Manga
SEM LUVAS, MIL GLÓRIAS
por Paulo Escobar
Como sair do Uruguai sem antes encontrar aquele que parecia sumido, e por que não esquecido?
Antes da volta, um pedido foi feito pelo Museu da Pelada: encontrar um dos maiores goleiros que talvez tenha pisado terra brasileira. Ídolo de tantos clubes, fechou tantos gols e de tantas histórias, podemos dizer que Manga deu suas mãos pelo futebol, quebrou seus dedos, deixou sua vida muitas vezes nos Gramados.
Lembrado por torcedores do Botafogo, Inter, Grêmio e Operário no Brasil, mas esquecido pelas diretorias desses mesmos clubes, Manga é o exemplo clássico de como o Brasil trata seus ídolos e esquece sua história. Nosso goleiro não encontrou portas abertas no momento mais difícil de sua vida.
Foi no Uruguai, mais precisamente alguns torcedores do Nacional, que estenderam a mão. Médicos que o atendem ou o Sr. do mercadinho debaixo do prédio que os torcedores alugam pra ele e sua esposa Cecília. Talvez nesta que seja a missão da sobrevivência a qual ele enfrenta.
Talvez a defesa mais difícil de Manga seja a de sobreviver diante da triste realidade que enfrenta. Mas o futebol levanta pessoas e torcedores que lembram dos seus, e isso é o bonito do esporte, seus apaixonados que são o coração dos times.
Antes de sair, Manga me confessou um último sonho: entrar no Maracanã e ver seu Botafogo mais uma vez sentir o carinho da arquibancada e o grito do seu nome pela torcida da estrela solitária. E num abraço antes de me despedir, chorei com Manga, eu rubro-negro sonhando em ver sua alegria mais uma vez com a torcida do Botafogo.
DOVAL, DO RIO, MOÇAS E FESTAS
por André Felipe de Lima
“E de repente, não mais que de repente, saiu o gol tão sonhado. Uma cabeçada de Doval, maravilhosa cabeçada. Viva esse gringo, que persegue o gol com feroz obstinação!”. Frase tão elaborada, não partiria de qualquer torcedor. Somente Nelson Rodrigues para verter palavras tão bem alinhadas sobre um jogador, obviamente do Fluminense, sua paixão maior.
Mas o argentino Narciso Horacio Doval conquistou outra torcida antes da massa tricolor: a do Flamengo. Pelos dois clubes foi campeão estadual e jogou com algumas das melhores gerações de craques do futebol nacional. Vejam só: no Flamengo, teve ao lado Zico e Paulo Cézar Caju; no Fluminense, Rivellino, Carlos Alberto Torres, Pintinho, Edinho e o mesmo Paulo Cézar Caju, que o conhecia muito bem, no gramado e fora dele. Foram parceiraços. Doval era o “El loco” de Ipanema enquanto Caju, o jogador mais badalado, o mais cult da zona sul. Quem não queria tirar onda como eles?
Durante um jogo do Flamengo contra o América, em 1970, Doval aprendeu a amar definitivamente o futebol brasileiro e, especialmente, o Rio de Janeiro.
Como escreveu o saudoso repórter Fausto Neto, o jogo estava 0 a 0 até que Doval tomou a bola de Mareco, entrou pelo lado esquerdo da área e tocou-a no canto direito do goleiro. Um gol que garantiria a vitória e despertaria um monumental som emanado da arquibancada: “Doval! Doval! Doval!”.
“Eu tremi nas bases. Fiquei bobo. Nunca tinha ouvido 100 mil pessoas gritando meu nome […] Jogar no Flamengo é simplesmente fascinante. Esta história de que a camisa do Flamengo corre sozinha, dribla e faz gols é mais que uma história, é uma verdade. Conheço quase todo o mundo, joguei para grandes plateias, lá mesmo na Argentina a parada não é mole, mas o Maracanã em dia de Flamengo é o diabo […] A torcida rubro-negra é um milagre”.
Doval nunca se esqueceria daquele dia.
O craque argentino nasceu no dia 4 de janeiro de 1944, em Buenos Aires, e morreu de infarto — igual ao pai — no dia 12 de outubro de 1991, na mesma cidade. Começou a se sentir mal quando voltava da famosa boate Alvear, na capital portenha, após comemorar uma vitória do Flamengo na Supercopa da Libertadores sobre o Estudiantes de La Plata.
BRILHO NO SAN LORENZO
Com 13 anos de idade, Doval jogava as peladas como goleiro, mas como gostava de sair driblando, o colocaram no meio-campo para sossegá-lo. Depois, ao se profissionalizar, descobriram que o lourinho de olho azul era, na verdade, um senhor atacante.
O primeiro clube da carreira de Doval foi o San Lorenzo de Almagro. Estreou no clube argentino em 1962. Dividia-se entre os gramados e as passarelas. Reconhecidamente um homem bonito, Doval fora também manequim de uma casa de moda em Buenos Aires. Quando chegou ao Rubro-negro em 1969, indicado pelo técnico Tim, que o havia treinado na Argentina, receberia, em pouco tempo, convite para estrelar novela na TV. Preferiu manter-se nos gramados.
Logo no primeiro jogo, Doval, que atuava mais como ponta-direita, não conseguiu evitar a derrota para o Botafogo por 2 a 0, em 20 de abril. Dois anos depois retornou à Argentina, para o Huracán, por não aceitar cortar os cabelos e a barba, como queria o técnico Dorival Knippel, o “Yustrich”, que, apesar de tudo, dizia que Doval “conversava bem com a bola”.
Mas em 1972, o craque voltou à Gávea para ser campeão estadual e artilheiro, com 16 gols. Em 1974 não foi artilheiro, mas levantou novamente o troféu de campeão carioca ao lado de Zico, com quem formou excelente dupla na Gávea. Avesso às entrevistas, Doval foi um dos melhores parceiros de ataque de Zico. O que o Galinho sempre confirmou.
Deixou o Flamengo em 1976, após marcar 95 gols em 263 jogos. Estava na lista do “troca-troca” do Francisco Horta entre Flamengo e Fluminense. Doval seguiu, portanto, para a rua Álvaro Chaves, acompanhando o goleiro Renato e o lateral-esquerdo Rodrigues Neto.
