PAIXÕES DO CHICO ANYSIO
por Elso Venâncio
Chico Anysio, o gênio do humor, o Charles Chaplin brasileiro, tinha duas paixões: o rádio e o futebol. Ele ouvia as jornadas esportivas da Rádio Globo do Rio de Janeiro e ligava, sobretudo nos finais de semana, quando descansava no seu sítio em Pirai, corrigindo alguma informação ou acrescentando detalhes de uma notícia. Nesse sítio, recebia atletas profissionais e artistas para peladas e resenhas.
No ‘Chico City’, programa humorístico da TV Globo, não podia faltar um representante do mundo da bola. Coalhada, um perna-de-pau que se achava craque, como muitos que existem por aí, era estrábico e, com seus cabelos encaracolados, desdenhava de Pelé, Zico, Junior, enfim, dos bambas do futebol que ele próprio, o personagem, recebia no programa.
“Depois dizem que o Coalhada é isso, que o Coalhada é aquilo”.
Repórteres da Rádio Globo eram sistematicamente convidados para entrevistar Coalhada.
“Eu faço humor mais ou menos… mas entendo mesmo é de futebol”,.ouvi de Chico, numa roda de jornalistas, na Copa do Mundo da Itália. Não sei se dava para acreditar, mas garanto que ele estava realizado, já que nesse Mundial de 1990 era, simplesmente, o comentarista da Rede Globo, ao lado de Pelé, mantendo essa tabela com o Rei desde as Eliminatórias.
Galvão Bueno fazia sua primeira Copa como narrador titular. No ‘Fantástico’, Chico Anysio dava opiniões sobre a seleção comandada por Sebastião Lazaroni.
“Eu venho do rádio. Gosto é do rádio”, repetia sempre.
Aos 17 anos, Chico foi contratado para comentar jogos pela Rádio Guanabara. Versátil, logo mostrou-se ator, redator, locutor e comentarista. Seu pai, Francisco Anysio de Oliveira Paula, havia sido Presidente do Ceará Sporting Club.
No fim da década de 80, Luiz Penido, “O Garotão da Galera”, comandou uma revolução no rádio esportivo. Aceitou o convite do diretor Alfredo Raimundo, da Super Rádio Tupi, e levou vários companheiros da Rádio Globo, como Édson Mauro, Sérgio Noronha, Eraldo Leite, Gilson Ricardo e Danilo Bahia.
Após algum tempo, já na Tupi, Penido decidiu chamar Chico Anysio para ser o comentarista.
“É o meu sonho!”, respondeu no ato.
A gente percebia a satisfação dele ao chegar ao Maracanã e ser imediatamente cercado pelos torcedores.
Seu personagem preferido, dentre os mais de duzentos que criou, foi Alberto Roberto, um ator sonhador, narcisista, com uma rede na cabeça e um bigode fino e preto. Com a presença de artistas, deixava louco o seu agente, Da Júlia (interpretado por Lúcio Mauro), por conta da soberba – ele se comparava a Marlon Brando e Robert De Niro, para se ter ideia.
Roberval Taylor, com olheiras profundas e voz empostada, homenageava os profissionais do rádio. Confesso que era difícil enxergar o ‘Grande Artista’ fora do humorismo. Mas testemunhei seu afeto pelo veículo que lhe abriu as portas para o estrelato.
Chico Anysio faleceu, aos 80 anos de idade, no dia 23 de março de 2012, de falência múltipla dos órgãos, no Hospital Samaritano, em Botafogo, bairro da zona sul do Rio de Janeiro.
TRÊS MENINOS E SEUS VELHOS
por Claudio Lovato Filho
O menino está na garagem do prédio chutando contra o muro a bola de couro muito gasta.
Ainda sente no rosto a dor da agressão sofrida por ter desafiado a autoridade paterna. Na verdade, apenas fez uma pergunta, mas isso foi o bastante.
Não foi a primeira vez que apanhou, mas desta vez sentiu algo diferente na ação da qual foi vítima. Não percebeu irritação, brabeza, impaciência, esse tipo de coisa. Percebeu raiva.
