por Paulo-Roberto Andel
Vivemos tempos estranhos, onde volta e meia há quem queira reescrever a História, com as mais variadas intenções.
Conversando com meu amigo Marcelo Lessa, discutimos sobre as seleções mundiais de futebol de todos os tempos, divulgadas por publicações realizadas. E, fato mais recente, sobre as tentativas midiáticas de fazer com que craques como Cristiano Ronaldo e Lionel Messi sejam “superiores” a Pelé. Entre aspas mesmo, pois simplesmente não faz sentido.
Numa bela sacada de meu amigo, que a imprensa europeia, sempre engasgada com o fato do trono do futebol pertencer ao Brasil – não por hoje, mas pelo conjunto da obra -, tente promover a diminuição do tamanho dos nossos feitos, é explicável ainda que injustificável. Agora, duro de entender é quando os brasileiros caem em tal esparrela.
Bem antes de colocar as cinco estrelas no peito, a Seleção Brasileira já tinha posições respeitáveis no mundo do futebol, vide as Copas de 1938 e 1950. A derrota para o Uruguai, transformada exageradamente em desgraça nacional, levou muitos brasileiros ao suicídio – um fato silenciado pelos tempos -, quando na verdade tínhamos um timaço com jogadores espetaculares. E quando chegou o fim dos anos 1950, aí o Brasil não deixou barato: virou o jogo para cima de Uruguai e Itália, ambos bicampeões mundiais, conquistou três Copas em quatro disputadas e arrebatou para sempre a Taça Jules Rimet – ao menos simbolicamente, já que a mesma acabou surrupiada da sede da CBF.
Entre os anos 1950 e 1970, há uma era de absoluto predomínio do futebol brasileiro. Basta dizer que depois do tri no México, nossos grandes desastres foram um quarto lugar em 1974 e um terceiro em 1978, este sob circunstâncias já muito discutidas da partida Argentina 6 x 0 Peru. Em duas décadas e meia, quando o Brasil não foi supremo, esteve entre os melhores do mundo.
Tivemos uma safra de jogadores que nenhum país conseguiu, mesmo quando venceu uma Copa do Mundo. São tantos e tantos nomes que fica difícil listar, mas uma coisa é certa: num Olimpo de craques fantásticos, brilhou o nome de Pelé. Num tempo de equipes brasileiras com cinco, seis, sete craques em campo, ele conseguiu o título de Rei do Futebol e, já aposentado, de Atleta do Século XX. Atleta, concorrendo com monstros de todas as modalidades esportivas.
No mundo atual, o marketing é uma ferramenta fundamental para o aumento das arrecadações e, no futebol, isso não seria diferente. Assim, CR7 e Messi precisam ser exaltados à enésima potência, imortalizados, falados o tempo todo. Não existe dúvidas de que estão entre os maiores jogadores do século XXI. O problema acontece quando, para valorizá-los ao máximo, é preciso diminuir a imagem não somente de Pelé, mas a de Garrincha, Didi, Nilton Santos e de todo o futebol brasileiro.
Cada vez mais, somos reféns do capitalismo global, que fortalece algumas equipes européias e tira do Brasil seus melhores jogadores, às vezes com 19 ou 18 anos de idade. Não temos tempo para ter ídolos – as promessas se vão até mesmo sem ter jogado no time principal. Isso já nos coloca em franca desvantagem. Agora, querer apagar a História e reescrever os fatos é uma canalhice que os brasileiros não devem ou, ao menos, não deveriam referendar.
Para louvar Messi, Cristiano, Lewandowski ou qualquer outra fera do futebol mundial, não é preciso diminuir a figura de Pelé. Seus números e feitos estão disponíveis com facilidade no Google e no YouTube. Quem tiver preguiça de ler, basta ver. Não são fake news, está tudo lá. Números assombrosos, títulos incontáveis, partidas monstruosas. Para quem tem dúvidas sobre a genialidade de Pelé, basta consultar a lista dos maiores artilheiros da história do Santos: praticamente todos jogaram ao lado do Rei e, muitas vezes, receberam passes açucarados do camisa 10 para marcarem seus gols. Não é exagero dizer que, além dos mil e duzentos e tantos gols, Pelé deu passes para outros mil.
Os brasileiros precisam parar de fazer o jogo internacional de demolição da importância do nosso futebol no mundo.
