Escolha uma Página

À SOMBRA DAS KICHUTES IMORTAIS

por Ricardo Dias


Em 77 Rivelino saiu do Fluminense para uma aventura mal-sucedida na Arábia. Bem, ele saiu, eu entrei. Resolvi participar da peneira para os infantis. Naquele tempo a coisa não era como hoje, que mais parece um vestibular para o Instituto Rio Branco; havia uma seqüência de testes mas era num clima mais amistoso, sem o peso que há hoje – a carreira de jogador não era tão valorizada, a fome no país era menor.  Pois fui, tendo me informado previamente com dois colegas de colégio que treinavam lá.

Por algum motivo me acompanhou um amigo de peladas, vascaíno, que resolveu não só ir comigo, como ir à rigor – mas rigor vascaíno: camiseta cavada (com uma rica estampa do Cebolinha, furada), short puído, meião listrado de preto e branco, e sob tudo isso, um par novinho de Kichutes.

Quem tem menos de 35 não sabe o que é. Explico. Era um tênis que imitava uma chuteira, de borracha (grossa) e lona (idem). Tinha uns pitocos enormes na sola que simulavam as travas de uma chuteira, o que resultava a impossibilidade chutar “por baixo”, como convém; só saía de bico, mesmo.


Como nos encontramos na porta, não pude fazer nada para evitar a tragédia, a não ser tentar fazer o possível para fingir não conhecê-lo. Existe um Deus, e a peneira foi adiada. Na quarta-feira seguinte, voltei. Havia cerca de 30 ou 40 garotos se amontoando, e o teste seria na base de ir entrando e jogando; o técnico se gabava de à primeira olhada saber se o cidadão era aproveitável ou não. O treino começou, as pessoas iam entrando, e eu batendo bola na lateral. Lá pelas tantas só sobrei eu, fazendo embaixadas sozinho. O técnico (José Faria, foi treinador da seleção do Marrocos em 82) claramente não fazia fé, talvez meu biotipo: na época tinha quase 1,80 m (hoje tenho 1,90) e uns 45 quilos (hoje, bem, não interessa!). De óculos. Por falta de coisa melhor, me chamou e disse: entra no lugar daquele lá. Problema.

Uso óculos. O campo do Fluminense, naquela época (e hoje ainda) tem uma iluminação horrorosa. Como tinha dado meus óculos para um auxiliar dele segurar (não lembro o nome, era um sujeito sisudo, manco), não enxergava bulhufas, mas não podia dizer isso. Limitei-me a entrar correndo e gritar um “sai você” genérico, eles que se virassem. Esclarecido qual dos três deveria sair, lá fui eu para o outro lado do campo, o mais distante possível do olho clínico do Professor Faria.

O sistema nervoso é uma coisa interessante; estava lá para mostrar meu futebol. Foi só entrar em campo para rezar para a bola não vir em minha direção. Mas veio. Quando percebi que era ela – sem os óculos podia ser um pombo, um ladrilho ou um quilo de açúcar – já vinha um adversário voando e tomando-a de mim. Quando dei pela coisa, já não conseguia ver a bola de novo, eles já estavam a mais de cinco metros. Imediatamente intuí o técnico balançando a cabeça.


Mal me refizera do baque, estava inclusive ofegante, sei lá por quê, lá vinha a bola de novo. Desta vez dei um passo à frente e tentei travar a bola. O raio daquele campo era uma calombeira só; até autobol jogavam nele! Pois quando tentei pisar nela, um buraco a fez quicar. Pois foi quicar e o ponta-esquerda do outro lado, doido para se fazer às minhas custas, que vinha rente que nem pão quente, passou direto. A bola quicou milimetricamente sobre seu pé, num drible sensacional – pelo menos para quem estivesse um pouco distante. Virei o corpo, levantei a cabeça, não vi nada mas não deixei que isso me impedisse: com a pose que estudara durante muito tempo, lancei a bola ao ataque. Quis o destino que caísse nos pés de alguém do meu time, que fez o gol. Não o vi, mas o ouvi perfeitamente.

Na bola seguinte o ponta já veio com mais respeito, e para inovar passei a bola para alguém que eu conseguia ver. Trilou neste instante o apito final, e lá fui eu ver o que o técnico diria. Estava cercado de garotos:

– Não precisa voltar – ou – volta quarta-feira. Pensei, não sem certa razão: se ele não falar comigo, não vai poder me mandar embora! Então, fui sorrateiramente para o vestiário, e nem tomei banho. Resgatei meus óculos de cima da mesa e fui pegar o 416, literalmente com as calças na mão.

Com surpreendente rapidez chegou a nova quarta-feira. Voltei ao clube meio ressabiado, imaginando o que o Professor diria. Pelo visto não só lembrou-se de mim como notou minha saída à francesa (lato e stricto senso), me saudando:

– Olha o porco de volta!

