por André Felipe de Lima
Nascia um repórter com “Bigode”. Sim, bigode, mas não um bigode comum. Era o Bigode, aquele lateral-esquerdo que brilhou no Atlético Mineiro, no Fluminense e no Flamengo. Esse ficou famoso pelo lance capital da Copa de 50, mas pouco se fala (ou se escreve) sobre a fase de repórter do jornalista e escritor Arnaldo Niskier, que escreveu, quatro anos após o Maracanazo, sobre a volta por cima do Bigode, claro, o da Copa de 50.
Seis anos antes de assumir a chefia de reportagem da revista “Manchete”, Niskier, que contava apenas 19 anos de idade e já assinava crônicas esportivas no jornal “Última Hora” (desde os 16 anos), escreveu aquela que talvez tenha sido uma de suas primeiras reportagens mais elaboradas no começo da carreira: “Bigode ‘ressuscitou’ duas vezes”, publicado na “Gazeta Esportiva Ilustrada”, em novembro de 1954.
Escrevera assim o broto do jornalismo carioca: “O futebol é o tipo de esporte cheio de caprichos. Assim à semelhança de uma mulher exigente”. Toda a pompa do “nariz de cera” preparava o enredo da reviravolta na vida de Bigode após o fiasco da Copa de 1950 e a passagem tosca pelo Flamengo.
Para Niskier, Bigode tinha prestígio consolidado por um estilo “duro como carne de pescoço”. Ao jovem Niskier, Bigode contrariou a tese de que era um jogador violento: “Eu não me acho violento. Ou, se o sou, é uma violência (sic) leal. Não busco o adversário. Vou na bola”.
Ao repórter juvenil, o jogador criticou o sindicato dos jogadores da época. Para Bigode, a entidade descontava mensalidades na folha salarial dos jogadores e não tinha força alguma para defendê-los, sobretudo na questão do passe. “Os clubes acabam sempre levando a melhor”.
Como apurou o bravo repórter Niskier (que sequer imaginaria, no longínquo 1954, tornar-se um dia imortal das Letras), a transferência de Bigode do clube das Laranjeiras para o da Gávea foi conturbada devido a um “mal-entendido” do departamento médico do Fluminense. “Diziam que o médio tinha acabado para o futebol, estava ‘morto’ para as lides desportivas. Mas, bem tratado, recuperou-se, chegando a brilhar no grêmio da Gávea”.
Niskier frisou, contudo, que o treinador Flávio Costa mostrou-se desinteressado por Bigode, dispensando-o para promover o lateral Jordan, que acabara de ser contratado ao São Cristóvão. Coube ao cartola do Fluminense, Benício Ferreira, resgatar o antigo ídolo do clube. E pelo Fluminense conquistou seu maior título na carreira: a Copa Rio de 1952, uma espécie de campeonato mundial de clubes. Mas o fim da trajetória nos campos de futebol era iminente.
Após a carreira, Bigode evitou falar sobre futebol. Morou parte de sua vida na pequena São Mateus, no Espírito Santo, e na Rua Viveiros de Castro, em Copacabana. Ao contrário de Barbosa, que teve um destino impiedoso e vida paupérrima, Bigode conseguiu amealhar uma economia (“mais de um milhão de cruzeiros”, como dissera a Niskier) suficiente para tocar a vida. A passagem pelo futebol carioca permitiu-lhe comprar imóveis (teve cinco somente em Sagrada Família, bairro de BH), oito terrenos na Vila Industrial (também Minas) e empreender uma loja de material de rádio, televisão e refrigeradores, na Travessa Belas Artes, no Centro do Rio de Janeiro, com um sócio vascaíno, Amadeu Barbedo.
Nas eliminatórias para a Copa do Mundo, Brasil e Uruguai enfrentaram-se em junho de 2000. Bigode pisou, enfim, novamente no Maracanã para gravar seu pé no Hall da Fama do estádio e reencontrou Ghiggia. Os dois se abraçaram. “Foi meio difícil, mas não podia me negar a falar com ele”. Se quis abraçar Ghiggia, nunca mais quis conversa com Juvenal. “Essas vaias são para você”, teria dito Juvenal após o gol de Ghiggia. Bigode magoou-se. “Um companheiro me culpou pela derrota. Foi o que mais doeu”.
Bigode ficou só. Todos de sua família morreram. No final da década de 1990, após sofrer um acidente na mão que o impediu consertar aparelhos eletrônicos. o seu ganha-pão, decidiu deixar o Rio de Janeiro e migrar para São Mateus, no interior do Espírito Santo, onde foi acolhido por uma família que conhecera no Rio de Janeiro.
Na madrugada de uma quinta-feira, dia 31 de julho de 2003, problemas respiratórios e circulatórios, uma pneumonia crônica e um choque séptico derrotaram Bigode, que estava internado no Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, em Belo Horizonte.
No Cemitério Bosque da Esperança, na capital mineira, jaz aquele que, ao lado de Barbosa e Juvenal, foi um dos mais injustiçados pela “inquisição do futebol brasileiro”. Talvez, a torcida do Atlético Mineiro tenha redimido o craque. Era verdadeiramente idolatrado em Minas Gerais, como disse ao repórter Irapuan Barbariz: “A maior emoção já experimentada por mim, em tôda a minha vida esportiva, ocorreu em Belo Horizonte: integrava o quadro do Atlético e, após derrotar o São Paulo FC, em que figuravam King, Piolim, Noronha, Luizinho, Remo e outros, fui, à noite, ao Cinema América, ao entrar, recebi uma verdadeira ovação dos expectadores, pois eu havia consignado o tento único da pelêja e êles acharam por bem comemorar em mim a vitória alcançada, fazendo-me alvo de suas manifestações”.
Ao longo da carreira, o “Bigodinho de Arame” – como o chamavam na infância – merecia muitos apupos. Mas aquele gol do Ghiggia não deixou isso acontecer.
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