Não está em jogo falar sobre a vida pessoal dos craques. Se estivesse, teríamos problemas no debate. Pelé, envolvido em situação polêmica com o rompimento com sua filha falecida, é pior do que CR7, que respondeu a processo por acusação de estupro? Ou de Messi, condenado por sonegação fiscal? Precisamos falar de Neymar? Essa vai ser a régua de avaliação? Não.
O futebol brasileiro vive a maior crise de identidade de sua história. Outrora famoso pela qualidade e talento, tem ficado cada vez mais medíocre pela opção da parte física acima de tudo. Os 7 a 1 de 2014 ainda doem no queixo, mas é inaceitável que os brasileiros diminuam o valor de jogadores que, décadas atrás levaram ao mundo inteiro o nosso nome como símbolo de vitória.
Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Vavá, Rivellino, Gerson, Paulo Cezar Lima, Carlos Alberto Torres, Gilmar, Félix e tantos outros nomes escreveram as páginas de ouro do futebol no mundo. Anos depois, foram sucedidos por Bebeto, Romário, Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho e outros – vivemos um outro ciclo entre 1994 e 2002, disputando três finais de Copas do Mundo e vencendo duas. O que dizer de tantos craques que tiveram chances reduzidas ou até mesmo nenhuma na Seleção Brasileira? A lista é imensa. De cara, Ademir da Guia, Dicá, Aílton Lira, Afonsinho, Carpeggiani, Cláudio Adão, Reinaldo, Zé Sérgio, Deley, Andrade, Geovani, Mauricinho, Robertinho, Enéas, Neto, Edmundo, Marcelinho Carioca. Mais no passado, Evaristo de Macedo, Dida, Canhoteiro, Zózimo, Marco Antônio, Edu, Coutinho, Pepe. No século XXI, Felipe, Roger, Alex. Se pararmos para fazer uma lista séria de 1958 para cá, passaremos de cem nomes com facilidade. Até aqui, não falei da Copa de 1982 e nem precisava: apesar de nosso “péssimo” quinto lugar, ali estavam alguns dos maiores jogadores da era moderna, com um time falado até hoje.
Pelé fez oitenta anos. É um ser humano, não Deus. Todos os que o viram jogar ficaram embasbacados. É assustador pensar que, com todo o seu talento inigualável, ele se divertia em peladas jogando como goleiro – e ainda defendendo pênaltis em jogos profissionais! Há sessenta anos ele é uma personalidade nas vidas brasileiras e mundial. Não se sabe de um único episódio público onde ele possa ter sido grosseiro ou deselegante – pelo contrário: nunca reagiu aos milhões de impropérios que sempre ouviu. Nunca se viu aspereza em suas declarações. Nunca faltou com o respeito aos brasileiros. Não preciso ter alinhamento político algum com Pelé para respeitá-lo como o maior jogador de futebol de todos os tempos, o Atleta do Século XX, o paradigma do futebol que todos os jogadores a seguir buscaram, nem monstros supremos como o já saudoso Diego Maradona, feras como Michel Platini, Zinedine Zidane, Johann Cruyff, Rummenigge, Matthaus e mais uma velha lista telefônica inteira.
Para finalizar, gostaria de contar uma pequena história sobre Pelé fora do campo, porque não adianta brigar com os fatos que ele construiu dentro das quatro linhas, ao menos para quem pretenda ser levado a sério. Meu amigo Marcelo Lessa, que inspirou esse texto, por muitos anos foi vizinho de Altair, prócer multicampeão do Fluminense e campeão mundial em 1962 no Chile. Altair teve uma linda filha que acabou falecendo jovem, vítima de leucemia. Ela teve um tratamento prolongado e caro, com medicações importadas regulamente, caríssimas, que o lateral não tinha como arcar financeiramente. Nunca se disse uma linha sobre o assunto, mas Altair nunca escondeu de ninguém que o tratamento de sua filha, que permitiu sua sobrevida, foi custeado integralmente e importado por Pelé. Apesar dos apedrejamentos e cancelamentos nas redes sociais, o Rei marcou golaços fora do campo também.
Ainda há tempo. Vamos respeitar os jogadores que ergueram o nome do nosso país frente ao mundo. Vamos respeitar Pelé. Vamos respeitar Garrincha. Vamos respeitar Didi e Nilton Santos. Carlos Alberto Torres. Vamos respeitar Félix. Não precisamos desprezá-los para admirar os craques das novas gerações, nem rasgar a História para justificar investimentos de marketing. Vamos respeitar os fatos, os dados, os campeões, o futebol brasileiro que já nos orgulhou muito.
@pauloandel
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