ZAGUEIRO IMPROVISADO
por André Mendonça
“Fui muito prejudicado com essa transferência, perdi meu melhor momento do meu futebol, certamente estaria na Copa de 90”. A frase é de Fernando Matos, zagueiro que surgiu na Portuguesa Santista e teve passagens por Santos, Vasco, Louletano-POR, Flamengo, Atlético-MG, entre outros. Em entrevista para o Museu da Pelada, o ex-defensor não escondeu sua insatisfação com a transferência para o futebol português e lembrou os grandes momentos da carreira.
“Apaixonado por futebol desde que se entende por gente”, Fernando nasceu em José Bonifácio, no interior de São Paulo, e foi lá que o craque jogou as primeiras peladas e perdeu os primeiros tampões do dedo. Aos dez anos, se mudou para Santos e foi aprovado nos testes da Portuguesa Santista. O curioso é que o defensor surgiu como meia-atacante e jogou nessa posição durante toda a categoria de base.
Como costumava acontecer, Filpo Nuñez, treinador da equipe profissional, convocou alguns jogadores dos juniores para participarem do treino e Fernando foi um deles. Enquanto esperava a sua chance, ainda do lado de fora, o então meia-atacante viu uma forte dividida entre um zagueiro e um atacante e recebeu um convite que mudaria sua história no futebol.
– Treinar no time principal era um sonho e eu estava louco para entrar! Quando o zagueiro se machucou, o treinador perguntou quem poderia jogar improvisado e eu não pensei nem duas vezes antes de aceitar! Treinei bem na posição e nunca mais saí dela!
O último da direita em pé, Fernando surgiu como um grande zagueiro da Portuguesa Santista
Quando acabou o treino, Olavo Martins, ex-zagueiro do Santos e então treinador dos juniores da Portuguesa Santista, fez questão de parabenizá-lo pelo desempenho. Logo em seguida, Filpo Nuñez se meteu na resenha e avisou:
– Belo zagueiro! A partir de amanhã o Fernando passa a treinar com a equipe profissional!
– Mas ele é meu meia-atacante – respondeu Olavo.
– Era! Agora vai ser meu zagueiro! – finalizou Nuñez.
Fernando não demorou muito a se adaptar à nova posição e, por conta da experiência no meio-campo, tinha como grande diferencial o fato de ser um zagueiro técnico, com facilidade para sair jogando e marcar gols não só em bola parada. O talento não demorou a ser reconhecido e, em 1984, aos 23 anos, foi comprado pelo Santos.
No novo clube, teve a dura de missão de disputar vaga com Márcio Rossini e Toninho Carlos, ambos com passagens pela seleção. Arrebentando nos treinamentos, o garoto ganhou a vaga de Toninho, que não vinha bem, e ajudou o Santos a chegar na final do Campeonato Paulista daquele ano. No dia da decisão contra o Corinthians, no entanto, uma surpresa:
– O treinador Castilho me chamou no quarto dele e eu já sabia que não era coisa boa. Ele me elogiou muito, mas disse que ia priorizar a experiência do Toninho na decisão. Eu disse que respeitava a decisão dele, mas não aceitava!
Embora o Santos tenha sido campeão do torneio, Fernando decidiu não renovar o contrato com a equipe paulista, até surgir uma proposta do Vasco da Gama. No Rio, o zagueiro viveu grandes momentos e foi bicampeão carioca entre 1987 e 1988, além de ter conquistado alguns torneios internacionais. As boas atuações no Vasco despertaram interesse de clubes europeus e Fernando foi contratado para jogar no futebol português. A transferência, no entanto, custou a não convocação para a Copa de 90, segundo o zagueiro.
– Não era pra eu jogar no Louletano-POR. Este clube seria apenas uma ponte de transferência do grupo empresarial que me contratou junto ao Vasco para me negociar na Europa, mas eles não souberam negociar e fiquei um ano na segunda divisão de Portugal. Saí do Rio sendo considerado um dos melhores zagueiros do Brasil – lamentou.
Depois de um ano em Portugal, por ironia do destino, o Flamengo entrou em contato com ele e abriu as portas para sua volta ao Brasil. Mesmo após a boa passagem pelo maior rival do rubro-negro, Fernando disse que em nenhum momento teve medo de ser mal recebido pela torcida.