No Tricolor, Doval foi campeão e artilheiro de 1976, com 20 gols anotados. Foi dele o gol do título, no último minuto da prorrogação, contra o Vasco. Um gol que Nelson Rodrigues , de forma prodigiosa, esmiuçou em sua coluna do jornal O Globo:
“Amigos, se o Fluminense ganhasse de 5 x 0 não teria a graça que teve o suspense pavoroso […] E de repente, não mais que de repente, como diz o poeta, saiu o gol tão sonhado, tão desejado. Foi uma cabeçada de Doval, maravilhosa cabeçada. Isso depois de 118 minutos de uma espera trágica. Uma multidão tensa pôde subir pelas paredes como lagartixas profissionais. Viva o gringo, o goleador nato e hereditário, que perseguia o gol com feroz obstinação […] e enfiou a cabeça para a mais doce e mais santa vitória da terra.”
Com o manto tricolor, Doval disputou 142 jogos e marcou 68 gols.
A dupla Fla-Flu marcou sua vida. Quando um lado o amava o outro procurava irritá-lo. E vice-versa. Mas jamais detestá-lo. Era amado pelos dois lados da arquibancada. Foi assim a passagem de Doval no Rio.
Durante um clássico entre os dois clubes, os tricolores gritavam da arquibancada: “Chincheiro, chincheiro…”. Doval, figura fácil na praia de Ipanema, era lembrado pelo bom futebol e pela fama — que ele nunca admitiu, mas também não negou — de ser chegado a um cigarro de maconha, o “barato” predileto da moçada que frequentava as dunas de Ipanema naqueles psicodélicos anos de 1970.
Fim de jogo, um repórter se aproximou de Doval e perguntou como o craque interpretava os gritos da torcida. Doval, com o seu indefectível portunhol, saiu-se com essa: “No compreendi nada! Yo comi la pelota e todos só gritavam pelo Tinteiro!!!”. Para quem não se recorda, Tinteiro era um lateral-esquerdo rubro-negro em campo. Pano rápido.
O argentino, que comemorava seus gols no Maracanã de punhos cerrados para a torcida da geral, na beira do fosso, parou de jogar em 1980, no San Lorenzo. Fez apenas uma partida pela seleção de seu país, em 1964. Dizem que foi banido do escrete por ter apalpado uma comissária de bordo quando a delegação portenha viajava para mais um compromisso.
Notívago contumaz, o “El Loco” — como Doval era conhecido na Argentina — fazia muito sucesso com as mulheres cariocas. Invariavelmente, ele era visto com algumas lindíssimas. O craque, tantas vezes campeão no Rio de Janeiro, sequer deu volta olímpica em sua terra natal. Doval foi, contudo, prodigioso no campo e no anedotário do futebol carioca.
Nos anos de 1970, durante um jogo, o locutor oficial do Maracanã anunciou que Doval acabara de morrer. O inusitado era a presença do craque no estádio. Para corrigir tamanha gafe, o intrépido locutor, com sua voz ressonante, emendou pior que o soneto: “O jogador Doval, que havia morrido, não morreu e está assistindo ao jogo.”
O jornalista Renato Maurício Prado define Doval como o “gringo mais carioca” que pisou os gramados do Rio. O craque morava no Hotel Vermont, na rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, bairro no qual poderia ser visto de dia, na praia, disputando peladas, e de noite, boates mais badaladas da cidade. Em dias de festas de Momo, então… Doval era o Rio, e a cidade o reverenciava com toda justiça.
CAMPEÃO DO MUNDO, À REVELIA
por Pedro Henrique Gomes
A extraordinária jornada do Bangu pelas terras do Tio Sam
Bangu, campeão do International Soccer League (1960). Fonte: https://www.bangu-ac.com.br/titulo-mundial-do-bangu-faz-58-anos/
Era 1960 e ninguém quis representar o Brasil num torneio internacional de Football sediado na cidade de Nova Iorque por medo de represálias das federações locais de futebol. Fluminense, Botafogo, Santos e Palmeiras renunciaram ao torneio e o Bangu, vice-campeão carioca em 1959, assumiu a missão de ser o embaixador do futebol em terras estadunidenses. Contra os interesses da federação de futebol do Rio de Janeiro e sob críticas dos jornalistas de plantão, Bangu mandou seu jovem time para o torneio e colocou a equipe de juniores para disputar o campeonato carioca daquele ano. O jovem Ademir da Guia e o clube proletário foram as sensações do torneio numa campanha invicta contra os grandes campeões do território europeu.
Para incentivar a prática futebolística nos EUA, o International Soccer League foi um Torneio Mundial de Clubes realizado em Nova Iorque e disputado entre 1960 e 1965. A primeira edição foi realizada durante os meses de maio, junho e julho de 1960. Autorizada pela FIFA e sob a supervisão de Stanley Rous, então presidente da Associação Inglesa de Futebol, secretário-geral e vice-presidente da FIFA, o torneio teve como referência a Copa do Mundo de Seleções e foi jogado por boa parte do campeões nacionais dos países que disputaram a Copa do Mundo de 1958, quando o Brasil se sagrou campeão pela primeira vez.
O texto que vos escrevo é uma tentativa de mostrar a trajetória de um campeão à revelia que encantou o público em terras estrangeiras, foi denunciado para a justiça desportiva e foi bastante criticado pela imprensa local. O Bangu, clube proletário e suburbano carioca, foi rebelde no cenário futebolístico em 1960. Por meio de notícias do Jornal dos Sports, tradicional periódico da cidade do Rio de Janeiro, será narrado alguns episódios da jornada heroica alvirrubra.
Uma viagem à revelia
Antes de qualquer coisa, vale explicar a mencionada infração do Bangu frente às determinações da Confederação Nacional de Desportos (CND). Na época, a CND proibia a participação dos clubes futebolísticos em eventos paralelos aos campeonatos locais e regionais. Não era permitido colocar o Campeonato Carioca e o Torneio Rio-São Paulo em segundo plano. Existia punição por meio de multa e o clube era julgado pela justiça desportiva para a definição de outras punições. O Bangu questionou as determinações, aceitou o convite para disputar o torneio e foi julgado.