Outro chute na bola, a bola contra o muro, a bola voltando rápida, o corpo desviando, a bola batendo na lixeira ao lado do elevador de serviço.
Então o portão da garagem começa a se abrir. Um carro vem entrando.
O menino para de chutar a bola, e o carro passa por ele, bem devagar. O motorista e o menino que está sentado no assento do carona estão rindo. Na verdade, o homem ri e o menino ao lado dele dá gargalhadas; está com o rosto vermelho de tanto rir.
O carro passa e o menino volta a chutar a bola contra a parede. O rosto já não tem mais as marcas do tapa, não lateja mais, mas isso não é suficiente para eliminar a tristeza e o ressentimento que insistem em permanecer dentro dele.
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Da beira da quadra de cimento, o homem diz:
“O pé de apoio tem que ficar mais perto da bola!”
“Mas eu estou botando!”, responde o menino.
“Mais perto! Bem do lado da bola. Você vai ver como o chute vai ser mais forte”.
“Eu sei! Você já me disse isso!”
“Então vai de novo! Mais perto da bola! Bem do lado!”
“Tá bom, tá bom!”
E o menino vai percebendo que, quanto mais perto da bola coloca o pé de apoio, mais forte e direcionado sai o chute.
“Isso. Tá melhorando”.
“Tô cansado!”
“Mais três. Só mais três”.
O menino chuta mais três vezes, estufando a rede do gol vazio.
Mais tarde, bem mais tarde, dali a alguns anos, quando já tiver se tornado o profissional que sonhava ser, o menino vai se lembrar muitas vezes desses finais de tarde na quadra de esportes perto de casa e dos ensinamentos do pai, e vai se convencer da importância daquilo para que absorvesse com profundidade um sentimento que iria acompanhá-lo por toda a vida: o sentimento se saber-se alguém que pode ser amado.
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No avião, indo para o sepultamento, ele agradece por estar em movimento contínuo desde que recebeu a notícia. Estava saindo de casa quando o telefone tocou. Ele viu o DDD e imediatamente compreendeu. Atendeu e não deu outra. Depois disso foi a compra da passagem, a arrumação da mala, os avisos para os mais próximos, tudo com a ajuda da esposa. A correria pode ser uma grande aliada nessas horas. Uma grande amiga.
Agora é a hora do avião. Sozinho com seus pensamentos, até o destino final (uma expressão que lhe pareceu irônica nesse momento). Sozinho com suas lembranças.
“É a festa ou o futebol. Tem que escolher. Os dois, não dá”, o velho tinha lhe dito mais de uma vez. Bem mais de uma vez. Ele escolheu o futebol.
Depois, quando estava sendo promovido da base para os profissionais:
“Nada de bancar o espertalhão. Humildade no trato e seriedade no trabalho. É assim que se conquista respeito”.
Tantos ensinamentos, tantos conselhos.
“Amigos vão ser poucos. Mas isso é assim mesmo. No futebol são companheiros de clube. Colegas de profissão. Alguns vão se tornar seus amigos. Poucos”.
O velho falava pouco, mas dizia muito.
“Guarda o seu dinheiro”.
O avião aterrissa. Ele tenta antecipar tudo o que vai encontrar, mas não consegue e para de tentar. Deixa que os acontecimentos se sucedam, segue o fluxo.
No carro, a caminho do cemitério, ele recorda o dia em que entregou a camisa ao pai, a camisa do jogo em que marcou seu primeiro gol como profissional, e lembra do sorriso no rosto do pai e do brilho nos olhos do pai e do abraço que o pai lhe deu. E então ele, dentro do carro que trafega pela via expressa com asfalto ainda molhado pela chuva recente, a caminho de tudo aquilo que sabe que muito em breve terá que enfrentar, finalmente chora.
SALÁRIOS ATÉ ATRASAVAM, MAS OS TÍTULOS ESTAVAM EM DIA
por Zé Roberto Padilha
Poucos clubes que aderiram ao SAF, como o Botafogo, demonstraram tão precisamente o que significa essa nova realidade para o nosso futebol. Os cofres estarão cheios, ano passado o lucro foi de 388 milhões, e as salas de troféus vazias.
