por Ricardo Dias
Jogando, sou uma mistura de Messi, Garrincha e Ronaldo Fenômeno: como Messi, uso mal a perna direita; como Garrincha, uso mal a esquerda; como o Fenômeno, não sei cabecear. Mas sou grande, impressiono, nem que seja pelo deslocamento de ar ou pelas leis da gravitação universal.
Desde uma certa idade curto uma pelada. Circunstâncias fora de meu controle me afastaram dos campos (ou ruas, ou becos, ou onde se estivesse chutando uma bola) por muitos anos, até que, já com uns 40 e algo, voltei a pisar um gramado. Artificial, mas era verde, pelo menos. Um bando de velhos como eu, não seria um problema. Mas, preocupantemente, havia uns garotos, também. Deixa as crianças, vamos jogar.
A primeira bola! O coração batendo mais forte – pela emoção e pela corridinha – e veio ela em minha direção, linda, rolando. Pensei: Vou dominá-la, tocar levemente com o lado externo do pé e lançar para aquele careca que está… Quando olhei para baixo de novo, cadê a bola? Minha estreia nos campos (vide coluna anterior aqui no Museu) se repetia na velhice: um infeliz de um moleque veio voando e, no meio de meu raciocínio elaborado, já estava do outro lado do campo. Não gostei. Na bola seguinte, a mesma coisa, e ele ainda se deu ao luxo de fazer um rodopio à minha volta. Parecia até desenho animado.
Avisei a um cidadão que estava do meu lado, com toda a serenidade:
– Vou dar um pau nesse moleque!
– Dá mesmo!
Com essa aprovação, já fiquei mais leve. Se ele tivesse me driblado, me feito de bobo na bola, o diabo, eu respeitaria. Mas ele só tinha um mérito: pulmão. Então, merecia. Avisei da vez seguinte, em que lhe tomei a bola:
– Respeito, moleque!
Ele fez cara de deboche. Mas a próxima foi muito saborosa: veio quente na minha direção e deixou a bola escapar um pouco. Tomou um lençol. E ME deu um cacete!!!!!!! A canela da gente, quando a gente envelhece, dói mais. Doeu muito. Mas minha sede de vingança foi atiçada. Capengando, o que me fazia um alvo mais fácil, continuei jogando. Ele veio de novo, sem nenhuma cautela, a pureza dos inocentes. Abri a perna, oferecendo o drible humilhante, e o bobinho caiu na conversa. A bola até foi mal tocada, bateu no meu pé esquerdo, mas minha perna direita bateu na cintura dele. Voou moleque abusado para todo lado. Claro, pedi mil desculpas, ajudei a levantar, atribuí à minha falta de jeito. Mas ele sabia que mereceu. Ele e o pai dele, o cara que disse “dá mesmo!”…
Mais jovem, futebol de salão com juiz. Chamado “time contra”. Um cara não gostava de mim, assuntos relativos ao sexo oposto. Me batia o tempo todo. Eu apanhando calado, tinha uma certa culpa no cartório, me sentia devedor. Determinada hora, me deu uma rasteira, bem dada, o juiz não viu. Ao se abaixar para fingir que me ajudava a levantar, pisou beliscando a minha coxa. Uma dor horrorosa, e sem pensar arriei o calção dele que, desequilibrado pelo susto, caiu com o pinto ao vento. Me agarrei com um cara do meu time, dizendo “Me larga! Me larga!”, mas quem estava segurando era eu, estava morrendo de medo, o bandido era bem mais forte. Saí vivo graças ao pessoal do outro time que segurou o sujeito por tempo suficiente para eu me mandar, já que fui injustamente expulso.
Mas o momento de glória foi numa pelada em terra batida. O Bagre, um colega de rua (também chamado Ricardo; éramos três homônimos, o Tricolor – eu, o Bagre e o Bailarino), arranjou uma pelada de time contra. “Time contra”, já que eu usei essa expressão três vezes, era quando a gente jogava contra um time mais ou menos organizado, não era cata cata ou par ou ímpar na hora do jogo. Ele arregimentou um time na rua e fomos todos na kombi do Eduardo da vidraçaria, que por algum motivo que me escapa resolveu ir junto. Talvez tenhamos mentido sobre haver mulheres, é uma possibilidade. E fomos, para uma cidade bem próxima do Rio.
Ao chegar nos deparamos com uma praça e um enorme espaço vazio irregular, cor de areia. Era uma visão inóspita, um sol de rachar, nem uma sombrinha. De colorido apenas uma carrocinha de picolé – que, descobri depois, não tinha nenhum para vender, não sei o que o cara vendia e achei mais seguro não perguntar. Um ambiente bucólico, tipo cidade do interior, com um detalhe mais pitoresco ainda: um padre assistia ao embate. Ele se vestia de azul claro, nunca tinha visto uma batina assim, de vez em quando chegava alguém e pedia a benção. E começa a partida. Bola com Ricardo Dias, que domina e faz um passe para Caolha. Caolha mata no peito, e rola para Zé Paulista, que devolve para Ricardo Dias que, com sua enorme e proverbial categoria, faz o gol. 1 x 0 com meio minuto de jogo. Fizemos uns 3 ou 4 gols em sequência, éramos ruins mas eles eram piores. E em vista da impossibilidade de inverter o placar, eles, de jogar mal, passaram a jogar mau, com perdão do jogo de palavras.
Baixaram o cacete, e o clima foi ficando pesado. Éramos seis mais o Eduardo, que não jogava e continuava procurando as mulheres, e eles eram uns 15, e iam crescendo de tamanho: os garotos foram dando lugar a uns galalaus enormes, que não pareciam interessados em jogar… Pensei, com minha também proverbial sabedoria: Vamos apanhar que nem uns miseráveis, aqui.
Pedi um tempo para beber uma água, concederam, chamei o Eduardo e avisei: se prepara que a gente vai sair correndo, esse jogo não vai acabar! Ele ficou pálido, mas disfarçou bem, foi para a kombi assoviando com a mão no bolso. Voltei e fui avisando um a um minhas intenções: a kombi estava perto de nossa defesa, em dado momento que fôssemos bater um tiro de meta nós correríamos para dentro. Todos concordaram, menos um que não entendeu bem – aparentemente ele tinha consumido o que o sorveteiro estava vendendo. Mas foi feito. A um sinal meu, fingi que estávamos combinando uma tática, e nos agrupamos. O dito padre estava do lado, me senti mais seguro, até que ele rugiu:
– Eles vão fugir!!!!!!!!
E o Neymar pensa que apanha muito…
0 comentários