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JOGO DE ESTREIA

Por Ivonesyo Ramos


Benício posa com uma de suas obras mais famosas

Benício posa com uma de suas obras mais famosas

Você dá uma bola para a criança e ela, feliz da vida, começa a brincar. Assim foi com José Luiz Benício da Fonseca, o Benício, e sua bola favorita: o desenho. Estamos em meados de 1960 e o nosso craque gremista, herança de família e tricolor a primeira vista, já encantava o público com suas pinceladas nas capas de pocketbooks e editoriais. A McCann Erickson, agência de propaganda onde trabalhava, pede duas pranchas para ilustrar a nova campanha para o banco do estado de Minas Gerais. A primeira, uma visão do Maracanã em clima de final de jogo, onde o texto homenageia o cliente numero 500.000 apaixonado por futebol. E a segunda, um mix de imagens onde Garrincha e Pelé disputam a bola. Olhando hoje, a imagem tem um certo tom profético já que Benício viria a ser o Pelé da ilustração.

Perguntei se ele sentiu o famoso frio na barriga da estreia em uma campanha nacional. Com um sorriso gostoso, respondeu que não e acrescentou:

– Já não lembro mais! (e gargalhou)

Sua produção tem uma quantidade e qualidade fenomenais. O artista revelou ainda que, quando vê trabalhos muito antigos de sua autoria, precisa de algum tempo para acessar a memória.

Observar o original ilustrado em “gouache” é uma grande felicidade. Admirar as pinceladas geniais compondo a cena é um privilégio. Ao seu redor, amigos de trabalho e de prancheta. Benício, no centro, veste camisa azul. Sim, a cena é de um tricolor saindo do Maracanã em seus áureos tempos!


Benício, de camisa azul, rodeado por amigos em uma de suas obras

Benício, de camisa azul, rodeado por amigos em uma de suas obras

Da esquerda para direita temos: Roberto, Melo Menezes, Flavio Colin, Joaquim pessego, Coutinho (jogador do Santos) e seu irmão. Além desses, o próprio Benício posou para as figuras na margem do campo à direita.

Mas e o futebol Benício?

– Retratei muito o tema em meus trabalhos é uma paixão nacional, mas confesso não ser meu forte.

No entanto, a rivalidade Fla x Flu é sempre tema de brincadeira com seu assistente, visto que Carlos Henrique não perde oportunidade de gabar-se do Flamengo a ponto de batizar de “Verde rubro negro” a cor verde da natureza carioca. Vale destacar que na ilustração tem duas bandeiras do Flamengo e nenhuma do Fluminense. E a brincadeira segue…


Cartaz do filme Pelé a Marcha

Cartaz do filme Pelé a Marcha

Por serem sempre trabalhadas por referências fotográficas, não havia a necessidade de ir ao Maracanã para fazer as ilustrações. Com treze anos, Renato, um dos quatro filhos de Benício, se encarrega de insistir com o pai, que finalmente o leva a um Flamengo e Vasco. Recheado de aventuras, com direito à falta de luz, o Flamengo ganhou de 1 a 0 e estava ali selado um novo flamenguista doente. Renato tem um filho, Arthur, e adivinhem? Já veio perguntando ao pai como entra para faculdade e se forma jogador do Flamengo. Em uma quarta-feira de cinzas, dia do seu aniversário de seis anos, Arthur pede ao avô Benicio para ir ao jogo do Flamengo com ele. Isso mesmo: Benicio sozinho no meio de rubro-negros!

Há mais de 50 anos na área, Benício já trabalhou com os mais variados temas e clientes, utilizando na maior parte de seu trabalho o “gouache” sobre papel. É reconhecido por colegas e público em geral como um dos ilustradores brasileiros de maior destaque. 

Em sua carreira de ilustrador, Benicio mostra como o futebol despertou paixões. Tudo isso graças a sua capacidade de ilustrar multidões embaladas de alegria, como as torcidas às vésperas do apito inicial. Há quem pergunte qual o segredo, não há segredo. Ele pintou tudo com a alegria e o amor de criança revestido de todas as responsabilidades do mundo adulto. Alegria e amor dão vida a tudo, é o mesmo sentimento estampado no sorriso da criança ao ver uma bola!

