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PARTIDA PERFEITA

5 / janeiro / 2017

por Zé Roberto Padilha


O Estádio Rei Pelé, em Maceió, é um daqueles templos sagrados do futebol brasileiro que foram construídos durante o milagre econômico, na década de 70. Quando você está lá dentro jogando, a laje fecha sobre você e te engole, como no Mineirão, canalizando o eco da torcida para perto de onde você vai bater o corner ou o lateral. Como no Serra Dourada, no Olímpico e no Maracanã.

De lá, bem longe, entre a Bahia e o Pernambuco, numa quarta-feira à noite durante o Campeonato Brasileiro de 1978, em uma partida entre o meu Santa Cruz e o CRB, guardo uma das mais gratas lembranças e lições de toda a minha vida como atleta profissional. Em 17 anos de carreira foi por ali que exibi talvez a única atuação perfeita com a bola nos pés. Qual desportista, ator, médico ou engenheiro não se lembra do dia em que acertou tudo durante a prática do seu ofício? Naquela noite iluminada, em que Júpiter devia estar alinhado com Netuno, o Biorritmo, badalado na ocasião, estava favorável e as cartas e os búzios conspiravam a meu favor. Dos 70 passes em média que realizo por partida dera-me ao luxo de perder, no máximo, uns quatro. Jogadas de linha de fundo? Em quatro das cinco tentativas deixei o lateral para trás e ao tentar os cruzamentos sobre a grande área adversária acabei acertando quatro passes, dois na cabeça do Nunes, um para o voleio certeiro do Betinho e o ultimo para um peixinho de Luis Fumanchú que decretou a nossa vitória por 4×1.
 


Durante esta abençoada partida, eu não corria. Voava. Roubava as bolas do meio campo do CRB com quem tirava pirulitos de bebês e iniciava os contra ataques com uma rapidez e eficiência impressionantes. E enquanto jogava, pensava: mas por que justo aqui, longe da grande mídia, apenas diante das ondas médias da Rádio Clube de Pernambuco e da Gazeta de Alagoas, que transmitiram a partida, e sem qualquer canal de televisão, teria que ser o local do meu melhor momento? Por que não joguei tudo isso no Maracanã, dois anos antes, quando defendi o Flamengo e disputei a concorrida final da Taça Guanabara contra o Vasco frente a 174 mil pessoas, o quarto maior público da história do Maracanã? Por que tal inspiração não aconteceu há três anos, quando disputei as semifinais do Campeonato Brasileiro pelo Fluminense, contra o Internacional, e fui incapaz de impedir que Falcão, Caçapava, Paulo Cesar Carpeggiani, Flávio e Lula nos eliminassem da competição?

Se tivesse tal inspiração naquelas ocasiões, jogando na Cidade Maravilhosa e defendendo camisas mais poderosas, certamente seria convocado para a Seleção Brasileira. Mas aprendi a não discutir com o destino. É ele que nos conduz, e se ele quis que fosse ali o meu dia de Rivelino…então que tal um chute de fora da área? Confiante, quando clareou na intermediária não virei o jogo para os laterais, como normalmente fazia. Resolvi arriscar e juro que ela passou raspando a trave a torcida coral gritou úúúúúúú…….Dribles, então, que eu pouco tentava por jogar a base de dois toques, acabei dando uns quatro de tão abusado que estava. É impressionante o que pode fazer a mente, eu jogava e pensava nisto, uma vez desobstruída das limitações cotidianas que me condicionavam a executar um bom, eficiente e previsível futebol.

Terminado o jogo parti para o vestiário como Cesar Cielo se dirigiu ao pódio olímpico na China: pisando nas nuvens. Afinal, eu era um dedicado atleta profissional, disputava a pole na corridas das Paineiras e Vista Chinesa, me entregava nas partidas à exaustão e merecia, nem que fosse por uma noite, num palco pouco iluminado ou reconhecido, jogar como sempre sonhei. Exibir o futebol que sempre busquei. Passei pelo meu treinador, Evaristo Macedo, que disse o de sempre após nossas vitórias: “Valeu, garoto!”. Mas como valeu se eu nunca havia jogado daquele jeito com nenhum dos 16 treinadores anteriores? E fui encontrando pelo caminho repórter alagoano, narrador baiano, torcedor invasor local protestando contra a arbitragem, passando por adversários e ninguém deu a mínima para o que havia realizado.

Será que eles pensavam que eu jogava sempre assim? E se assim fosse, o que estaria fazendo ali, no Santa Cruz, em Recife, turismo em Boa Viagem? Pagando promessas? Ou visitando a Feirinha de Olinda e o Porto de Galinhas? Quando alcancei o vestiário já era 50% alegria e 50% frustração. Eu que havia sacrificado noitadas, evitado as cervejas, jamais tocado em um cigarro para tentar com meu futebol atingir a perfeição, quando a atinjo ninguém foi capaz de reconhecer. Não havia medalha, um Motorádio, nem um abraço mais apertado. Já nos vestiários de banho tomado, notei meus companheiros felizes com a vitória que nos faria avançar na classificação do Brasileirão, e pela goleada alcançada fora de casa. Igualmente, nenhum deles reconheceu minha iluminada partida. Nem um tapinha nas costas recebi.

Decepcionado, me dirigi à balança na qual seu Amauri, um simpático funcionário do clube, tinha a missão de nos pesar antes e depois das partidas. Quando subi e ele conferiu o que tinha perdido, confidenciou baixinho: 

– Que bela atuação esta noite, hein, Zé Roberto? Parabéns, você foi brilhante!

E que alívio senti naquele instante! Não fiquei prosa ou mascarado, apenas feliz. Afinal, de que valeria uma busca pela perfeição, em qualquer profissão, se quando a alcançamos, nem que seja por apenas 90 minutos, o tempo dos holofotes da nossa carreira, ninguém for capaz de reconhecer o seu esforço e obstinação?

De lá para cá, até 1985, quando encerrei minha carreira jogando no Bonsucesso FC, não me recordo de nenhuma atuação parecida, de desequilibrar uma partida, embora continuasse treinando passes, aperfeiçoando chutes, cabeçadas e domínio de bola. Continuei a ser o Zé Roberto de sempre, mas nunca mais um Zico, um Rivelino, um Gerson como naquela partida perfeita. E foi com seu Amauri que aprendi a maior lição de todo este episódio: sempre que assisto de perto, seja como treinador ou espectador, uma atuação acima da média, em qualquer modalidade esportiva, faço questão de esperar o final da partida e dar uma força e incentivo ao autor da proeza. Se for longe, pela TV, escrevo um artigo ou procuro lhe enviar um e-mail. Só eu sei o que foi preciso para conseguir um dia ser perfeito no que fazia, e jamais me esqueci como a indiferença e o descaso são capazes de encobrir o reconhecimento que você tanto lutou por merecer.

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