O terceiro em pé, da direita para a esquerda, Fernando fez o gol do título da Copa do Brasil de 90
Mas se havia alguma desconfiança por parte dos flamenguistas, ela desapareceu quando o defensor aproveitou um cruzamento da esquerda e subiu mais alto que os marcadores para marcar o gol que daria o título da Copa do Brasil de 90 à equipe da Gávea, contra o Goiás.
– Todos os títulos foram muito marcantes para mim, mas esse pelo Flamengo foi ainda mais especial por eu ter sido o autor do gol.
Depois do Flamengo, Fernando teve passagens por Atlético-MG, Guarani, Portuguesa de Desportos, até voltar para a Portuguesa Santista, onde encerrou a carreira em 1996. Quando pendurou as chuteiras, chegou a se preparar para ser técnico, mas seguiu o caminho da gestão porque tinha o sonho de tornar a Portuguesa Santista um grande time do Brasil. Hoje em dia, Fernando não pretende mais trabalhar com futebol
– Desejo agora dedicar o restante da minha vida em prol dos mais necessitados, sejam crianças ou pessoas da terceira idade. Tenho um projeto de trabalhar aqui na prefeitura de Santos e espero que isso aconteça logo – finalizou.
PINTURA DE PELADA
texto: Sergio Pugliese | ilustrações: Fernando Mendonça
“Pelada na grama” – Acrílica sobre tela (2016)
Osório é o mais organizado do grupo e sempre adorou liderar grandes eventos. Tudo bem que uma vez ou outra se enroscou, como na chegada do Papa ao Rio. Lembram-se? Por um problema de logística a comitiva pegou o caminho errado e o homem de Deus viu-se cercado por uma multidão, num engarrafamento infernal. Mas Osório mete a cara, é destemido e continuou na área, sempre na linha de frente, peito aberto. Sua última brilhante ideia foi organizar uma pelada entre os candidatos e jornalistas. Seria uma forma de atrair a simpatia do eleitor, um ato de civilidade. Convocou seus principais marqueteiros, pegou a prancheta e a reunião virou resenha, das boas.
“Jogador do Vasco”. Acrílica sobre tela (2013).
– Vão ser sete na linha e um no gol. Chamamos quem para a zaga, hein? – questionou Osório.
– Chama o Molon, chama o Molon! – gritaram os assessores.
– Jandirão, claro! Ela intimida, grandona, leva jeito.
– Mas, será? – freou, Osório.
– Meu Deus, ela é destemida, já liderou várias manifestações, enfrentou PMs, spray de pimenta…vai ter medo de atacante?
– Me convenceu!
– Mas ela não pode pegar muito pesado, hein!
– Como? Zagueiro tem mais é que espanar! – discordou Osório.
– Mas o Freixo vai reclamar e pode até acionar o pessoal dos Direitos Humanos, sabe como é, né?
– Verdade, ele é mais estilo Ganso, futebol-arte, cabeça em pé, se acha.
– Mas nós vão jogar juntos, contra a imprensa! – resmungou Osório.
– Por isso mesmo! Ele é o queridinho da imprensa. Bateu na imprensa, bateu nele!
– Mas se o jogo for descambar para a violência é melhor chamar um árbitro….
– Chama o Molon, chama o Molon!!!
– Já sei, o Índio!!!
– Por que o Índio – perguntou Osório.
– Porque Índio quer apito!!!!
– Vamos levar a sério, não temos muito tempo – ralhou Osório. E emendou: – Será que o Pedro Paulo bate uma pelada?
Como os publicitários perdem o amigo, mas não a piada, um dos estrategistas largou a bomba.
” Pelada de refugiados”. Acrílica sobre tela.
– Se bate uma pelada, não sei, mas que bate numa pelada, bate!
Nem Osório conteve a gargalhada.
– Quem vai ser o capitão do time?
– Chama o Molon! Chama o Molon!
– Acho que só o Bolsonaro tem patente militar.
– Mas Bolsonaro vai expulsar todo o time da imprensa.
– Melhor pra nós! – comemorou Osório.
– E o Crivella?
– Ele só entra nas comemorações de gol: “primeiramente gostaria de agradecer a Deus”.
– O Crivella também pode recolher o dinheiro do churrasco. Esses caras são bons nisso, rapidinho arrecadam uma grana.
– Quem será o churrasqueiro?
– Chama o Molon! Chama o Molon!