Original e Obrahma

Original e obrahma

texto: Sergio Pugliese | vídeos: Guillermo Planel | fotos: Marcelo Tabach

 

Os dois Obamas nasceram no dia 4, o original em agosto e o genérico em junho, “um mês antes da Independência dos Estados Unidos”, como gosta de frisar o sósia Rinaldo Gaudêncio Américo (quase América!!!). Os dois Obamas tiveram pais negros e mães brancas. Os dois Obamas não são muito íntimos de uma bola de futebol, o original prefere basquete e o genérico, atletismo. Mas no Museu não existe concorrência e tudo acaba em cerveja. Se um é Original o outro é Obrahma e fica tudo em casa!!!

– Esse é último ano “nosso” no poder, mas ainda temos um futuro brilhante pela frente – afirmou Rinaldo, motorista da Rádio Globo.

Cria de Campo Grande, Rinaldo Barack, como assina no perfil do Facebook, é constantemente chamado para eventos e até desfilou de sunga na Parada Gay. É ultra profissional e acompanha a mudança de guarda-roupa do presidente. Sabe quando mudou a gravata, os cortes de terno e cabelo. Quando sua participação é mais profissional chega a pintar o cabelo de grisalho. Virou folclore na Geral do Maracanã quando ia aos jogos de seu Mengão, de terno e com dois guarda-costas, de óculos escuros e elegantemente vestidos.

– Se tivesse o poder de um presidente ordenava que trouxessem a Geral de volta. Não custava nada criarem um espaço para esses personagens que davam vida ao Maracanã.     

 

VOA CANARINHO, VOA…

Por Mariza Pelegrineti

Quando eu era pequena, lá em Barra Mansa, o programa de domingo era ‘batata’: fim de tarde, a família reunida em volta da mesa de pedra no quintal da tia Déa para ouvir futebol pelo radinho de pilha! Meu pai, Ary, apaixonado pelo tricolor e sempre assoviando – talvez para acompanhar os canários que volta e meia trazia engaiolados para casa – deixou em mim e no meu irmão Fábio o amor pelo Flusão. Minha mãe, Ena, também era tricolor, mas virou casaca à época do Zico e passou a fazer parte da torcida rubro-negra da família, pulando pro lado dos meus irmãos Cláudio e Eloísa. Se não me falha a memória, a caçulinha Ângela sempre fez parte da turma do ‘deixa disso’, para separar as possíveis desavenças futebolísticas da família Fla x Flu, e nunca vestiu a camisa de time algum, muito pelo contrário…


O escrete canarinho

O escrete canarinho

Mas o tempo passa, o tempo voa, e hoje a tia Déa, lá em Barra Mansa, que me perdoe, mas vou roubar o papel dela no remake desta história. Dez sobrinhos e três filhos mais tarde (dois tricolores e um flamenguista), hoje, 2 de outubro de 2011, eu sou a tia desta história. Como não tenho quintal, nem radinho de pilha, resolvi alçar vôos maiores e deixar registrado aqui neste blog: finalmente, a família resolveu torcer por um só time! Calma, ninguém mais virou a casaca! Isto só foi possível graças à ‘íncrível’ campanha dos meus sobrinhos flamenguistas Maurício – vulgo Batata, ou, Sr. Incrível – e seu irmão Luiz, ou Elefante, filhos do meu irmão tricolor Fábio (e minha mãe que sempre dizia ‘quem sai aos seus não degenera’…hehehehehe) e da Tininha, também da turma do deixa disso!

Bem, voltando ao futebol, que é a pauta do dia: Maurício e Luiz – que hoje completa 24 anos – vão carregar a família na tarde deste domingo para torcer pelo Canarinho FutebolSociety, time para o qual ambos suam a camisa em campo e que participa, pela primeira vez, da final da série Prata do Campeonato organizado pela Niteroi Futebol Sete, Liga de Futebol Society de Niterói, no Colégio Salesianos, em Santa Rosa. Claro que eu, como tia coruja, tenho certeza que o Canarinho deve muito esta classificação para a final ao desempenho dos dois!!!


