda na Ponte Preta. Rafael treinava quando se chocou com um atacante e teve afundamento do malar. Por pouco não perdeu a visão do olho esquerdo. Teve também a fratura na clavícula, quando defendia o Maringá. Vários meses no estaleiro.
Apesar de ser reserva de Roberto Costa e da contusão no pé esquerdo, Rafael defendeu bem as cores do Atlético. Mas pressentia que algo mudaria a sua carreira. E de forma positiva. Seria drástico. Da água para o vinho. Mudou mesmo. Em 1985. De clube, inclusive. Rafael já não era mais corintiano tampouco rubro-negro. Era Alviverde.
A saída do goleiro de um rival para outro da mesma cidade provocou a ira de muitos torcedores do Atlético. “Rafael é traidor!” ou “Os cartolas não poderiam vendê-lo para o Coritiba…”, bradavam.
O que teve de gente rasgando a carteira de sócio do Atlético não estava no gibi. Quem ria à toa era o velho “Chinês”. Evangelino Costa Neves era só festa. Tirar um goleiro do rival bicampeão estadual em 1982 e 83, não tinha preço. E o predestinado Rafael finalmente encontrou sua verdadeira casa.
No Coritiba, conquistou a vaga de titular. Intocável, frise-se. Foi campeão estadual em 1986, mas no ano anterior, a maior glória da história dele e do Coxa: o título de campeão brasileiro. Não teve Bangu, não teve decisão de pênaltis, não teve nada que tirasse a convicção daquele goleiro turrão.
Turrão? sim. Desde pequeno, quando torcia pelo Timão em uma família palmeirense; quando era contrário à Democracia Corinthiana por considerá-la elitista; por superar as graves contusões ao longo da carreira. Rafael tinha certeza: “Seremos campeões brasileiros”. O cara defendeu até pensamento. Não passava nada. Foi decisivo no jogo semifinal contra o Atlético, o Mineiro — tirou uma bola em cima da linha que garantiu o 0 a 0 e classificação —, e contra o Bangu, na finalíssima.
Rafael calou a boca de quem o definia como “velho”. Para a crônica esportiva, ninguém o superou debaixo das traves naquela reluzente temporada.
Quando o juiz apitou o final do jogo contra o Bangu, no Maracanã, ele não se conteve. Esbravejou. Retirou do fundo do armário os fantasmas que o assombravam: “O Rafael é campeão brasileiro. Onde está o Corinthians da Democracia?”. O Corinthians o revelou. Mas disputou apenas 31 jogos com camisa alvinegra, como destaca o Almanaque do Corinthians, do Celso Unzelte. O Corinthians nunca quis Rafael, essa é a verdade. Mas o Coritiba o queria. E muito.
Foram tantos os grandes goleiros que despontaram no Coxa…
José Fontana, o Rei, foi o primeiro. Jogou no Vasco e consagrou-se na seleção brasileira em um tempo em que era improvável qualquer jogador que não fosse do eixo Rio-São Paulo vestir a camisa do escrete nacional. Teve também o Ari. Goleiro papa-fina. Ainda no Coxa chegou à seleção. Depois foi para o Botafogo ser reserva de Osvaldo Baliza. Quem não se recorda de Joel Mendes? Já com a camisa do Santos vestiu a faixa de bicampeão paranaense pelo Coritiba. Ou também de Manga, na casa dos 40 anos de idade, fechou o gol do Alviverde em 1978. E o que falar de Jairo, uma verdadeira “muralha”?… mas nenhum deles foi como Rafael. Ele era especial. Afinal, foi campeão brasileiro.
Quando ergueu o troféu máximo do futebol nacional e foi paparicado pela imprensa, Rafael percebeu que a seleção brasileira não seria algo improvável. A Copa do Mundo de 1986 estava à sua porta. Mas o técnico Telê Santana priorizou a turma — sina infeliz — do eixo Rio-São Paulo. Na lista, Carlos, o titular, do Corinthians; Leão, do Palmeiras, e Paulo Victor, do Fluminense. Valdir de Moraes, então preparador de goleiros da seleção, indicou Rafael à Telê, mas o goleirão do Coxa havia recebido uma punição e, por isso, teria ficado de fora da lista. Seria efeito retardado da implicância de Rafael com alguns companheiros da antiga Democracia Cotinthiana?
Rafael Cammarota nasceu no bairro São Judas, na capital paulista, no dia 7 de janeiro de 1953. Quando encerrou a carreira, tentou se alocar em algum clube para treinar goleiros. O Guarani o recrutou.
O ídolo do Coritiba morou um tempo na capital paulista, onde manteve a escola de futebol “São Rafael”, no bairro do Ipiranga. Dividia o tempo com a garotada e com os seus carros, uma paixão de longa data. Mas retornou à Curitiba, onde todo o dia 12 de outubro abraça seu clube querido em mais um dia de aniversário.
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