Na época, leitores do Jornal dos Sports enviavam cartas com críticas ferrenhas ao clube proletário. Em duas delas, é possível entender parte das razões. Numa crítica publicada em 04/08/1960, na página 03, do referido periódico, intitulada O Medo de Punir, um leitor discutiu e defendeu a punição do Bangu em prol da valorização dos campeonatos locais e da ordem estabelecida na CND. Porém, reconhecia que dificilmente o clube seria punido em razão da elasticidade das leis desportivas. Segundo o leitor, “é preciso impedir que o fato se repita. Ou pela penalização severa do Bangu, que parece difícil em face da elasticidade do Código Brasileiro de Football ou pela proibição que existe mas sem punição prevista no regulamento da federação”.
Em outra crítica publicada no dia 05/08/1960, intitulada O Sentido do Campeonato, o leitor denunciava a desvalorização dos campeonatos locais pelos clubes em virtude das viagens para excursionar em vários países denominada por excursões caça-níquel. Tal atitude deixava os jogadores cansados nas vésperas da estreia nos campeonatos locais. Para o leitor, “o campeonato é a atividade sagrada dos clubes. Ou devia ser se fossem respeitados não só os regulamentos como, principalmente, o ideal do esporte”. De certa forma, a denúncia era fruto de uma preocupação dos torcedores e dirigentes num contexto marcado pela emergência do futebol brasileiro após a sua primeira conquista mundial com a seleção brasileira na Copa do Mundo de 1958. Os clubes brasileiros eram cada vez mais convidados para jogar fora do território nacional, o que gerava rendimentos financeiros para os mesmos, e isso poderia gerar a desvalorização dos tradicionais campeonatos locais. Para muitos, a atitude do Bangu foi considerada uma subversão do esporte, um desinteresse pela competição e o público local. Em razão disso, o clube foi julgado no dia 05/08/1960 e foi isento de culpa. O caso foi considerado um problema administrativo da federação e seu regulamento.
Na imprensa carioca, além das cartas enviadas pelos leitores, os colunistas do Jornal dos Sports travavam grandes debates sobre o acontecido. Muitos jornalistas consideravam que a aventura do jovem time do Bangu seria marcada por derrotas e prejuízos financeiros. Entretanto, outros reconheciam os feitos da equipe alvirrubra e elogiavam a campanha. Um exemplo era o jornalista Nelson Rodrigues. Apesar de críticas iniciais, Rodrigues publicou textos com destaques para a campanha do Bangu. No dia 04/08/1960, na coluna Dá Bom Dia, é publicado o texto intitulado A Estrela do Bangu, marcado por ideias ufanistas. A equipe do Bangu e sua vitoriosa trajetória representava, juntamente com o primeiro título mundial da seleção brasileira, o rompimento do complexo de vira-latas e a emergência do sentimento de valorização de ser brasileiro. Segundo Rodrigues, “é nas partidas internacionais que o sujeito sente a conveniência de ser brasileiro. Agora mesmo, amigos, agora mesmo! O Bangu está nos Estados Unidos representando o nosso football. E não apenas o nosso football: — representando o Brasil. A meu ver, um team patrício no exterior é a própria pátria de calções e chuteiras, é a própria nação dando botinadas. E justiça se lhe faça. O Bangu anda realizando milagres, lá fora”.
Uma campanha extraordinária
Extraído de Jornal dos Sports, 05/07/1960.
Diante do contexto de polêmicas e elogios, precisamos destacar a excelente campanha do clube proletário da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A equipe teve cinco vitórias e um empate com a seguinte formação: Ubirajara, Joel, Darci Faria, Zózimo, Ananias, Nilton dos Santos, Luis Carlos, Zé Maria, Correia, Ademir da Guia e Beto. O craque do Torneio Mundial de Clubes foi o jovem Ademir da Guia com 18 anos.
A campanha iniciou-se no dia 04/07/1960 com uma sonora vitória de 4 x 0 contra a Sampdoria com dois gols de Zé Maria e dois gols de Luiz Carlos. Com a primeira rodada do torneio realizada, a imprensa local já colocava o Bangu e a Estrela Vermelha como os favoritos. O time de Belgrado também havia ganho o primeiro jogo com uma goleada de 5 x 2 contra o Rapid Viena, campeão austríaco de 1959/60.
Na segunda partida do grupo B do International Soccer League, o Bangu enfrentou o Rapid Viena no dia 10/07/1960. O jogo foi marcado pelo nervosismo da jovem equipe alvirrubra, ao levar um gol no início da partida. Com os nervos em ordem, o time virou o jogo com gols de Zé Maria, Luiz Carlos e Hugo e a defesa se manteve firme para garantir a vitória por 3 x 2. Essas duas primeiras vitórias rompem com o pessimismo do noticiário esportivo fluminense e despertam elogios para a campanha alvirrubra. Boa parte dos elogios são direcionados para o meia Ademir da Guia, o artilheiro impetuoso Zé Maria e a defesa segura de Zózimo. Além de vitórias e gols, o Bangu atraia grandes públicos para as partidas. Nas duas primeiras quase 40 mil pessoas presenciaram os feitos do time.
Extraído do Jornal dos Sports, 11/07/1960.
O terceiro jogo foi contra o vice-campeão português Sporting Lisboa. Em jogo disputado no dia 16/07/1960, o Bangu meteu uma saraivada de 5 x 1, com gols de Zé Maria (2), Luiz Carlos (2) e Beto. O time comandado por Tim jogou partida espetacular e teve Zé Maria como grande nome. O público novaiorquino ficou fascinado com o virtuosismo, as infiltrações esfuziantes e os dribles que deixaram a defesa portuguesa bem confusa. De certa forma, a partida representou uma batalha vencida contra o football viril e ríspido dos portugueses naquele momento. No dia seguinte ao jogo, a edição 4.469 do Jornal dos Sports estampava na capa a grandiosa vitória. Em comparação às vitórias anteriores, era a primeira vez que o periódico dava um destaque digno a campanha do Bangu na terra do Tio Sam. Um dado curioso da partida contra o Sporting de Lisboa foi a manifestação violenta do jogador português Hilario da Conceição após o quarto gol alvirrubro. Para os portugueses, o gol foi ilegal, mas confirmado pelo juiz. Imediatamente, o jogador chutou fortemente a bola em direção aos espectadores da tribuna e torcedores lusos invadiram o campo para pegar o juiz Ray Kraft. Com a polícia em campo, a partida foi restabelecida após alguns minutos para o Bangu completar o placar elástico.