A tia coruja e os sobrinhos peladeiros

A tia coruja e os sobrinhos peladeiros

Novamente voltando para o campo, o jogo, contra o Znit F.S., começa às 15h30. A expectativa dos organizadores é que mais de mil pessoas – entre equipes e público – compareçam às finais do campeonato. E no meio desta galera estaremos todos da família lá, tricolores, flamenguistas e a galera do ‘deixa disso’ para torcer pelo resultado que, esperamos, também seja ‘batata’: Voa Canarinho, voa …

QUEM SEGURA BETINHO?

por Sergio Pugliese


BRASÍLIA, da esquerda para a direita, em pé: Vanderlei (torcedor), Odamyl, Deda, Paraíba, Tarcis, Abílio, Alemão, Moeda, Lair (massagista) e Gama (presidente). Agachados: Alfredinho, Cascão, Bafora, Deca, Betinho Carqueija, Sergio e Pedrinho.Brasíli…

BRASÍLIA, da esquerda para a direita, em pé: Vanderlei (torcedor), Odamyl, Deda, Paraíba, Tarcis, Abílio, Alemão, Moeda, Lair (massagista) e Gama (presidente). Agachados: Alfredinho, Cascão, Bafora, Deca, Betinho Carqueija, Sergio e Pedrinho.

Brasília 4 x 0 Matias Barbosa (Juiz de Fora)

Com a elegância de sempre Betinho Carqueja, zagueiro ao estilo Mauro Galvão, se antecipou ao centroavante e saiu jogando de cabeça erguida. Nesse momento, a pelada foi interrompida por um baixinho gorducho, que invadiu o campo. Betinho custou a acreditar mas o homem em questão era seu médico particular tentando salvar sua vida. Não há dúvida, Betinho é um paciente-bomba! Carrega no peito três pontes de safena e há alguns anos enfrentou uma delicada cirurgia para desentupir uma artéria, que o deixou 12 dias internado. Betinho é assim, vive driblando o cruel momento de pendurar as chuteiras. 

– Betinho, você está brincando com a verdade – gritou o doutor. 

– Acordei bem disposto e achei que dava – desdenhou. 


Betinho Carqueija, Tião Búfalo, o saudoso Zeca Diabo, Evaristo de Macedo e Marinho Picorelli (Foto: Guilherme Careca)

Betinho Carqueija, Tião Búfalo, o saudoso Zeca Diabo, Evaristo de Macedo e Marinho Picorelli (Foto: Guilherme Careca)

Os amigos pressionaram pelo reinicio do jogo. Sabiam que Betinho era tinhoso e não seria dobrado facilmente. Mas dessa vez ele cedeu e assistiu o resto da partida na beira do campo, emburrado como poucas vezes se viu. Betinho conhece seu corpo e seus limites como ninguém. Seu currículo médico se compara a um catálogo telefônico, mas ele continua amando a bola mesmo ela já tendo lhe causado alguns prejuízos. Com 13 anos, jogava bola debaixo de um temporal quando um galho caiu e rachou sua cabeça. Ao todo foram três cabeças quebradas. Dias depois, ainda enfaixado, pulou o muro do vizinho para pegar sua bola e foi atacado por um vira-latas. Doze pontos. Estiramentos, distensões e torções, não contabiliza. Mas dentro de campo já quebrou uma perna, um braço, o dedo mindinho, o nariz e a clavícula. Os dedões do pé não conhecem unha há tempos e tem astigmatismo por conta de uma bolada. Fora isso, sua respiração é falha, é diabético, tem hepatite crônica e a labirintite lhe faz perder o equilíbrio nos jogos. Ah, ainda teve duas pneumonias fortes. 

Mas quem segura Betinho? Setenta quilos, 74 anos e um amor pela bola indomável! 