Supus que isto fosse uma permissão para treinar, o que fiz, sem muito brilho mas também sem fazer muita besteira. Desta vez tomei banho (sem molhar a cabeça, para não dar bandeira em casa), e tive a permissão formal para voltar a treinar. Passou a me chamar de Gigante Branco – era o nome de um desinfetante da época, numa alusão à minha altura e à cor saudável da minha pele.

Treinei uma meia dúzia de vezes, até que o joelho acelerou o que fatalmente aconteceria pela via técnica. Torci-o, e adeus, simples assim. Nunca mais pisei naquele gramado. O melhor de tudo é que eu queria fazer uma surpresa para meu pai; não contei nada sobre estar treinando lá, para um dia convidá-lo a assistir a um jogo ou algo assim. Acabei não deixando de fazer uma surpresa, quase ficando reprovado no colégio…

Resolvi escrever esta história até para me expor à execração pública: tivesse continuado, estaria no lugar do Cerezo na Copa de 82 e jamais teria dado aquele passe para o Paolo Rossi, como também não perderia o pênalti na semifinal de 86. Em 90 eu não teria jogado mesmo, teria brigado com o Lazaroni, e em 94 com certeza teria feito ao menos um gol no tempo regulamentar, apesar da pressão contrária do Parreira e do Zagallo.


Em 98 me despediria do futebol não deixando ninguém contar ao Ronaldinho sobre seu pesadelo (eu sei a diferença entre um pesadelo e uma convulsão, o que não parece ser o caso do Dr Lydio), e em 2002 não iria, apesar das súplicas, em solidariedade ao Romário, parando com a bola credor do respeito e da admiração dos amantes do futebol, deixando o país, deixa ver… octacampeão mundial.

Isso sem falar no Fluminense…

RETROSPECTIVA

edição de vídeo: Izabel Barreto

O ano vai chegando ao fim e, por isso, nada mais justo do que fazer uma retrospectiva com algumas resenhas bacanas que fizemos até aqui. No meio de tantas lendas carismáticas, com histórias para lá de divertidas, foi dificílimo escolher as principais matérias. Como dizem no meio do futebol, é aquela dor de cabeça que todo treinador gosta.

O mais importante é que, sem medir esforços e com a ajuda de vocês, seguimos em busca da poesia perdida do futebol, colocando a mão na massa e dando o devido valor que os nossos ídolos merecem!

CRAQUE DOS GRAMADOS E DOS ESTÚDIOS

por Mateus Ribeiro


Ana Thais Matos é jornalista esportiva, e atua tanto no estúdio quanto no gramado.

Desde criança, sempre gostou de praticar esportes. Tempos depois, resolveu trocar os tênis e chuteiras pelo microfone.

Uma profissional competente, de opiniões firmes e concretas, Ana Thais foi extremamente solícita e cordial, e concedeu uma entrevista para o Museu da Pelada. Falamos sobre o ambiente machista do futebol, sobre a participação das mulheres no jornalismo esportivo e demais temas que devem ser abordados.

Confira no bate papo abaixo um pouco mais da história de Ana Thais Matos:

Vamos começar falando um pouco sobre o início de tudo. Como e quando surgiu a vontade de trabalhar com jornalismo esportivo?

Eu entrei na faculdade mais velha (com 23 para 24 anos), e no primeiro ano eu trabalhava em outra área, que não tinha nada a ver com jornalismo. No fim do primeiro ano eu fui encaminhando o que eu faria (iria pra cultura, política ou esportes). A oportunidade no esporte surgiu antes das outras, com a possibilidade de ser estagiaria no jornal Lance!, mas era apenas pra cobrir a rodada (quartas-feiras e fim de semana), e aí começou a trajetória no esporte, editoria que estou até hoje.   


Você sofreu algum tipo de “resistência” por parte de amigos ou familiares pelo fato do ambiente do futebol ser extremamente machista?

Resistência nenhuma, amigos e familiares sempre me apoiaram porque sabiam que eu era do esporte desde criança. Sou ex-jogadora, não com muito talento, mas somei mais de 10 anos entre beach soccer, futsal e futebol de campo. Também joguei vôlei.

Não faz muito tempo, a participação de mulheres na grade esportiva de emissoras de TV e rádio era mínima. Eram raras as apresentadoras de jornais ou programas esportivos, e fora isso, a participação de mulheres em debates se resumia praticamente em assistentes de palco que liam e-mails. Hoje, a evolução é notável (e constante), visto que em quase todo debate temos uma mulher participando ativamente. Sabemos que o caminho é longo, mas você acha que um dia a participação feminina no jornalismo esportivo será do mesmo tamanho que a masculina?