Extraído da capa do Jornal dos Sports, 17/07/1960.
Ao longo das três partidas, Zé Maria e Luiz Carlos demonstravam grande poderio de ataque com gols em volúpia. O jovem Ademir da Guia orquestrava o time e deixava os adversários enlouquecidos com dribles e jogadas objetivas para o gol. Entretanto, é justo e verdadeiro colocar em evidência o comportamento da defesa composta por Joel, Darci Faria, Zózimo, Ananias e Nilton dos Santos. Em três jogos, três gols tomados. A imprensa do torneio destacava o lado sóbrio e a liderança de Zózimo no bloqueio das equipes adversárias. Se a defesa não segurava as investidas adversárias, o goleiro Ubirajara estava pronto para afastar o perigo e garantir o resultado da equipe alvirrubra.
Com três jogos disputados e três vitórias, o jovem esquadrão banguense era a verdadeira sensação do torneio em gols, em belas vitórias e por atrair grande público ao estádio Polo Grounds. O time iugoslavo do Estrela Vermelha acompanhava a campanha do clube proletário e era credenciado como o grande adversário do Bangu na competição. O confronto contra o Estrela Vermelha seria o último da primeira fase e era importante manter a pegada para enfrentá-los com moral. Mas, antes deles, o Bangu enfrentaria o grande campeão sueco IFK Norrköping. No dia 20/07/1960, no estádio Polo Grounds, o Bangu enfrentou a equipe sueca e teve o seu primeiro grande obstáculo no torneio. A partida terminou num 0 x 0, quebrou a série de grandes vitórias e levou a definição do finalista do grupo B para a última partida contra o Estrela Vermelha — grande esquadrão europeu e favorito nas apostas do torneio. No grupo A, já estava definido o finalista. O vice-campeão escocês Kilmarnock fez uma grande campanha e superou as dificuldades impostas pelos seus adversários — Burnley (campeão inglês), Nice (campeão francês), New York Americans (equipe anfitriã), Bayern de Munique (3º lugar no campeonato alemão) e Gievanon F.C. (Campeão Norte-Irlandês).
Extraído do Jornal dos Sports, edição 9.473, de 22/07/1960.
O jogo contra o campeão sueco foi marcado pela aplicação de um ferrolho viking, o que impediu o jogo mais alegre e técnico do Bangu. O grande destaque da partida foi o goleiro Ubirajara com uma série de defesas portentosas. O time sueco foi um grande adversário com uma defesa bem postada e com contra-ataques velozes. Para o Bangu, restou lamentar um pênalti mal cobrado por Décio Esteves, ratificando assim o empate.
Uma final antecipada
A expectativa era grande. Uma semana separavam o penúltimo jogo contra o IFK Norrköping e a última batalha da primeira fase contra os favoritos do torneio. Nesse intervalo, além do descanso, o Bangu aproveitou para ganhar uma grana e viajou para Montreal para enfrentar uma seleção local. 2 x 0 para encantar os canadenses. Enquanto isso, o Estrela Vermelha sapecava o time sueco com um 4 x 0 e chegava bastante confiante para a última rodada. Afinal, um simples empate garantia a sua vaga para a grande final. Eles tinham um saldo de gols acima do Bangu.
Extraído do Jornal dos Sports, edição 9.488, de 10/08/1960.
Chega o dia 30/07/1960. Dia do principal confronto do grupo B do International Soccer League. No entanto, chuvas torrenciais impedem a realização da partida, agora transferida para o dia seguinte — 31/07/1960. Em disputa, os dois grandes favoritos do torneio: Estrela Vermelha e Bangu, com campanhas impecáveis até o momento. Para a imprensa do torneio, o Bangu deveria temer o esquadrão iugoslavo. Afinal, eles foram campeões nacionais em seis oportunidades nos últimos 10 anos e tinham os melhores jogadores da seleção nacional.
Com 20.107 espectadores, o Bangu alcançou a vitória sobre os iugoslavos por 2 x 0 com gols de Décio Esteves e Zé Maria. O primeiro gol alvirrubro foi uma redenção para o jogador Décio após perder horrorosamente um pênalti no final do último jogo. A partida foi bastante disputada e aguerrida com momentos de conflitos entre jogadores de ambos os times. Para o clube proletário, um dos desafios foi jogar sem o seu principal jogador. O jovem Ademir da Guia não atuou na partida. Para a imprensa internacional, a vitória alvirrubra foi o grande acontecimento internacional do futebol naquele momento. Em crônica internacional publicada na edição 9.481 do Jornal dos Sports, em 02/08/1960, o jornalista Albert Laurence intitulou a sua notícia: Football brasileiro conquista mais um triunfo de relevo mundial com as proezas do Bangu no Torneio de Nova York. No mesmo dia e jornal, em coluna do jornalista Luiz Bayer, a campanha vitoriosa em Nova Iorque é valorizada, porém, é lembrada a polêmica do campeonato carioca disputada por uma equipe de aspirantes.
Extraído do Jornal dos Sports, edição 9.481, de 02/08/1960.
Enquanto o Bangu dava show em terras estrangeiras, a equipe de jogadores aspirantes disputavam o campeonato local com uma péssima campanha. O clube proletário suburbano era indiciado pela justiça desportiva e sofria pressões de outros clubes cariocas. Por exemplo, o Madureira pedia a punição do Bangu com a justificativa de abandono da competição e solicitava indenização pelo baixo público em jogo disputado semanas atrás. Já o Flamengo o apoiava e trabalhava nos bastidores para adiar a partida para uma data após o retorno da equipe banguense.
