RAFAEL, O ‘TURRÃO’… O BANGU PAROU NELE
por André Felipe de Lima
Imagine um corintiano em uma família onde todos torcem pelo Palmeiras. Todos italianos e descendentes. Algo quase impossível aconteceu na casa dos Cammarota, no bairro São Judas, em São Paulo. O menino Rafael era corintiano. Exceção. E queria ser goleiro. Encasquetou que defenderia, um dia, o Corinthians. Ninguém tirava ideia tão fixa de sua mente. Quem ousaria?
Em 1969, Rafael, já com 19 anos, realizou seu sonho. Um professor o levou para uma peneira no Parque São Jorge. Foi aprovado, mas teve de esquentar banco durante quase cinco anos até algum treinador oferecer uma oportunidade. “Ei, você aí. Hoje é o teu dia. Vai estrear, garoto”. Deve ter sido mais ou menos isso que Durval Knippel, o mitológico e polêmico Yustrich, então técnico do Corinthians, disse para Rafael naquela tarde de 1974 em que o Timão disputava um amistoso em Poços de Caldas contra a Caldense. O menino fez bonito embaixo das traves. Titular do time, o goleiro Ado, tricampeão mundial em 70, rasgou elogios ao rapaz.
Mas a permanência de Rafael no Timão não durou muito tempo. Foi emprestado à Ponte Preta. Chegou a ser reserva de Carlos na final do campeonato paulista de 1977. Foram cinco anos no clube de Campinas até ser emprestado ao Grêmio Maringá, o primeiro clube paranaense na vida de Rafael. E o rapaz não decepcionou a torcida. Tornou-se ídolo. Era a grande revelação do certame local. Teve gente do Corinthians atrás dele.
Levaram Rafael novamente ao Parque São Jorge, em 1981. Perguntem ao goleiro se ele gostou? É claro. Afinal, tratava-se de um corintiano nato. Irrevogavelmente alvinegro. A estada foi, porém, pouco auspiciosa para Rafael. Sentou no banco para ver o baixinho goleiro César, companheiro de time, jogar. Não havia Democracia Corinthiana que amenizasse a decepção de Rafael com o seu clube de coração. Gostava dos companheiros. Desejava permanecer no clube, apesar da reserva. Lutava pela vaga com brio, técnica e esmero nos treinos. Esforço que nunca foi problema para Rafael. Mas havia um problema sim: Rafael batia de frente com a Democracia Corinthiana, movimento político dos jogadores do clube que, para o goleiro, soava falso. “Só três” falavam e o resto dizia “amém”. Era o que Rafael dizia naquela longínqua época.
Memória em dia, vamos lá: os pilares da Democracia eram Sócrates, Wladimir e Casagrande, com aval, ressalte-se, do então diretor de futebol, Adilson Monteiro Alves.
Não houve jeito. Rafael colheu desafetos no Timão. Wladimir — em reportagem de 1984, assinada por Roberto José da Silva — chegou a dizer naquele período: “O Rafael prejudicava o bom ambiente que estávamos formando na época. Foi expelido pelo grupo.”
Rafael acabou negociado em 1982 para outro clube do Paraná. O Atlético.
Finalmente a carreira, após mais de 10 anos, decolaria. É o que imaginava. No Furacão, Rafael não chegou a fazer história logo de cara. Sofreu grave contusão em 1982. Rompeu o tendão do pé esquerdo. Por isso fazia outra coisa: sombra para o goleiro titular Roberto Costa, mais um que não morria de amores pelo irascível Rafael. “Ele tem um gênio de lascar, costuma alardear pelos corredores que é o melhor em tudo, o mais profissional. Enfim, uma pessoa difícil de se relacionar”, disse Roberto Costa. No final das contas, Costa saiu e Rafael ficou.
Além do gênio intempestivo, as constantes contusões podem ter sido o grande entrave para que Rafael mantivesse a regularidade nos clubes que defendeu até a chegada ao time da Baixada. Na matemática desesperadora, foram oito. A mais grave em 1978, ainda na Ponte Preta. Rafael treinava quando se chocou com um atacante e teve afundamento do malar. Por pouco não perdeu a visão do olho esquerdo. Teve também a fratura na clavícula, quando defendia o Maringá. Vários meses no estaleiro.
Apesar de ser reserva de Roberto Costa e da contusão no pé esquerdo, Rafael defendeu bem as cores do Atlético. Mas pressentia que algo mudaria a sua carreira. E de forma positiva. Seria drástico. Da água para o vinho. Mudou mesmo. Em 1985. De clube, inclusive. Rafael já não era mais corintiano tampouco rubro-negro. Era Alviverde.
A saída do goleiro de um rival para outro da mesma cidade provocou a ira de muitos torcedores do Atlético. “Rafael é traidor!” ou “Os cartolas não poderiam vendê-lo para o Coritiba…”, bradavam.
O que teve de gente rasgando a carteira de sócio do Atlético não estava no gibi. Quem ria à toa era o velho “Chinês”. Evangelino Costa Neves era só festa. Tirar um goleiro do rival bicampeão estadual em 1982 e 83, não tinha preço. E o predestinado Rafael finalmente encontrou sua verdadeira casa.