Difícil falar sobre o futuro, e eu não vejo tanta evolução, não. Vivemos um momento de transição e voltamos às origens do que já aconteceu nos anos 70 e 80 com Regianne Rither, Claudete Troiano e outras. O que fazemos agora em 2017 não é surpresa. Mulher sempre teve como repórter, apresentadora e comentarista, mas como toda sociedade, somos poucas em tudo. Mas isso vai mudar, não sei a proporção e não sei o tempo.

Qual você considera seu maior momento no jornalismo? E o mais difícil?

Meu maior/melhor momento no jornalismo foi a cobertura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro em 2016. Meu inglês não é muito bom, então foi um desafio conviver 17 dias na Arena do Vôlei de Praia – um esporte dominado por americanos e brasileiros. Mas foi o melhor momento, era a Disney dos esportes.

O mais difícil são os ataques em estádios de futebol em todo Brasil pelo fato de eu ser mulher. Não só comigo, mas com todas as companheiras de profissão.

Ainda falando sobre o jornalismo esportivo em geral: de tempos para cá, a onda “engraçadinha” vem ganhando um espaço muito grande, em um tempo curto. Pessoalmente, acho que as coisas passaram um pouco dos limites. E você, qual sua opinião sobre tudo isso? Acha que é um caminho sem volta?


Depende do que é ser engraçado. Hoje a mídia tradicional passa por uma crise de identidade (na minha opinião), ela ainda não entendeu se tem que manter os mesmos comentaristas e narradores falando sempre as mesmas coisas, e pra um consumo interno, ou se vai expandir e falar pra quem não tem tempo de assistir TV para formar opinião. Nesse vácuo surgem os engraçadinhos e os youtubers. Existem canais ótimos e comunicadores ótimos, que contribuem demais para o debate – Bolívia do Canal Desimpedidos é o meu preferido, ele fala sério de uma forma objetiva que faz o moleque em casa pensar. Ele não humilha ninguém para omitir opinião, faz culto à imagem (valorizando jogadores antigos e novatos) e eu acho que é o melhor comunicador para futebol no ano – nas mídias não tradicionais. Fora isso,  existem apenas discussões muito rasas, o que é o futebol e o esporte no Brasil e no mundo. Vale a pena ser engraçado? Sim, muito, mas não vale a pena faltar com respeito. Eu não preciso humilhar um argentino para ser engraçada, e também não preciso levar ao pé da letra se Renato Gaúcho foi ou não melhor que Cristiano Ronaldo.

As pessoas dizem “nossa o futebol tá chato, não pode brincar mais”. Pois é, trago verdades. Não pode. Não pode chamar de bicha, não pode chamar negros de macacos, mulheres de vagabunda e por aí vai. O esporte é de inserção e não de exclusão.

Você imagina que um dia o futebol feminino possa ser valorizado no Brasil? Acha que os clubes e investidores irão abrir os olhos e se importar com as milhares de jogadoras sem incentivo espalhadas pelo Brasil?


Quero acreditar que sim, mas não vejo movimentação para isso. Precisaríamos tornar a liga mais competitiva, e conseqüentemente, mais rentável. Mas dá para fazer futebol feminino bom e sem passar na TV também, uma coisa não está ligada a outra. Se os clubes optarem em abraçar o futebol feminino como uma modalidade competitiva, tudo vai melhorar. Tem que investir na parte física e nas categorias de base, para que lá na frente, com 16, 20 anos, as garotas de 10 anos hoje tenham condições físicas de jogar de igual para igual com as norte americanas por exemplo. Antes de pensar na TV, temos que pensar na estrutura básica do esporte.

Uma das coisas que mais me incomoda e deprime no futebol atual é toda essa loucura financeira em transações de jogadores. Qualquer jogador hoje é negociado por quantias estratosféricas. Você acha que um dia essa roda vai enguiçar? Ou a tendência é que esses valores sejam cada vez mais absurdos?


Essa roda vai e volta, hoje se conta numa mão os clubes com dinheiro no Brasil e com possibilidade de pagar dívidas futuras. Mas a estrutura é viciada, existem clubes de deixam de pagar impostos, mas aí ganha títulos em um ano e passa dois no desespero, depois retoma de novo. Existem clubes que gastam dinheiro sem avaliar o produto, parece quando eu compro uma calça no shopping, pago uma fortuna, aí uma amiga me levou pra conhecer o Bom Retiro e eu descobri que a mesma calça sai 80% mais barato. Brinco com essa comparação, mas o dinheiro sai do meu bolso, num clube de futebol sai do clube ou patrocinadores. Aí as pessoas passam, e o clube fica. Mas fica como?

