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Paulo Cezar Caju

22 / maio / 2016

LÍNGUA VORAZ

texto: Flávia Ribeiro | fotos: Nana Moraes | vídeo e edição: Guillermo Planel

 

O garoto Paulo Cezar Lima tinha 10 anos e jogava futebol de salão no Flamengo quando sua vida mudou graças a um coleguinha de time, da mesma idade. O menino, admirador do talento daquele moleque driblador, que anos mais tarde somaria o apelido Caju ao sobrenome, pediu ao pai, com a maior pureza do mundo: “Adota ele!”. Assim, Fred, que nos anos 70 se tornaria zagueiro do rubro-negro da Gávea e do Botafogo, ganharia um irmão. O pai era o treinador Marinho Oliveira, também ex-zagueiro das duas equipes. PC acredita que o desprendimento de Fred,  disposto a aumentar a família, transformou para sempre o seu destino. “Tive a sorte de conquistá-los e a de a minha mãe entender que essa mudança seria o melhor para mim”, lembra ele, que até então era criado pela mãezona, Dona Esmeralda, na Favela do Tabajaras, em Botafogo, e da qual nunca se afastou.


NÃO SOU MARRENTO. SOU AUTÊNTICO. ODEIO FALTA DE EDUCAÇÃO, GROSSERIA E PRECONCEITO

Nesse momento, qualquer traço da conhecida marra do craque some de sua expressão e o jogador polêmico, de opiniões fortes, considerado arrogante por alguns, dá lugar a um homem extremamente agradecido ao irmão de criação, aos pais que o adotaram e à mãe biológica, para quem, aos 18 anos, já profissional do Botafogo, deu entrada num apartamento, na Gávea. Aos 66 anos, não esquece dos que o resgataram do fundo do poço, na fase mais tenebrosa da vida, quando mergulhou no álcool e na cocaína durante 15 anos, entre 1985 e 2000.  O radialista Elso Venâncio, o dirigente Francisco Horta, o advogado Nélio Machado, o empresário João Alberto Barreto e o cantor Agnaldo Timóteo foram alguns dos anjos da guarda. “Nunca entrei numa clínica. Cláudio Adão e a mulher, Paula, me levaram para dentro da casa deles, onde morei por um ano para fugir do vício”, recorda. Sóbrio há 16 anos, sente-se tão seguro de sua recuperação que entrou de sócio numa distribuidora de champanhe. “Que ex dependente químico toparia se associar a uma distribuidora de champanhe? Topei porque me garanto”, diverte-se.

Pouca gente sabe, mas Caju só começou a usar drogas após pendurar as chuteiras. Durante os 20 anos como profissional, nem mesmo uma cervejinha descia, escaldado pelos conselhos do pai: “Ele nos dizia que o dinheiro ia embora com cigarro, farra e mulheres”. Assim que foi adotado por Marinho, Caju saiu da favela e começou a correr o mundo. Morou em Tegucigalpa, capital de Honduras, dos 10 aos 12 anos, quando o pai foi treinador da seleção do país. Lá, era treinado pelo próprio Marinho, no meio de adultos. Depois, seguiu para a Colômbia, onde ele e Fred chegaram a jogar na primeira divisão, aos 15 anos. “Em Honduras, queriam até me naturalizar. Mas não havia chance, eu queria ser campeão do mundo com a seleção brasileira”. E conseguiu, participando daquela que é considerada por muitos especialistas a melhor seleção de todos os tempos, campeã no México, em 1970. Em clubes, jogou pelos quatro grandes do Rio, além de Grêmio e Corinthians, no Brasil, Olympique de Marseille e As Aix, na França, e California Surf, nos Estados Unidos. Mas no Leblon, onde tem um apartamento, cravou sua marca! “Em 70, importei uma Fiat Spider 174, abóbora e preta, da Itália. Tirava onda pelas ruas do bairro. Também colecionava gravuras de Portinari, Picasso, Monet, Renoir, Van Gogh e Salvador Dali”.