A Grande Final
De 4 a 31 de julho de 1960, o Bangu Atlético Clube disputou seis jogos com grandes potências futebolísticas do mundo, alcançando 5 vitórias e um empate. Com 14 gols pró e 3 contra. Uma campanha impecável com um ataque fulminante liderado por Zé Maria e Luiz Carlos; um meio de campo habilidoso com o jovem Ademir da Guia e experiente com Décio Esteves; e uma defesa segura liderada por Zózimo e sob a guarda do bom goleiro Ubirajara. O futebol do Bangu encantou os norte-americanos, levando milhares de pessoas ao estádio Polo Grounds. A equipe chegava a final como favorita contra o descansado Kilmarnock, vice-campeão escocês na temporada 1959/60. Sim, descansado. A equipe escocesa tinha disputado a sua primeira fase entre os meses de maio e junho de 1960 e só aguardava o seu adversário para a grande final.
A imprensa brasileira valorizou a campanha banguense e rumou para as terras da América do Norte para cobrir o acontecimento histórico. Mais do que a final de um torneio, a primeira edição do International Soccer League representava o sucesso popular do “soccer” numa grande nação que, até aquele momento, não tinha demonstrado interesse no esporte mais praticado no mundo. De certa forma, as equipes participantes foram os embaixadores do football nos Estados Unidos e arredores. A seguir, podemos assistir alguns lances da grande final.
No dia 06/08/1960, Bangu e Kilmarnock decidiram a final da primeira edição do International Soccer League. Nesse jogo, o Bangu sagrou-se campeão com uma vitória tranquila de 2 x 0. Os gols foram assinados pelo atacante Valter. Cerca de 25 mil pessoas presenciaram uma bela partida e se encantaram com o futebol alvirrubro. Na final, a equipe foi formada por Ubirajara, Joel, Zózimo, Darci Farias, Ananias, Nilton dos Santos, Correia, Zé Maria, Décio, Décio Esteves, Valter e Beto. Apesar da expectativa antes da final, os jogadores Ademir da Guia e Luiz Carlos não foram para o jogo por estarem machucados.
Extraído da capa do Jornal dos Sports, edição 9.486, de 07/08/1960.
Segundo a cobertura esportiva da final, o Bangu iniciou o jogo atacando cerradamente com passes curtos e rápidos, colocando o adversário na roda. Logo, aos 3 minutos de jogo, o atacante Valter faz o primeiro gol após uma jogada espetacular de Décio Esteves. Nem o ferrolho suíço com passes longos do time escocês foi suficiente para brecar as investidas do Bangu. De alguma forma, o empate sem gols contra o IFK Norrköping foi um aprendizado para superar o futebol-força dos europeus. Apesar de ter sido a vedete do torneio, na final, a torcida apoiava o time escocês e se irritava com o amplo domínio brasileiro. Numa jogada isolada do Kilmarnock, o juiz James Mclean marca um pênalti contestável contra o Bangu. Porém, os escoceses foram parados pelas mãos de Ubirajara. O penalidade animou os escoceses e eles fizeram alguma pressão durante o segundo tempo do jogo. No entanto, o goleiro Ubirajara garantiu o resultado na defesa e o atacante Valter voltou a aprontar no final do jogo com um forte tiro no fundo das redes escocesas. Valter foi decisivo com seus gols, mas o craque da partida foi o meia Décio Esteves, capitão do time. No final do jogo, Bangu é campeão do mundo e o jogador Décio recebe a taça e comemora nos braços dos jogadores escoceses, que reconhecem a supremacia do clube proletário suburbano do Rio de Janeiro. O jogo final foi sensacional com as duas equipes jogando para vencer e levando a loucura os torcedores presentes. Infelizmente, um dos torcedores chamado Alfredo Suarez, de 46 anos, não suportou a emoção e veio a falecer após um ataque cardíaco.
O feito do Bangu recebeu destaque na imprensa da época.
Após seis batalhas contra grandes times europeus, a sua glória estampava as capas do New York Times e de outros jornais dos EUA. O radialista Orlando Batista viajou para Nova Iorque e transmitiu a partida pelas ondas do rádio para o território brasileiro através da Rádio Mauá. Na sua cobertura, Orlando Batista destacava o comportamento aguerrido e técnico do Bangu para alcançar a glória. Certamente, a impressão deixada pela equipe em terras do norte contribuiu para a ascensão do futebol por lá.
O Jovem Ademir
Extraído do Jornal O Globo Digital.
Eleito o craque da primeira edição do International Soccer League por um juri de jornalistas e dirigentes, o jovem Ademir reforçou a estrela da família Da Guia no clube proletário da Zona Oeste carioca. Sua permanência no Bangu foi curta, mas deixou um legado para os futuros torcedores do time. Do Bangu foi para o Palmeiras e se tornou um grande jogador da seleção brasileira. Em 2017, além da lembrança do título mundial, o jogador foi homenageado com o lançamento de uma camisa retrô do Bangu, uma edição comemorativa pelo título mundial de clubes alcançado em 1960. Uma ação importante para homenagear os guerreiros que lutaram pelo título e para manter a chama viva da memória banguense nos antigos e novos torcedores. Em 1960, na chegada dos campeões ao Rio de Janeiro, Ademir falava sobre a experiência: “Estou feliz, pois além de ter colaborado com meu clube, ganhei um prêmio que qualquer colega poderia ter ganho”, em entrevista para o Jornal dos Sports. Domingos da Guia, presente na recepção, não escondia tamanha admiração e entusiasmo com o filho — mais um Da Guia a fazer história no clube proletário.
A recepção dos heróis da Zona Oeste
Extraído do Jornal dos Sports, edição 9.489, de 11/08/1960.
Toda uma recepção foi preparada para receber a delegação do Bangu. A chegada em território brasileiro e carioca estava marcada para o dia 10/08/1960, quarta-feira, com desembarque no Galeão. No entanto, os primeiros a chegar no Rio de Janeiro foram o atacante Luiz Carlos e o radialista Orlando Batista. Segundo a imprensa carioca da época, os campeões do mundo receberam um bicho respeitável, cerca de 30 mil cruzeiros de prêmio pelo brilhante título.