Vamos ser sinceros, todos nós sabemos que os profissionais da imprensa torcem por algum time. Vocês costumam brincar uns com os outros quando o time de um ou outro perde?

Internamente sim.

NO ESPORTE x ATRAVÉS DO ESPORTE

por Idel Halfen


Confesso não ser um grande entusiasta da expressão “marketing esportivo”. Isso se deve à descaracterização que essa atividade vem sofrendo ao longo do tempo e faz com que o mercado seja povoado, em grande parte, por “especialistas” que apenas gostam de esporte, sem, contudo, terem o devido conhecimento do que efetivamente vem a ser marketing.

Além do que, tenho como crença que o marketing é uma atividade indispensável a qualquer ramo de atuação e, dessa forma, sua aplicação é inerente ao esporte. 


Todavia, aproveitarei um conceito utilizado por alguns especialistas do ramo para desenvolver o tema que dá título ao artigo. Trata-se da divisão do marketing esportivo em duas vertentes: o marketing no esporte e o marketing através do esporte.

Segundo eles, o primeiro acontece através da aplicação do marketing nos agentes cuja atuação está relacionada primordialmente à atividade esportiva.

São esses, os clubes, as confederações, os atletas e as empresas que têm, em seu portfólio, produtos e serviços voltados ao segmento, como é o caso, por exemplo, de Adidas, Asics, Gatorade, além das agências e organizadores de eventos.

Já o marketing através do esporte contempla organizações e empresas que usam o esporte como plataforma de marketing. Partindo dessa vertente, chegamos ao cerne do artigo visto ser crescente o número de marcas, sem nenhuma relação prévia ou até sinergia com a atividade, que têm desfrutado da experiência de atuar no esporte.


E antes que venham creditar esse movimento à exposição proporcionada pela audiência dos grandes eventos, alerto que, em muitos desses, a política de aparição da marca nas arenas e ginásios é bastante restritiva, vide como exemplo os Jogos Olímpicos e o torneio de tênis de Wimbledon. Assim, podemos inferir que o grande motivador dessas marcas para a “entrada” no esporte, seja a possibilidade de associar seu posicionamento e imagem à superação, amizade, respeito, excelência e tantos outros princípios nobres atrelados à atividade.

Independentemente das razões ou da forma que o esporte tenha ligação com o marketing é fundamental que se saiba “o que é” e “para o que” serve o marketing.

OS ETERNOS CONTRAS

 

por Washington Fazolato


Não há, em todo o universo boleiro, quem possa se arvorar a afirmar que jogou pelada sem nunca ter participado de algum “contra”.

Para o não-iniciados, vamos a etimologia da palavra: “Contra” vem do futebolês arcaico e rotula partidas entre times de ruas, bairros, vilarejos e cidades diferentes. 

Esclarecidas as dúvidas, vamos dar aos “contras” o valor que eles merecem no hall da fama das peladas.

No passado – e ainda em alguns lugares afastados dos grandes centros – os contras tinham caráter quase sacrossanto.

Geralmente, os convites surgiam quando um time começava a se destacar no contexto local e sua fama ultrapassava os limites geográficos de sua rua. 

No dia e hora marcado, partiam resolutos rumo ao campo de disputa, que podia ser uma rua asfaltada, uma quadra, um campo de terra, um terreno baldio ou quem sabe – sonho máximo – um campo gramado.

O local não importava. 

O importante era a aura de desafio, de batalha épica, de final de Copa do Mundo.

Os melhores eram escalados, com critérios rígidos: o atacante que não treme, o goleiro firme, a zaga imbatível, o meio-campo refinado etc.

Não havia espaço para experimentos, nem para pipoqueiros.

A pé, de ônibus, de kombi, de trem, partíamos para os contras.

Acompanhados dos pais, tios, amigos, seguia alegre a caravana.


Geralmente os contras, dentro de sua mitologia própria, acabavam invariavelmente em partidas duras, disputadas palmo a palmo, com lances que beiravam a violência.

No entanto, findo o jogo, todos deviam se abraçar, se cumprimentar e parabenizar o oponente.

Passei um desses contras às voltas com um atacante magrelo, alto, habilidoso e escorregadio.

Depois viria a saber que ele atuava no juvenil do América-RJ.

Cotoveladas, empurrões e trancos marcaram minha disputa com ele.

Após o apito final, apertou minha mão, sorrindo e me disse:

– Valeu, meu zagueiro!

Viramos amigos.

Infelizmente, nos tempos modernos, das quadras de society com grama sintética, é pouco provável que alguém saiba o que é um “contra”.

Talvez imaginem que seja um duelo bélico, que deverá resultar em mortos, feridos e depredações.

O respeito, a cordialidade e o espírito de confraternização estão meio fora de moda.

A essência dos “contras” se perdeu.