John Textor é só alegria. Ao liderar 82% das rodadas do Campeonato Brasileiro, o clube retirou da geladeira torcedores desconfiados e vendeu mais camisas que todos os clubes brasileiros.
Para dar lucro, mexeu na estrutura da equipe negociando Jefinho, com o Lyon, Kanu para o Bahia e Luis Castro, para o Al-Nassr. Pouco importa o estrago que causou dentro de campo aos interinos que assumiram em meio ao campeonato.
O que era mais importante para o clube, os jogos decisivos no tapetinho ou os shows lucrativos que ajudaram a aumentar a receita? E lá foi o time jogar fora quando mais precisava do seu cantinho.
Ficou o pênalti perdido pelo Tiquinho e a falta de comando de Lúcio Flávio como responsáveis pela perda do título. Porém, enquanto seus torcedores foram ironizados, o deboche se espalhou no lado oposto às cifras vultosas, John Textor foi comemorar seus lucros exorbitantes em paraísos tropicais.
O SAF tem no Botafogo o maior exemplo para os clubes de futebol que vão ter que optar: taças e títulos ou caixas abarrotadas de dinheiro? A braçadeira será entregue ao diretor de futebol ou ao tesoureiro do clube?
Garrincha, Jairzinho, Nilton Santos e Gerson até recebiam com atraso. Pediam vales. Mas os títulos e glórias esportivas estavam em dia.
DUAS ESCOLAS, NENHUM COMANDO, POUCAS ESPERANÇAS
por Zé Roberto Padilha
Não sei por qual ótica analisaram Vasco X Fluminense, mas a que nos chamou a atenção foram suas posturas táticas distintas.
De um lado, um time experiente abusava da habilidade dos seus jogadores. Muitos já anexando os papéis para completar a justa aposentadoria, tocavam a bola com categoria no intuito de manter a sua posse.
Se a perdem, vão correr o que não podem para recuperá-la. A solução: esbravejar com o árbitro e dar um carrinho porque não deu para chegar antes para realizar a cobertura.
Ser ranzinza faz parte dessa transição.
Uma pena que Xerém não seja prioridade, seja exceção, na renovação tricolor. Logo são vendidos, poucos permanecem.
Do outro lado, um comandante experiente, francês, que cruzou o Atlântico para, igualmente, completar a aposentadoria, fazia a bola ganhar velocidade nos contra-ataques. Circulavam ao seu lado pernas e pulmões voluntários que não ganharam destaque na Copinha. Do contrário, tinham embarcado para a Europa, como o Coutinho.
Como mediador, um árbitro sem a experiência necessária para mediar o encontro dos que voltaram com aqueles que sobraram. Tinha que ser 0x0.
Tirando a Copa do Nordeste, a seriedade com que Bahia e Fortaleza estão tocando seus projetos, já passou da hora de repensar os rumos do futebol brasileiro. Lembra?
Estamos fora das Olimpíadas e ocupamos a sexta colocação nas eliminatórias da Copa. O que precisa acontecer mais para ser recompensado com gols os que, como eu, ficaram acordados até mais tarde?
UMA COISA JOGADA COM MÚSICA – CAPÍTULO 49
por Eduardo Lamas Neiva
Zé Ary aproveita a breve dispersão do público e uma pausa na resenha da mesa principal do bar Além da Imaginação após a execução de “Escola de Feola” para pôr no aparelho de som “Brasil campeão do mundo”, de Aldemar Paiva e Nelson Ferreira, interpretada por Claudionor Germano, acompanhado por orquestra e o Coro Mocambo.
https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/167575/brasil-campeao-do-mundo
Com o fim da execução de mais uma homenagem à seleção brasileira de 1958, Vicente Feola voltou a ser o tema da mesa.
João Sem Medo: – Em clube, Feola só dirigiu o São Paulo e o Boca Juniors, da Argentina.
Idiota da Objetividade: – Tudo indicava que Feola fosse o técnico na Copa de 62.
Garçom: – Garrincha ganhou aquela Copa pra gente, não foi?