Numa pegada ufanista, a imprensa carioca glorificou o resultado do Bangu como a primeira grande ação do futebol brasileiro no mundo após a campanha vitoriosa da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1958. Após a chegada no aeroporto do Galeão, os campeões do mundo foram recebidos pela torcida e saíram em cortejo até a estação de Guilherme da Silveira. Uma grande festa foi realizada na Fábrica Bangu. Na capa do Jornal dos Sports, de 11/08/1960, era estampada a alegria dos torcedores na chegada da equipe. A empolgação tomou conta dos corações alvirrubros. Era felicidade pura. Luiz Bayer, colunista do Jornal dos Sports, assim escreveu no dia seguinte: “A cidade recebeu com todo afeto e com grande entusiasmo os jogadores do Bangu campeões da primeira taça da América. Foi uma acolhida simpática, justa porque o Bangu honrou o football brasileiro mostrando aos norte-americanos um estilo bonito que foi suficiente para demonstrar grande superioridade sobre grandes equipes do football europeu”.
Cortejo para os campeões na Avenida Brasil. Extraído de Jornal dos Sports, edição 9.489, de 11/08/1960.
Como pode ser visto, a recepção e a comemoração foi quilométrica, passando por diferentes bairros e esquinas da nossa cidade. Os campeões do Bangu tiveram um reconhecimento digno da torcida, do Galeão até a estação Guilherme da Silveira. O capitão Décio Esteves era novamente carregado, agora, pelos torcedores do clube proletário que sentiam viva emoção. Cercado por amigos e familiares, o técnico Tim, visivelmente emocionado, bradava no cortejo: “o Bangu é uma coqueluche!”.
Tim e o troféu de campeão. Fonte: https://www.futbox.com/blog/clubes/bangu-1960.
Na Fábrica Bangu, os jogadores foram recebidos por dirigentes, torcedores, operários da fábrica e moradores das cercanias para comemorar o título com banda de música, bandeiras e flâmulas. O patrono do Bangu, Dr. Guilherme da Silveira, assim descreveu o sentimento naquele dia: “Estou feliz, feliz pelo brilho do meu Bangu. Honramos em todos os setores o nosso football. Pela técnica e pela disciplina voltamos de cabeça erguida. Honra aos atletas e ao próprio football da nossa terra”, em entrevista para o Jornal dos Sports.
Para entender o efeito do Bangu campeão mundial naquele momento, recomendamos ler atentamente as homenagens escritas elaboradas pelos jornalistas Nelson Rodrigues, Luiz Bayer e Vargas Neto no dia da chegada do Bangu ao Rio de Janeiro. Em nossa análise, uma equipe necessária para romper com o complexo de vira-latas que ainda era dominante no imaginário do futebol brasileiro naquele momento.
Extraído do Jornal dos Sports, de 10/08/1960.
Extraído do Jornal dos Sports, de 10/08/1960.
Extraído do Jornal dos Sports, de 10/08/1960.
Por fim, o reconhecimento!
Graffiti no muro do Estádio Proletário Guilherme da Silveira, popularmente conhecido como Moça Bonita. Créditos: https://www.facebook.com/BanguCampeaoMundial/
Reconhecer histórias é construir memórias que aproximam, emocionam e criam novos caminhos. Considerando a extraordinária história do Banguzão, é de extrema importância a luta do clube e dos seus torcedores pelo reconhecimento do campeonato mundial de 1960 junto a FIFA. Todo o movimento de criar camisas comemorativas, estampar seus muros é importante para manter a história viva. Brigar pelo reconhecimento nas instituições responsáveis pelo futebol no mundo significa criar novos canais para fortalecer o poder de memória da nação banguense.
Créditos
O texto é fruto da pesquisa de um curioso torcedor do futebol carioca apaixonado pelos clubes do subúrbio e sua relação com seus respectivos bairros. As torcidas do Bangu inspiraram a elaboração dele, especialmente a Banfiel e a Castores da Guilherme — fanáticas pelo clube proletário. Para a sua produção, alimentamo-nos de diferentes textos e vídeos disponíveis na internet e listados a seguir.
Página do Bangu Atlético Clube: https://www.bangu-ac.com.br/titulo-mundial-do-bangu-faz-58-anos/
Liga dos Palpites (Texto): https://medium.com/@ligadospalpites/o-bangu-foi-campe%C3%A3o-mundial-20479ad4f94a
Liga dos Palpites (vídeo): https://youtu.be/6YCx8-a4Z0A
Matéria do Sportv: https://youtu.be/7r7DNFJtbpI
Matéria do Lance: http://blogs.lance.com.br/gol-de-canela-fc/voce-sabia-que-o-bangu-ja-foi-campeao-mundial-entenda-historia/
Ludopédio: https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/campeao-mundial-de-1960-bangu-bangu-bangu/
Última Divisão: https://www.ultimadivisao.com.br/os-mundiais-de-clubes-alternativos/
Página BANGU CAMPEÃO MUNDIAL: https://www.facebook.com/BanguCampeaoMundial/
1921: NASCIDO PALESTRA, FORJADO CRUZEIRO
Juro, esses 99 anos não foram fáceis.
Nesse meu quase um século de vida, vi muita coisa do mundo e isso também me afetou.
O início foi bem difícil, trabalhadores e comerciantes italianos, vindo em busca de uma melhor vida nas primeiras décadas do século passado pelas terras das Minas Gerais resolveram proclamar meu nascimento em 02 de janeiro de 1921. Deram-me o italianíssimo nome de Società Sportiva Palestra Italia, xará do meu primo mais velho paulista. Na época, na periferia da capital mineira: Barro Preto. Hoje, ainda moro nesse bairro que já faz parte da área central de Belo Horizonte. A cidade cresceu muito. Cresci com ela, quase que de mãos dadas. Nasci com as cores da bandeira italiana: verde, vermelho e branco.
Passei minha infância e adolescência sob a flâmula italiana. Até que, quando iniciei a vida adulta, aos 21 anos, iniciou uma perseguição a mim e a meus compatriotas italianos. Por conta da Segunda Guerra Mundial, o governo Vargas me obrigou a mudar meu nome e passei a me chamar: Cruzeiro Esporte Clube. Sem esquecer as origens, meu uniforme agora remetia-se à Azzurra, à seleção bi campeã mundial, camisa azul e short branco. No peito, a primeira referência ao hemisfério sul, onde nasci: cinco estrelas da constelação Cruzeiro do Sul.