– Ele quer morrer em campo. Deixa! – resume o filho Marcelo, zagueiro de responsa, que segue o caminho do pai, não pelo futebol, dez degraus abaixo, mas pelos problemas médicos: sofre com uma artrose no quadril e uma fratura de tornozelo. A neta Marcela, de 17 anos, não perde um jogo e a mulher Edite desistiu de dar conselhos até por já ter sentido na pele o poder da concorrência com a bola. Há alguns anos, no momento em que ela operava hérnia de disco, Betinho Carqueja corria atrás dos atacantes no campo do Curupaiti, um de seus palcos preferidos. 


PALMEIRAS, da esquerda para a direita, em pé: Jorge (torcedor), Roberto, Betinho Carqueija, Jorginho, Delmo, Maurílio (Atlético MG), Jorge Luiz, Joaquim (presidente) e Nilo (técnico).Agachados: Dequinha (ex-Desportiva ES), Joel e Paulinho (tricampeõ…

PALMEIRAS, da esquerda para a direita, em pé: Jorge (torcedor), Roberto, Betinho Carqueija, Jorginho, Delmo, Maurílio (Atlético MG), Jorge Luiz, Joaquim (presidente) e Nilo (técnico).

Agachados: Dequinha (ex-Desportiva ES), Joel e Paulinho (tricampeões pelo Flamengo 53/54/55 e 58), Paulinho (Fluminense) e Mauro.

Palmeiras 7 x 1 Frigorífico (Campo do Confiança), 1965.

– Para ele, a bola está em primeiro lugar. Em segundo e terceiro também – reconhece, resignada. 

A fragilidade de Betinho é superada por sua teimosia. 

– É isso que me deixa vivo – resume. 

A pelada realmente exerce uma força maior sobre ele. Quando a bola começa a rolar suas articulações ganham vida própria, é como se bebesse da fonte da juventude, voltasse a ser criança. Na verdade, quando menino Betinho repetia as mesmas artes de agora. Não tinha sarampo, catapora ou coqueluche que o prendessem em casa. A bola guardada debaixo da cama era sua grande companheira e fugia com ele para onde fosse. Mesmo debilitado, ele marcava presença e voltava mais bem disposto para casa. 

– Não morri por causa disso. A pelada me faz sentir vivo! Me deixem correr!!!! 

Ninguém segura Betinho!


PALMEIRAS, da esquerda para a direita, em pé: Chocolate II, Otaziano (Bangu), Delmo, Joelson, Roberto, Jorginho e Dadinho (mascote).Agachados: Fernando, Chocolate I, Joel (tricampeão pelo Flamengo 53/54/55 e 58), Betinho Carqueija e Mauro.Palmeiras …

PALMEIRAS, da esquerda para a direita, em pé: Chocolate II, Otaziano (Bangu), Delmo, Joelson, Roberto, Jorginho e Dadinho (mascote).

Agachados: Fernando, Chocolate I, Joel (tricampeão pelo Flamengo 53/54/55 e 58), Betinho Carqueija e Mauro.

Palmeiras 1 x 0 Industrial (Paracambi)

DEFENSORES DA COLINA DO ALTO DA VISTA ALEGRE: O VELHO JOGADOR

por Mauricio Marzano

O texto “Adeus às Armas”, publicado na coluna “A Pelada como ela é” em março de 2012 no O Globo, em que Chiquinho do Galo Branco era personagem de destaque, ganha agora uma sequência emocionada. Maurício Marzano nos informou sobre o falecimento de seu tio em 12/6/15 e enviou esse texto em sua homenagem.

Era meu tio. O mais novo entre oito irmãos e o único que ainda vivia. Já passara dos oitenta e as vicissitudes da idade já lhe pesavam sobre o corpo e a saúde, mas não sobre a mente, sempre lúcida e dotada de uma inteligência afiada e um senso crítico incomum.