– Se for churrasco de peixe, o Índio entende. Essa turma caça para sobreviver.
– E quem vai tomar conta do dinheiro, cuidar do caixinha, ser o tesoureiro?
– Não, chega de chamar o Molon – antecipou-se Osório.
Essa questão do dinheiro é mais complicada e os estrategistas preferiram não colocar a mão no fogo por ninguém. Ficou decidido que vão terceirizar o serviço e abrir concorrência.
As pinturas que ilustram esse texto são do consagrado artista maranhense Fernando Mendonça, vascaíno roxo e fã de Juninho Pernambucano.
O LEGADO DO PAI
por Mateus Ribeiro
Até o final dos anos 80, minha vida não fazia muito sentido. Tanto que tenho raríssimas lembranças desta época.
Porém, as coisas começaram a mudar no início da década seguinte. Lembro claramente de um calendário do ano de 1990 que tinha como estampa a imagem de um homem correndo com uma bola. Era Garrincha, o anjo das pernas tortas. Claro que não tinha nem ideia de quem era esse genial cidadão. Quem me contou foi Carlos Ribeiro, meu amado e inesquecível papai.
Confesso que não me interessei muito, por um simples e curioso motivo: eu não gostava de futebol. E aquele circo de horrores chamado Copa de 90 não ajudou nem um pouco a mudar minha opinião.
Porém, um dia qualquer, sabe se lá o motivo, acordei chorando pois queria assistir a uma partida de futebol de qualquer jeito. Seu Carlos, herói que sempre foi, deu um jeito de entrar em um clube da cidade, mesmo sem ser sócio, apenas para realizar meu desejo. Ali eu comecei a me interessar pelo que foi nossa maior paixão, e maior laço.
Nos anos seguintes, era rotina aproveitar o tempo que lhe sobrava do trabalho para assistir toda e qualquer partida. Também era comum eu passar horas querendo saber quem foi Nilton Santos, Didi, e tantos monstros que Ele sempre me falava.
Passados alguns anos, lembro claramente dele chegando exausto em casa, com o álbum da Copa de 1994. Talvez o momento mais marcante da minha historia foi ele me ensinando a fazer cola de trigo para colar as figurinhas. Desde sempre, ensinou que devemos trabalhar com as ferramentas que temos, e que o importante é ser feliz.
Tratei de decorar todas as informações de todos os jogadores. Afinal, já sabia ler, já sabia o que era um escanteio, e sabia que minha memória era um negócio de outro mundo.
Assistimos praticamente todas as partidas. Demos muita risada, principalmente da cara da Argentina. Cabe aqui lembrar, aliás, que no dia de Argentina e Grécia inventei que estava com febre para não ir ao catecismo e assistir a partida. Desculpa, Papai. Desculpa, Vaticano.
Comecei a criar meus ídolos e referências. E aí começavam as discussões. “Esse Hagi não seria reserva da Ferroviária”; “Quem é esse time aí que todo mundo tem nome que termina em OV?” eram algumas afirmações que eu ouvia sem contestar muito.
E o que falar dos jogos do Brasil? Taffarel se consolidou como nosso herói, mesmo tomando perus monumentais. Dunga representava uma fortaleza. Romário era nossa esperança. E Parreira era nosso alvo. Mesmo assim, é inesquecível o gol de Branco. Impossível não chorar lembrando de Brasil x Estados Unidos. Inúmeras lembranças. Que quase foram para o saco quando a final foi para os pênaltis. Sorte que Baggio tratou de eternizar essas memórias com um gosto doce.
Assim foi até 1998. Quando segundo Ele, a França comprou aCopa. Pela primeira vez,ouvi Ele dizer que queria que um raio caísse em sua cabeça de assistisse futebol novamente.
O raio não caiu, e passamos mais de uma década assistindo até a Série D do campeonato francês.
Como em várias historias, a criatura ficou maior que o criador. Me tornei um viciado em futebol. Minha vida era 50% futebol e 50% resenhas futebolísticas com ele.
Virei um estudioso . Na verdade um corneteiro. E sei que isso foi motivo de orgulho imenso para ele.
Nem mesmo nas horas mais difíceis o esporte bretão saiu de nossas vidas. Nem quando Deus tentou levar ele para o mundo dos imortais pela primeira vez, em 2003. Um ataque cardíaco quase o levou. Mas como Gylmar dos Santos Neves, Seu Carlos defendeu sua vida com uma segurança gigantesca.