Ao longo da carreira, PC também tirou onda: “Joguei na seleção do tri, no melhor Botafogo de todos os tempos, na Máquina Tricolor e fui bi pelo Flamengo. No Vasco, fui vice” , gargalha. No Olympique, em 75, também foi vice-campeão nacional, com 18 gols. Ídolo por onde passou, torce pelo Botafogo e orgulha-se em levar a estrela solitária do lado esquerdo do peito, mas não esconde a revolta com a situação atual do time – aliás, com a de todos no Brasil. “Faz anos que não torço para a seleção brasileira e nem pelo Botafogo. Vou torcer para esse futebol daqui? Não é que eu queira o Garrincha de volta. Eu quero é a essência de volta. Você vê que está tudo errado até pelos apelidos dos jogadores e dos times: He-Man, Guerrero, time de guerreiros, time de gladiadores, jogo pegado. Condiz com os novos estádios, que são chamados de arenas”, ironiza.


VOCÊ VÊ QUE ESTÁ TUDO ERRADO ATÉ PELOS APELIDOS DOS JOGADORES E DOS TIMES: HE-MAN, GUERRERO, TIME DE GUERREIROS, TIME DE GLADIADORES, JOGO PEGADO. CONDIZ COM OS NOVOS ESTÁDIOS, QUE SÃO CHAMADOS DE ARENAS

A culpa, para PC, é de um personagem inusitado, poucas vezes lembrado quando se fala da má fase do futebol brasileiro: o professor de Educação Física. “A gente errou na proliferação desses professores, que nunca jogaram bola, nunca estouraram a cabeça do dedão no paralelepípedo, nunca fizeram uma bola de meia. Eles preparam times de atletas, não de jogadores. Driblar é quase proibido, se o garoto dribla muito, eles tiram do time. Aí vem o comentarista que não entende nada também e só fala o óbvio. Não fala que o futebol do Rio está morto. É por isso que não me contratam para comentarista. Eu diria logo: “Troca de canal, vai ver Animal Planet”.

Apesar de morar com a mulher, a dentista Ana, irmã do ex-jogador Afonsinho, em São Paulo,  PC vive no Rio. Durante a entrevista, num de seus points preferidos, no Leblon, o bar Chico e Alaíde, era abordado por quem passava pela rua e por clientes do boteco. Recebia também inúmeros telefonemas, inclusive de franceses. Todos elogiavam sua coluna no Globo, sua postura e impaciência com o futebol atual. “Você está certo, PC, chega desses gaúchos à frente da seleção!”, bradou um dos admiradores.

Paulo Cezar, definitivamente, não tem nenhum apreço pelo trabalho dos técnicos gaúchos. “De 90 para cá, quem treinou a seleção em Copas do Mundo? Lazaroni e Parreira, dois preparadores físicos, e Felipão e Dunga, dois gaúchos. E falam muito no Tite, outro filho dos pampas. E a escola gaúcha é a do futebol defensivo, do regulamento embaixo do braço, da eficiência. Odeio! Em 1994 e em 2002, só vencemos porque havia atacantes foras de série em cada uma daquelas seleções: primeiro, Romário e Bebeto; depois, Ronaldo e Rivaldo. Joguei contra o Felipão, beque raçudo, vigoroso. Faz os times à sua imagem”, critica, enquanto só salva a pele de dois técnicos brasileiros: Marcelo Oliveira e Cuca.


QUE EX DEPENDENTE QUÍMICO TOPARIA SE ASSOCIAR A UMA DISTRIBUIDORA DE CHAMPANHE? TOPEI POEQUE ME GARANTO.

Entre os jogadores da seleção, PC elogia Neymar e Philippe Coutinho. Mas logo lembra que este último nem sempre é convocado. “Adoro esse menino, mas está sempre fora da lista. Gosto do Neymar também. Só tem que corrigir o individualismo, mas já melhorou muito no segundo ano de Barcelona. Ele é muito bom, mas chega à seleção e tem que jogar com uma concessionária, cercado de volantes”, alfineta e também cospe marimbondos no tratamento dado a Jefferson, colocado no banco de reservas da seleção. “Colocaram um gaúcho como titular e certamente já irão negociá-lo para algum clube do exterior. Virou bagunça!”.