Mal havia iniciado o ano de 1928 e as comadres já diziam para a minha avó que o bebê nasceria lá pelo final do mês de fevereiro. Talvez não esperasse o Carnaval, diziam umas. Talvez nascesse na Quaresma, replicavam outras. Se fosse homem, dizia ela, seria Francisco igual ao pai. Melhor, Francisco José idêntico ao pai. Este desejo de ter um filho chamado Francisco vinha desde sempre. Por uma circunstância ou outra, não conseguia realizar aquela vontade. Ou porque um filho nasceu no dia de um santo importante. Ou porque um fato maior a obrigou a escolher outro nome.  E os filhos mais velhos vieram a se chamar Benedito, Cosme, Sebastião e Antônio. E nenhum era Francisco. Como Francisco de Assis, o santo, ou como Francisco José, o pai, conhecido nas redondezas como o Chico do Jota de Itaverava.

Carnaval passou, chegou a Quaresma e, exatamente na primeira quarta-feira depois das Cinzas, Francisco José veio ao mundo enquanto a folhinha de Mariana dependurada na parede da Casa Grande do Prado em Lafaiete, ou melhor, Queluz de Minas indicava o dia 29 de fevereiro. O inusitado da data causou uma mal explicada angústia em Chico do Jota, mas minha avó, mulher de uma fé inquebrantável em Deus, via aquela coincidência como um bom augúrio, um sinal da Divina Providência sobre o menino Chiquinho, como veio a ser conhecido para se diferenciar do outro Francisco, o pai Chico do Jota .

A angústia de Chico do Jota provou ter fundamento. Meu avô era um homem de ação e acreditava na força e no valor do trabalho. Ele via o trabalho com o fervor de um calvinista, se calvinistas houvesse no interior das Minas Gerais. E os frutos do seu trabalho já apareciam e lhe mostravam um rumo seguro e promissor para o futuro. Mas a fatalidade o atingiu antes dos quarenta anos, interrompendo sua luta e seus sonhos. Uma reles infecção, um tempo sem antibióticos e uma medicina empírica com médicos semi-curandeiros se juntaram e conspiraram para tirar-lhe a vida em poucos dias. Mal seu corpo baixou à terra, minha avó compreendeu que era dela a missão de criar os oito filhos, o maior com treze anos e o menor com dois meses, e que só contaria com o seu trabalho e esforço próprio para esta tarefa quase inimaginável. Não que não houvesse recebido apoio dos familiares, todos lá do distante distrito de Itaverava, todos homens do campo, acostumados à dura faina de cuidar do gado e da terra para produzir o pão nosso de cada dia. Mas a ideia de todos eles era levar os meninos para as fazendas para se instruírem na lida bruta de tratar a terra. Minha avó, com a firmeza bíblica da mulher forte, recusou: “Eu não quero que meus filhos vivam para candiar boi dos outros”. E minha avó, viúva de um empresário bem sucedido, viu-se, da noite para o dia, transformada em costureira, profissão que abraçou com o mesmo fervor, crendo firmemente na força e no valor do trabalho.

Os próximos dez anos seriam de luta incansável. As meninas ajudavam nos afazeres domésticos e os meninos, à medida que cresciam, começavam a trabalhar. Um foi ser caixeiro num armazém. Outro foi ser chauffeur. Um terceiro fez concurso para a Central do Brasil. Chiquinho só viria a compreender as dificuldades daqueles anos já na idade da razão, quando o esforço conjunto já começava a atingir os resultados esperados. Mas carregou por toda a vida a sina e a tristeza de não ter conhecido, de fato, o outro Francisco, o Chico do Jota, seu pai.