Assim fomos lutando por anos e anos contra todas as adversidades que apareceram pelo caminho.
Até que em 2012, um AVC atingiu Papai. O lado esquerdo ficou comprometido. Mas mesmo na cama, fazia questão de assistir futebol comigo com o mesmo interesse de outros tempos. Certo dia, chamou minha mãe, e emocionado, com o olho cheio de lágrimas, assumiu pela primeira vez que gostava de ver futebol comigo, pois antes ele me ensinava, e eu naquelas alturas o ensinava. Obrigado. Aprendi tudo com o senhor.
Comecei a escrever sobre futebol. Comentei e até narrei (muito mal) alguns jogos pela TV. Participei de programas futebolísticos. Tudo sempre sob o olhar apaixonado dele. Um sonho realizado.
Porém, o campeonato da vida estava cansativo. Seu Carlos já estava cansado de tanto jogar e defender sua vida com unhas e dentes.
Uma hora o campeonato teria que ter uma pausa. E exatamente uma da manhã do dia 01 de outubro (o mês 10), meu camisa dez aproveitou a janela de transferências e foi jogar no time dos imortais.
Deixou muita saudade. Porém, me ensinou que a vida é uma aventura que devemos curtir até o último minuto. Enunca desistir, por pior que esteja nossa condição na tabela.
Após sua partida para outros gramados, percebi que Ele foi muito mais que o maior camisa dez da minha vida. Foi meu maior treinador. Conseguiu me passar todo o esquema tático desse quadrangular da morte chamado vida. Sempre com um sorriso no rosto e um coração maior do que o Estádio Azteca na final da Copa de 1970.
A saudade consome. A vida passa. Mas a história fica.
Muito obrigado, Carlos Ribeiro. Esteja onde estiver, sei que está na área técnica me passando as melhores instruções.
Muito obrigado, Carlos Ribeiro. Por todo o amor que sempre me dedicou. E por me ensinar a amar o futebol.
Muito obrigado, Carlos Ribeiro. Meu eterno camisa 10
A URNA
texto: Sergio Pugliese | ilustração: Claudio Duarte
Convocado pela Justiça Eleitoral para exercer a função de mesário, Aranha respirou fundo e tentou manter o controle emocional. Ele não merecia isso, não naquele dia. Brasileiro, cumpridor dos deveres, impostos em dia, excelente aluno e filho de advogado famoso, o estudante de Economia era considerado um menino prodígio em Petrópolis. Agregador, ainda organizava uma pelada sagrada, paixão de sua vida, no Campestre, e durante meses liderou uma campanha pela reforma do campinho do clube, totalmente esburacado. E o xis da questão era justamente esse: a reinauguração da nova arena estava marcada para o mesmo dia da eleição, no fim da tarde. Aranha tinha a exata noção da importância dos mesários, representantes do povo participando da construção da democracia, mas a obrigação cívica o transformou num jovem alucinado, rebelde e disposto a qualquer loucura para não ficar fora do racha.
– Lutei muito para reformar o campo e não existia a menor possibilidade de ficar fora da festa – lembrou Aranha, que suplicou para não ser identificado porque até hoje, 30 anos depois, o desfecho da história ainda lhe rende severas críticas familiares.
Também pudera, a estratégia usada por Aranha foi a pior possível. Até hoje ele nunca revelou o mentor do desastrado plano e prefere assumir sozinho o estrago. No dia da eleição precisou madrugar porque não era apenas mesário, mas o presidente da seção. Tinha 18 anos, estava de ressaca e seu vice era um senhorzinho invocado. Reuniram a equipe, passaram as últimas coordenadas e abriram a porta da escola aos eleitores.
– O plano era encerrar a seção vinte minutos antes e desaparecer – contou.
O movimento foi grande durante a manhã. Da porta, Aranha sinalizava para as pessoas entrarem logo e na sala organizava a fila e tirava dúvidas. Só faltava bater palmas para os indecisos votarem mais rápido. Estava visivelmente tenso, olho vidrado no relógio. O campo, em Nogueira, ficava a 10 quilômetros da escola, no Retiro, e os amigos já estavam avisados de sua presença na primeira partida. O grande problema seria convencer o vice, homem sério, aposentado do Banco do Brasil, a encerrar a votação às 16h45, 15 minutos antes do previsto. Só na marra, lançando mão da autoridade de presidente.