João Sem Medo: – Pra começo de conversa, gosto de afirmar que se Garrincha fosse espanhol, a Espanha teria ganho o negócio. Se fosse inglês, naquele dia dos 3 a 1, nós teríamos entrado pelo cano para os ingleses. Mesmo contra o impetuoso, mas modesto Chile, se o Mané não mete aqueles dois logo de cara, confesso que não arriscaria nada. Se estou dando berro a favor de Mané Garrincha é porque jamais se pode admitir que lhe roubassem outra vez um título que, de justiça, já deveria ter lhe pertencido desde 58, quando entrou num time que vinha jogando mais ou menos, igual aos outros, e que depois da entrada do cobra no jogo contra a Rússia passou a ser uma máquina infernal. Viva Garrincha! Daqui a 400 anos, toda vez que falarem de futebol terão de falar de Mané Garrincha.
Ovacionado mais uma vez pelo público presente ao bar, Mané Garrincha se levanta e agradece mais uma vez a todos, em especial a João Sem Medo. Zé Ary aproveita a deixa.
Garçom: – Vamos aproveitar para homenagear mais uma vez Mané Garrincha, então?
Músico: – Claro que sim, como se vê todos concordam. Vamos chamar ao palco o grande saxofonista Luiz Americano, um mestre do nosso choro.
Luiz Americano vai ao palco aplaudido por todos.
Luiz Americano: – Obrigado! Se é pra enaltecer este grande gênio do nosso futebol, a música chama-se simplesmente “Garrincha”.
Músico: – E isso resume tudo, vocês vão ver. Ou melhor, ouvir.
O público no bar caiu na gargalhada com a maestria de Luiz Americano ao representar as risadas do povo com os dribles do Mané no saxofone. João Sem Medo, Ceguinho Torcedor e Sobrenatural de Almeida se levantam para aplaudi-lo de pé, juntamente com todos que estavam no Além da Imaginação. Uma epopeia!
Rindo muito, Garrincha vai ao palco e dá um abraço apertado no saxofonista.
Luiz Americano (emocionado): – Muito obrigado! Muito obrigado! Muito obrigado por tudo, Mané.
Ambos saem do palco abraçados como se fossem amigos de longa data. E a resenha volta a esquentar.
Ceguinho Torcedor: – A partir da vitória de 62 sumiram todos os imbecis, não havia mais um idiota nesta Terra. Passamos a ser 75 milhões de reis, até mesmo o bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também era rei. Ninguém tinha dúvidas da vitória. E sofríamos porque há também a angústia da certeza. Amigos, nunca foi tão fácil ser profeta. Nós sentíamos o Bi, nós o apalpávamos, nós o farejávamos.
Sobrenatural de Almeida: – Tirei o Pelé de campo e da Copa contra a Tchecoslováquia pra provar que o Brasil podia vencer sem seu rei.
Ceguinho Torcedor: – Feliz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o Possesso, surgiu contra a Espanha e foi o novo Pelé proclamado. E Garrincha? Foi o gênio duplo do escrete. Era genial por si e por Pelé.
Garçom: – E pra cantar os nossos gênios da bola, só mesmo mais um gênio da nossa música. Jackson do Pandeiro, por favor, venha ao palco.
Sob aplausos, Jackson do Pandeiro se encaminha para o palco e, sem perder tempo, vai direto ao assunto com a banda.
Jackson do Pandeiro: – Este foi o “Frevo do bi”, composto por Braz Marques e Diógenes Bezerra. Muito obrigado, minha gente! Em especial o meu agradecimento vai pro Zé Ary, que se mostrou um grande dançarino.
Todos riem. E aplaudem.
Jackson do Pandeiro: – Só um esclarecimento: esta música foi feita e gravada antes da Copa de 62.
Garçom: – Ah, por isso a letra fala tanto do Pelé, que acabou jogando só duas partidas.
Jackson do Pandeiro: – Isso mesmo. Obrigado.
Jackson do Pandeiro sai do palco aplaudido de pé e se direciona à sua mesa.
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Um gol desse não se perde!