Festa de aniversário do Guarany

Festa de aniversário do Guarany

Queluz na época era uma típica cidade mineira que orbitava entre algumas instituições. A principal era a Igreja de São Sebastião. Não falei Igreja Católica, prestem atenção, falei Igreja de São Sebastião. Isto porque não havia lá maior autoridade eclesiástica e nem mais devoto seguidor dos ensinamentos de Jesus Cristo do que o Padre Antônio, o seu pároco. Nem Suas Santidades, Pio IX e depois Pio XII, em suas cátedras na distante Roma, foram mais respeitados, amados ou, eventualmente, temidos do que o querido cura.  Outra instituição era a Estrada de Ferro Central do Brasil, inaugurada no Século XIX, por ninguém menos que Sua Majestade Imperial D. Pedro II. Todos queriam ser ferroviários e todos lutavam por um lugar ao sol, ou melhor, um lugar ao lado dos trilhos. A terceira instituição, talvez, exagerando um pouco, em igualdade com as outras duas, era o Guarany Sport Club. Isto mesmo, um time de futebol, aquele estranhíssimo esporte trazido pelos igualmente estranhos ingleses da ferrovia no princípio do Século XX e que, por um destes mistérios imponderáveis e insondáveis da natureza, foi aceito pela comunidade local com direito a todos aqueles nomes exóticos: back, half, foul, corner, penalty, referee…

E o Guarany, time dos ferroviários da Central do Brasil, era o time de toda a família. Dos irmãos, é claro. Mas também das irmãs e da mãe, como fora o time de um de seus fundadores no distante 7 de setembro de 1910, o pai Chico do Jota. E eram todos torcedores, jogadores, dirigentes do time do coração. Criança ainda, Chiquinho se candidatou a uma vaga no infantil. Era fácil conseguir a vaga. Os irmãos mandavam no clube. Um era secretário, outro era jogador, outro era isto, outro era aquilo. Embora haja desmentidos inflamados dos primos, os outros quatro irmãos mais velhos eram ruins de bola. Se não chegavam a ser pernas-de-pau, estavam bem perto. O dirigente de plantão, quando via um dos irmãos furando uma bola ou deixando passar um atacante adversário, ia com muito tato e convidava o perna-de-pau a virar cartola. Começava dando-lhe uma representação qualquer. Podia ser uma cerimônia na prefeitura, podia ser um casamento, um enterro, qualquer coisa. Depois era eleito segundo secretário ou segundo tesoureiro e, para alívio de todos torcedores, este irmão deixava o gramado, pendurava as chuteiras e passava a usar uma reluzente cartola. Quando deixaram Chiquinho entrar no infantil, pensava-se que ele seguiria o caminho dos irmãos, todos grandalhões fortes e meio – ou muito – grossos. Mas Chiquinho tinha um amor pela bola e sabia tratá-la bem. Estava muito distante dos irmãos. Era um craque. Alçou-se às divisões superiores e chegou à equipe principal ainda quase adolescente.

É importante ressaltar que estas atividades esportivas eram todas amadorísticas e que isto tudo era feito mantendo-se o trabalho regular para o sustento do dia-a-dia. Chiquinho não podia ser jogador de futebol em tempo integral. Tinha que ganhar o pão de cada dia, como na sentença bíblica, com o suor do rosto. Ganho o pão, o suor remanescente molharia com um esforço adicional a camisa tricolor do Guarany no Alto da Vista Alegre, poético nome do campo e, depois, do estádio do nosso time amado por todos. Entre uma partida e outra, um campeonato e outro, uma grande vitória e uma triste derrota, Chiquinho trabalhou na mineração de ferro da Siderúrgica Nacional quando de sua implantação na Segunda Guerra, foi motorista da mineração de manganês da subsidiária local da US Steel – que, por uma destas ironias da vida, dava o nome e patrocinava o Meridional,  o grande, o maior adversário do Guarany –   e foi comerciante, sendo proprietário e gerente do famoso e inolvidável Bar Galo Branco que, ao longo dos anos, dia após dia, era o foro especializado, era a arena, e algumas vezes até o ringue,  para as mais acaloradas discussões sobre futebol, entre churrasquinhos no espeto, sanduíches de “bauru” e cervejas, muitas cervejas,  entrecortadas sempre por algumas – ou muitas – palavras de calão, naturalmente impublicáveis.  O trânsito não era intenso naqueles anos, mas a multidão que lá comparecia ao anoitecer ocupava grande parte da Rua Marechal Floriano quase fechando a travessia da Central do Brasil, obrigando um outro carro desavisado a abrir caminho cuidadosamente entre os grupos em discussão.