O jeito de falar parece justificar a fama de marrento, mas ele a rebate: “Não sou marrento. Sou autêntico. Odeio falta de educação, grosseria e preconceito”. E emenda: “Há algum tempo, num mesmo evento, Sérgio Cabral e Eduardo Paes me viram e nem me cumprimentaram. O Príncipe Albert, de Mônaco, chegou e me deu dois beijos no rosto”. Paulo Cezar também sempre fez questão de levantar a bandeira contra o racismo, especialmente no futebol. E não se conforma com companheiros que não contribuem com o fim do preconceito de forma mais incisiva. “Você já viu o Pelé defender a causa negra?”, pergunta. Caju foi um dos primeiros jogadores brasileiros a aderir à estética Black Power. Apelidado de “Craque da Moda” pelo radialista Waldir Amaral, ele garante que, nesse caso, não foi modismo. Leu sobre o movimento dos Panteras Negras, nos Estados Unidos, e achou importante marcar posição. Especialmente por já ter vivenciado o racismo na pele.

“Eu não era ‘negro sim senhor’. Era negro de bom gosto, barriga barra de chocolate, calça boca de sino, black power. Então, chegava em São Paulo e era vaiado. Em 68, quando o Botafogo foi jogar em Bagé, o vice do clube de lá quis nos fazer uma homenagem. Mas, ao chegar no restaurante, tinha uma placa proibindo a entrada de negros”, lembra. Mas Caju nunca curvou-se. Venceu no futebol, no Brasil e na França. Mágoa, só do Grêmio, que o dispensou depois da conquista do Mundial, de 1983. Virou modelo, desfilando para várias marcas nacionais e estrangeiras, inclusive a Maison Hechter, do estilista francês Daniel Hechter. Conviveu com famosos de várias áreas e todo ano joga pelo Black Star, com o tenista Yannick Noah e o craque Roger Milla. “Hoje os rebeldes são sem causas”, diz. O cantor de reggae Bob Marley era seu fã de carteirinha. “Ele veio ao Brasil e pediu para me conhecer. Eu nem entendia de reggae, meu negócio era Marvin Gaye e Stevie Wonder. Mas viramos amigos, jogamos juntos no Polytheama, time de pelada do Chico Buarque. Hoje, adoro a música dele”, conta.

Garante não ter arrependimentos. Não se orgulha dos 15 anos dedicados ao álcool e à cocaína, quando perdeu dois apartamentos e chegou a vender a medalha da FIFA de tricampeão do mundo, e uma miniatura em ouro da Taça Jules Rimet, tudo para sustentar o vício. Mas acredita que foi um aprendizado e torce para que sua história sirva como exemplo. Há alguns anos, chegou a conversar com Jobson, ex-atacante do Botafogo, atualmente suspenso pela FIFA por problemas relacionados às drogas. “A pessoa tem que querer sair dessa. Eu não sei se ele quer. Espero que sim”, comenta.

A guinada de PC foi em 2000, após uma amiga cardiologista alertá-lo sobre as grandes chances de morrer cedo, caso continuasse com aquela vida louca vida. Foi ajudado por amigos, teve uma recaída, mas voltou à sobriedade. Pouco depois, apaixonou-se pela dentista Ana, irmã de seu ex-companheiro de Botafogo, Afonsinho. Ela avisou: “Não quero alcoólatra nem drogado na minha vida”. O amor falou mais alto. Hoje, vive com saúde, cercado por um caminhão de amigos. Cita os mais queridos no meio do futebol, como Zagallo, Cláudio Adão, Gérson, Carlos Roberto, Piazza, Jair, Delei, Francisco Horta, o cunhado Afonsinho e o irmão, Fred. Preocupa-se em esquecer de alguns, afinal a lista é grande, e para de falar fugindo de alguma injustiça. “Aprendi com meu pai que o futebol te dá muita possibilidade de fazer amigos. E eu fiz”.

 

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