– Quando a sala deu uma esvaziada falei para a equipe ir desmontando o acampamento – disse, às gargalhadas.
Claro, ninguém entendeu nada. Ainda faltavam 40 minutos, mas o objetivo era preparar o terreno. Adiantou o relógio e rezou. Dois companheiros da pelada entraram para votar e no final o alertaram para não se atrasar. Atirou-se sobre a dupla antes que falassem demais. Alguns minutos depois, iniciou o show. Aproveitou a sala vazia e começou a gritar “encerrou!”, “liberados!”. Alguns mesários não pensaram duas vezes e viraram fumaça, outros exigiram explicações e o vice precisou de água com açúcar.
– Fechei a casa, coloquei a urna no Fusca e me mandei para o jogo – falou.
Os amigos Flavinho Botelho, Salim, Edmundo, Maurinho, Bocão e o saudoso Tony não entenderam nada quando Aranha entrou correndo no clube, carregando uma urna. Ofegante, ele convocou Benildo, o faz tudo do clube, e mais um grandalhão para tomarem conta do “saco”. Deu R$ 15 para cada e foi jogar, olho no padre e outro na missa. O campo estava um tapete e Aranha deixou o seu, de placa, logo aos cinco minutos. No fim da segunda partida, tomou banho e se mandou para entregar a urna no SESC, onde acontecia a apuração.
– A contagem estava atrasada por minha causa e chegando lá quase fui preso – lamentou.
Após horas de confusão e a presença do pai, irado, constataram que a urna estava intacta. Aranha alegou problemas gástricos, enjoo e fortes dores de cabeça. Foi liberado e levou a maior bronca da vida. Completamente arrependido, ficou sozinho, encostado no Fusca. Arrasado, precisava de ombros amigos. E sabia onde encontrá-los! Entrou no carro, acelerou e ainda chegou a tempo do churrascão no Campestre.
O INCRÍVEL GOL QUE VALEU POR DOIS
texto: Victor Kingma | ilustração: Eklisleno Ximenes.
Partida histórica da Liga Mantiqueirense, em Mantiqueira, interior de Minas. A equipe local, o Catauá, precisava vencer para conquistar o título. Para garantir a façanha inédita seu fundador e presidente, o lendário coronel Sá Fuentes, busca na capital um reforço de peso: o centroavante Canhoteiro, também conhecido como “Canhão da Serra”.
Chega o grande dia e com o gramado do Mantiqueirão ainda mais esburacado devido às fortes chuvas da véspera, a bola rola. Num jogo muito truncado e com poucas chances de gol, o 0 x 0 se arrasta.
Canhoteiro, às voltas com os buracos e o estado disforme da surrada pelota de couro, costurada à mão, não consegue desferir seu chute mortal.
A torcida se mostra apreensiva quando, quase no final da partida, acontece o pior: num chute despretensioso do adversário, o goleiro Feitiço escorrega na lama e falha: visitantes 1×0! Tragédia à vista!
A cancha então é invadida: à frente o coronel Sá Fuentes, com seu famoso trabuco 38 na cintura. Com cara de poucos amigos, ele vai encostando o cano do revólver nas costas do juiz e inicia uma conversinha “amistosa”:
– Olha só para os morros em volta do gramado. Estão lotados de gente. Todo mundo esperaesse título. Falta pouco para o final, mas temos que virar este jogo de qualquer maneira! Senão, acho que sua mulher ficará viúva antes da hora!
Berrante à mostra e acompanhado de seus capangas, o coronel se senta no gramado, atrás do gol do adversário. Aos 45 minutos, numa falta a dois metros da entrada da área, acuado, “sua senhoria” apita:
– PÊNALTI!
Escalado para bater, o “Canhão da Serra”, toma longa distancia e desfere seu petardo mortal. A surrada bola pipoca no travessão e não resistindo à potência do chute, estoura. Enquanto a câmara de ar entra no meio do gol, o couro, estraçalhado, transpõe a linha no canto esquerdo…
O árbitro nem titubeia. Põe fim à contenda e anuncia o placar:
– Catauá 2×1! Campeão!!!
Cercado pelos revoltados visitantes e pela imprensa perplexa, o aliviado juiz explica a inusitada decisão:
– Todos viram que a bola entrou duas vezes. O pênalti, então, valeu dois gols!!!