A carreira de Chiquinho no Guarany foi brilhante. Infantil, juvenil, equipe principal, equipe de veteranos.  Já veterano, com a calvície acentuada, herança direta dos Costa Carvalho, família de Vó Miquita, e marca indelével dos tios e primos, jogava ao lado de sobrinhos. Mesmo assim, nunca aceitou a cartola, por mais honorífica que fosse. No dia em que alguém lhe pediu para representar o Guarany em uma solenidade, ele, irônico, respondeu: “Represento sempre o Guarany. Mas só dentro das quatrolinhas.”

Finalmente, chegou a hora de pendurar as chuteiras. Já era um senhor maduro e sabia que a hora de sair tinha chegado. Mas não abandonou o esporte. Jogava suas peladas em timinhos amadores. Iniciou-se no vôlei, futsal, basquete, etc. Era o técnico que parecia entender tudo de futebol. Era o comentarista com opiniões duras e firmes. Uma vez, num time de sobrinhos, ele decidiu entrar. Foi uma decisão unilateral.  Comunicou à irmã, mãe dos líderes do time, que queria ser parte da equipe e pronto. O sobrinho técnico anuiu – como contrariar a mãe e magoar o tio bom de bola? –  mudou seus esquemas estratégicos e sugeriu, cuidadosamente, que o Tio Chiquinho ficasse no banco para ser substituído segundo planos táticos deste primo-professor. Ele na mosca: “Não fico no banco. Começo jogando. Se cansar vou embora.” E citando Nelson Rodrigues finalizou: “Craque e mulher bonita não tem idade. Júlio César nunca quis saber a idade de Cleópatra e nem Salomão a idade da Rainha de Sabá”.  Em outra ocasião, o técnico era ele e barrou dois sobrinhos ruinzinhos de bola, com a desculpa que eram muito jovens. Os meninos reclamaram: “Mas, tio, o Feola convocou o Pelé com 17 anos”. Resposta fulminante: “Eu não sou o Feola. E vocês não são o Pelé”. Não preciso dizer que os dois primos ruins de bola não abandonaram o futebol, é claro, mas aceitaram de bom grado a cartola honorária e acabaram ambos assentando-se na diretoria do Guarany, tendo ambos, posteriormente, presidido em grandes momentos o clube do coração da família..


Chiquinho e o goleiro Véio Sarará

Chiquinho e o goleiro Véio Sarará

Chiquinho, com seu amor ao esporte, adquiriu um notável conhecimento de futebol. Sabia tudo e tinha uma opinião forte sobre tudo, muitas vezes, ou na maioria das vezes, uma opinião heterodoxa: “Em 50, o Campeão do Mundo tinha nome, sobrenome e endereço conhecido, Obdúlio Varela. Os outros dez foram meros coadjuvantes para tirar a foto da vitória”, ou então, “Pelé é bom, mas em certos jogos ele se parece mais com o Pão Velho, jogador lá de Gagé”, e sobre um goleiro que ele admirava pouco, “Se tivessem levado um goleiro, um goleiro qualquer, por exemplo, o Véio Sarará da Cachoeira, o Brasil teria sido campeão.”

Para ser justo com Chiquinho, estas opiniões heterodoxas não eram exclusividade dele. Meu pai, Zé Cosme, irmão dele, levou um sobrinho, o Tonho da Lica, para treinar no Cruzeiro de BH. Voltou decepcionado: “Tonho jogou muito mal. Parecia o Gerson no meio do campo”. Um primo não entendeu: “Que Gerson, padrinho?”. A resposta: “o Gerson da seleção.” Meu pai comparava o sobrinho que tinha jogado “mal” ao tricampeão Gerson, o canhotinha de ouro. Vá lá entender estes Nascimentos…