Em 1965 conheci o meu grande amor, imponente e nascido em Belo Horizonte, aos arredores da Lagoa da Pampulha, sob os lindos traços de Oscar Niemeyer: o Mineirão, conhecido atualmente também como Toca da Raposa 3.
Sabe aquelas estrelas no peito? Sabe o Mineirão? Pois é: agora o céu é o limite.
Quando meu amor fez 1 ano de idade, eu tive a minha primeira grande glória: Taça Brasil, em 1966. Uma glória que me mostrou para o mundo, ganhamos de 6 gols do Santos de Pepe, Coutinho e Pelé. Um verdadeiro show, com Raul, Piazza, Dirceu, Tostão, Natal, entre outros. Eram moleques que tinha arte com a bola nos pés. Eles apresentaram o mundo para mim, ou melhor: me apresentaram para o mundo.
Os cinco primeiros anos do Mineirão foram só vitórias minhas. Penta campeonato só para mostrar que eu já estava maduro para voar mais alto.
Contudo, 10 anos após ganhar do Santos de Pelé, fui disputar minha primeira final internacional. Era muito difícil jogar contra argentinos e uruguaios por essas terras da América do Sul. Depois de dois jogos duros no Mineirão e no Monumental de Nuñes, me mandaram lá para Santiago, no Chile, para decidir quem seria o rei da América em 1976. Aquele River Plate era um time malandro, marcaram um gol em mim cobrando uma falta sem o juiz apitar, acreditam?! Eu tinha um lateral-direito que tinha um foguete em sua perna direita chamado Nelinho. E, aos 43 minutos do segundo tempo, com uma falta frontal, em um jogo que estava 2 a 2. Mas vocês não acreditam, um bailarino vestido de azul, não quis esperar o Nelinho. Quando Nelinho foi virou de costas para pegar distância, Joãozinho não esperou o árbitro, não esperou Landaburu arrumar a barreira: enquanto o goleiro estava arrumando a barreira em uma trave, ele colocou a bola no ângulo do gol, no lado oposto ao goleiro. Aquilo foi épico.
Os anos de 1980 não foram os melhores. Mas nos anos 1990, iniciou uma nova era. Poderia ficar aqui contando as tantas glórias contra Racing, River Plate, Velez Sarsfield, Colo-Colo, Peñarol, Nacional de Montevideu, ninguém me segurava. A gente juntava todos os campeões da Libertadores até então e fazia a nossa panela, uma campeonato só com os grandes da América do Sul: a Supercopa da Copa Libertadores da América. Ganhei duas vezes seguidas, em 1991 e 1992. O primeiro ano com show de Charles e Mario Tilico, enquanto no ano seguinte a dupla era Renato e Roberto Gaúcho.
Em 1993, ganhei a minha primeira Copa do Brasil, em cima do Grêmio. Ali, iniciava a busca do recorde: quem seria o Rei de Copas do Brasil?
Em 1996, eu já conseguia o bi campeonato da Copa do Brasil. Depois de destruir Pelé, Pepe e Coutinho, o que seria Luizão, Cafu, Rivaldo e Djalminha? Realmente não ganhamos de seis. O Vasco já havia levado seis na “carcunda” (como dizem aqui em Minas), nas oitavas de finais. Aliás, esse “seis” sempre foi um número cabalístico na minha história… Foi sofrido, mas ganhamos de 2 a 1 dentro do estádio, acreditem ou não, o estádio chamado “Palestra Itália”, contra nosso primo paulista que também mudou de nome e se chama Palmeiras.
Aquele meu amor da Pampulha tinha que ter um recorde de público a altura. Final do campeonato mineiro contra o Vila Nova – um time da região metropolitana, de Nova Lima. 133 mil espectadores para ver Cruzeiro enfrentar na final o time que deixou um outro time da região metropolitana, de Vespasiano, em quinto no Campeonato Mineiro. Deixa eu confessar: aqui a gente chama o campeonato mineiro de campeonato rural… mas isso eu conto outra hora.
Em 1997, novamente a glória do maior da América do Sul. Disseram que não chegaria a lugar nenhum, depois de perder as três primeiras partidas. Tenho que confessar, era uma tarefa difícil. Consegui uma vitória épica contra o Grêmio em Porto Alegre, e depois venci os times peruanos do Alianza Lima e Sporting Cristal no Mineirão. Depois fui galgando vitória a vitória, até a grande final. Quem eu encontro lá? Novamente o Sporting Cristal. O jogo estava tenso, até que em uma falta para o Sporting Cristal, o goleiro Dida soltou a bola nos pés do atacante do time peruano. Em milésimos de segundos, o mundo parou. Dida recuperou-se rapidamente e conseguiu espalmar para fora aquela bola. Minutos depois, em um escanteio, a bola sobrou no pé direito do canhoto Elivélton. Ele chutou com a destreza de um canhoto com a perna direita (óbvio). Aquela bola estranha foi passando vagarosamente pelas mãos do goleiro peruano e o Mineirão virando aquela festa sem tamanho.
Para fechar o século XX, outra vitória épica na Copa do Brasil. Dessa vez, contra o São Paulo. Tínhamos que ganhar, mas perdendo até os 30 minutos do segundo tempo por 1 a 0. Dois gols muito rápido, sendo que o segundo foi uma falta “espírita”, por baixo da barreira, deixando o goleiro Rogério Ceni imóvel, já nos acréscimos.
Como vou contar esses meus últimos vinte anos de vida, com tantas glórias a serem contadas?
Em 2003, o Talento Azul, usando a camisa 10, emprestada por Dirceu Lopes, como o próprio Alex disse. Ganhamos todos os campeonatos nacionais possíveis: rural, Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro. Não queria tirar onda, mas nem esse Flamengo de 2019 conseguiu tantas vitórias em um ano como eu consegui em 2003.
Em 2008 e 2009, vale a menção de que no primeiro jogo da final do rural contra o time de Vespasiano, ganhamos de 5 a 0: um gol para cada estrela.