O tempo passou. O Brasil deixou de ser o país do futebol. Não havia mais Gersons e nem Pelés, por pior que pudesse ser o conceito que faziam deles os irmãos de opiniões heterodoxas e axiomáticas. O Guarany, pouco a pouco, foi sendo abandonado. Os dois sobrinhos, aqueles mesmos meninos que tinham sido barrados pelo técnico Chiquinho e que tinham presidido o time até pouco tempo antes, ambos médicos conceituados em Lafaiete, partiram precocemente para a eternidade, deixando órfãos, além de seus filhos, parentes, amigos e pacientes,  o Guarany Sport Club, clube que julgavam, erroneamente, imortal…

No centenário do clube, em 2010, Chiquinho, convidado de honra, chegou a ir ao Alto da Vista Alegre. Por fora dava para ver que o tempo corroía as estruturas do estádio que, de relance, parecia uma ruína de tempos pretéritos. Recusou-se, definitivamente, a entrar. Não disse, mas nós subtendemos que ele não queria ver o Guarany agonizando. Não queria ver o Guarany morrer aos poucos de inanição.

Veio o golpe final para Chiquinho. Um grupo de financistas, negocistas, arrivistas, oportunistas e outros istas conseguiu tomar de assalto a direção do clube, àquela altura a deriva, e, com isto, controlar seu patrimônio para poder demolir, antes do Natal de 2013, o estádio do time fundado pelo pai Chico do Jota, presidido pelo irmão Zé Cosme e pelos sobrinhos Altair e Dimas e em cujo gramado brilhou a sua estrela de craque, a estrela de Chiquinho do Nascimento. Por que isto? Perguntavam todos. Ora, porque é hoje uma área nobre. Pode ser um supermercado, pode ser um shopping, pode ser isto, pode ser aquilo, pode ser aquilo outro. Pode ser o que for, mas jamais será de novo o campo do Guarany Sport Club. Jamais voltarão a se ouvir os aplausos e vaias imortais. Jamais voltará a se ouvir a torcida em coro aos gritos contra o juiz, os bandeirinhas e os atacantes adversários. Um silêncio sepulcral se abateu para sempre no Alto da Vista Alegre, que visivelmente perdera a alegria de sua vista.

Chiquinho sabia que a história do futebol brasileiro tinha começado com milhares de Guaranys espalhados, como se dizia antigamente, do Oiapoque ao Chuí. De suas várzeas e campos de terra, nasciam os craques. Chiquinho intuiu também que a destruição do Guarany de Lafaiete e de milhares de outros Guaranys espalhados por aí era também a destruição do futebol brasileiro. Por isto ficou silente. Silente e triste. “Brasil, dizia ele, não será campeão. Quem ganha jogo é amador. Profissional ganha dinheiro”. Frase de efeito? Talvez. Ou quem sabe um pressentimento? Nunca saberemos.

Copa do Mundo de 2014. A saúde fortemente abalada, mas a lucidez ainda presente. Um neto aproxima-se de seu leito. “Vô, a Copa começa o mês que vem. No Brasil!” O velho jogador esboça um sorriso, faltam-lhe forças. “Vô, quem vai ser o Campeão do Mundo?”. Faz um esforço e diz com voz baixa mas audível:“Alemanha”.

No dia 11 de junho, Chiquinho despede-se de uma longa e fecunda existência, fecha os olhos e muda-se para as etéreas plagas onde, segundo Castro Alves, vivem os heróis do Novo Mundo. Não esperou a abertura da Copa no dia seguinte, quando o Brasil, contrariando talvez seus prognósticos, derrotou a Croácia por 3 x 1. Escutei o jogo no rádio do carro, voltando de seu sepultamento em Lafaiete e pensando em suas expectativas: Alemanha, campeã do mundo.

Hoje ao rememorar aqueles fatos, acho que Deus foi generoso com Tio Chiquinho, poupando-lhe o dia 8 de julho de 2014 e os 7 x 1 no Mineirão, estádio tantas vezes frequentado por ele. A sua profecia, infelizmente, se cumpria. E de forma dramática. Mas ele não estava mais aqui para presenciá-la. E, neste dia, o silêncio sepulcral reinante no Alto da Vista Alegre parecia mais intenso do que nunca… Não era só o Guarany que morria, era o futebol brasileiro.