Em 2011, eu estava “voando” no primeiro semestre. O técnico do Peñarol, Diego Aguirre, chegou a me apelidar de Barcelona das Américas. Mas acho que não deu muito certo. No final do ano, estava brigando contra o rebaixamento. O último jogo? Contra o time de Vespasiano. Não poderíamos empatar. Meus dois principais guerreiros não jogariam a última batalha: Montillo e Fábio. Meus outros guerreiros entraram com a faca nos dentes. Roger comandou uma vitória épica no estádio de Sete Lagoas, enquanto meu amor estava sendo reformado para Copa do Mundo. Vocês lembram daquele número cabalístico? Pois é… ganhamos de 6 a 1. Fizemos uma tatuagem no time de Vespasiano, uma marca que nunca cicatrizará.
Em 2013 e 2014, fizemos um time que jogava para frente, assim como a escola de Dirceu e Tostão me ensinou. Em 2017 e 2018, conseguimos ganhar mais duas Copas do Brasil.
Contudo, em 2018, colocaram uns empregados dentro da minha casa que só me deram veneno e remédios que me deixavam com alucinações e fora de mim.
Se o mundo tinha me mudado, a história do político brasileiro entrou em meu corpo: comprando apoio de sócios, de torcidas organizadas, da imprensa até que uma hora, o dinheiro acabou.
Em 2019, apareci na TV. Mas não com minhas glórias, mas nas páginas policiais. Uma quadrilha tomou-me de assalto. Com mandos e desmandos. A polícia veio me visitar. Para os amigos tudo, para os inimigos, nada. Tudo que eu comprava e deixava na dispensa, não existia quando abria os armários. E agora, nos meus 99 anos, o que será de mim?
Parece que a minha torcida viu os meus gritos nos fundos do hospital. Infelizmente tive que ser rebaixado para ouvirem a minha voz. Alguns médicos disseram que eu estava em estado terminal, um enorme câncer havia alastrado por mim em todos os departamentos.
Qual seria a saída? Quimioterapia? Efeitos colaterais fortíssimos.
Mas para você saber, não fui rebaixado. Empurraram-me no desfiladeiro, sem dó, nem piedade. Eu estava sob cuidados de pessoas que não eram incompetentes. Elas sabiam o que estavam fazendo. Agora estão ricas. Caso pensado.
Hoje, no meu aniversário, todos vieram me abraçar. Filas nas lojas pelo meu novo manto. Ações por todos os lados para me recuperar. Homens corretos e honestos, empreendedores da vida, estão agora cuidando de mim. Não será fácil. Não mesmo. Mas me recuperarei mais rápido que vocês imaginam e continuarei com minha caminhada rumo à glória.
Abraço a todos,
Cruzeiro Esporte Clube, O Cabuloso.
A POLARIZAÇÃO DO FUTEBOL BRASILEIRO
por Leandro Ginane
A enorme empolgação dos torcedores dos times brasileiros e parte da imprensa especializada com a derrota do Flamengo para o Liverpool não surpreende, mas levanta uma questão interessante que é reflexo do abismo que se abriu entre o Flamengo e os demais times do país, dentro e fora do campo. O Brasil, tão polarizado na política, parece estar se tornando binário também no futebol e isso é ruim para o futebol brasileiro.
A superioridade imposta no ano de 2019 pelo time da Gávea expôs a enorme fragilidade dos demais times e também da seleção da CBF, que há anos não joga como o verdadeiro futebol brasileiro. O Flamengo mudou o patamar do esporte bretão e isso despertou um sentimento de rivalidade (mesmo que não exista por grande parte dos rubro negros) em todas as partes do país, entre torcedores — que é totalmente aceitável — e parte da imprensa. Na realidade, o momento deveria ser de reconhecimento do ano histórico rubro-negro e união do futebol sul-americano que tem neste time do Flamengo a possibilidade de desafiar o Eurocentrismo no futebol.
Curiosamente, a imprensa européia e sul-americana enxergaram no estilo de jogo do rubro-negro brasileiro, uma forma de desafiar a superioridade européia, mesmo com um orçamento dez vezes menor.
O ar blasé como os europeus tem encarado o torneio mundial da FIFA nos últimos vinte anos deveria envergonhar os sul-americanos, que historicamente sempre foi um celeiro de craques, como Riquelme, Juninho Pernambucano, Raí, etc, mas que se tornou um exportador de mão de obra para a Europa. Perceba que o que está em jogo não é apenas o que acontece durante os noventa minutos, mas a hegemonia histórica que passa pela colonização dos países sul-americanos por aqueles do antigo continente.
A comemoração da vitória do Liverpool sobre o Flamengo é uma demonstração míope e desesperada da grande parte da imprensa que se sente de certa forma aliviada com o resultado do jogo, uma espécie de alento ao corporativismo histórico que está sendo desafiado neste ano.
A contratação de técnicos ultrapassados, que não têm resultados relevantes há mais de uma década por Palmeiras e Vasco demonstra o quanto ainda são resistentes a evolução do futebol na direção de enfrentar os melhores times do mundo. Preferem a mediocridade e a retórica de comemorar a derrota de um time brasileiro, em vez de olhar para os próprios problemas e tentar resolvê-los. Isto é uma armadilha que certamente fará o Flamengo aumentar ainda mais a distância nos próximos dois anos.
Por outro lado, os principais veículos internacionais exaltam o ressurgimento de um time sul-americano capaz de jogar tática e tecnicamente de igual para igual com um time europeu e isso passa longe da comemoração de derrota, mas sim reforça a esperança de que é possível enfrentar os Europeus, diminuir a exportação de mão de obra e criar times competitivos, o que vale também para a seleção brasileira.
Findo 2019, é chegada a hora de reconhecer o que o Flamengo fez de tão diferente, aprender com ele e olhar para dentro para tentar diminuir a distância inédita que se formou no Brasil, a despeito de existir em breve — se é que já não existe — uma grande polarização entre os que estarão ao lado do Flamengo e do futebol brasileiro e os que estarão contra, que manterão o apoio ao corporativismo da CBF e aos técnicos ultrapassados que ganham milhões.
Enquanto os Rubro-negros continuarão sorrindo com o peito repleto de faixas de campeão, recordes quebrados e troféus conquistados.