No Coritiba, conquistou a vaga de titular. Intocável, frise-se. Foi campeão estadual em 1986, mas no ano anterior, a maior glória da história dele e do Coxa: o título de campeão brasileiro. Não teve Bangu, não teve decisão de pênaltis, não teve nada que tirasse a convicção daquele goleiro turrão.
Turrão? sim. Desde pequeno, quando torcia pelo Timão em uma família palmeirense; quando era contrário à Democracia Corinthiana por considerá-la elitista; por superar as graves contusões ao longo da carreira. Rafael tinha certeza: “Seremos campeões brasileiros”. O cara defendeu até pensamento. Não passava nada. Foi decisivo no jogo semifinal contra o Atlético, o Mineiro — tirou uma bola em cima da linha que garantiu o 0 a 0 e classificação —, e contra o Bangu, na finalíssima.
Rafael calou a boca de quem o definia como “velho”. Para a crônica esportiva, ninguém o superou debaixo das traves naquela reluzente temporada.
Quando o juiz apitou o final do jogo contra o Bangu, no Maracanã, ele não se conteve. Esbravejou. Retirou do fundo do armário os fantasmas que o assombravam: “O Rafael é campeão brasileiro. Onde está o Corinthians da Democracia?”. O Corinthians o revelou. Mas disputou apenas 31 jogos com camisa alvinegra, como destaca o Almanaque do Corinthians, do Celso Unzelte. O Corinthians nunca quis Rafael, essa é a verdade. Mas o Coritiba o queria. E muito.
Foram tantos os grandes goleiros que despontaram no Coxa…
José Fontana, o Rei, foi o primeiro. Jogou no Vasco e consagrou-se na seleção brasileira em um tempo em que era improvável qualquer jogador que não fosse do eixo Rio-São Paulo vestir a camisa do escrete nacional. Teve também o Ari. Goleiro papa-fina. Ainda no Coxa chegou à seleção. Depois foi para o Botafogo ser reserva de Osvaldo Baliza. Quem não se recorda de Joel Mendes? Já com a camisa do Santos vestiu a faixa de bicampeão paranaense pelo Coritiba. Ou também de Manga, na casa dos 40 anos de idade, fechou o gol do Alviverde em 1978. E o que falar de Jairo, uma verdadeira “muralha”?… mas nenhum deles foi como Rafael. Ele era especial. Afinal, foi campeão brasileiro.
Quando ergueu o troféu máximo do futebol nacional e foi paparicado pela imprensa, Rafael percebeu que a seleção brasileira não seria algo improvável. A Copa do Mundo de 1986 estava à sua porta. Mas o técnico Telê Santana priorizou a turma — sina infeliz — do eixo Rio-São Paulo. Na lista, Carlos, o titular, do Corinthians; Leão, do Palmeiras, e Paulo Victor, do Fluminense. Valdir de Moraes, então preparador de goleiros da seleção, indicou Rafael à Telê, mas o goleirão do Coxa havia recebido uma punição e, por isso, teria ficado de fora da lista. Seria efeito retardado da implicância de Rafael com alguns companheiros da antiga Democracia Cotinthiana?
Rafael Cammarota nasceu no bairro São Judas, na capital paulista, no dia 7 de janeiro de 1953. Quando encerrou a carreira, tentou se alocar em algum clube para treinar goleiros. O Guarani o recrutou.
O ídolo do Coritiba morou um tempo na capital paulista, onde manteve a escola de futebol “São Rafael”, no bairro do Ipiranga. Dividia o tempo com a garotada e com os seus carros, uma paixão de longa data. Mas retornou à Curitiba, onde todo o dia 12 de outubro abraça seu clube querido em mais um dia de aniversário.
‘MUNDIAL’, ‘LIBERTADORES’ E MUITA CHORUMELA
por André Felipe de Lima
Provocar. Não há verbo mais adequado no dia a dia dos apaixonados debates clubísticos. Ora, em 1948, o Vasco conquistou o memorável Torneio Sul-americano, no Chile, o “irmão mais velho” da Taça Libertadores da América, feito devidamente reconhecido pela Conmebol. Pois bem, o Vasco da Gama é o primeiro campeão continental das Américas e fim de papo. Aliás, a Fifa, também reconheceu, enfim, o “título mundial” do Palmeiras, conquistado, no Maracanã, em 1951. Deveria fazer o mesmo com o Fluminense, que levantou a mesma Copa Rio, no ano seguinte, ou também fazer do Vasco um legítimo campeão do mundo, após a conquista do Torneio Octogonal Rivadavia Corrêa Meyer, competição que substituiu a Copa Rio, em 1953, e nem destaco aqui o badaladíssimo Torneio Internacional de Paris, realizado em 1957, quando o Vasco desbancou o poderoso Real Madrid, de Di Stéfano, Puskas, Gento e muitos outros craques, o Racing Paris e o alemão Rot-Weiss Essen. O fato é que todas estas grandes competições — destaco apenas a Copa Rio e o “Rivadavia” — contaram com mais de seis clubes oriundos dos principais centros futebolísticos do mundo. Torneios muitos mais disputados e infinitamente mais empolgantes que o insosso Mundial de Clubes bancado pela Fifa desde 2000. E, convenhamos, a International Soccer League, disputada em 1960, em Nova Iorque, e conquistada pelo Bangu, também é uma “copa do mundo” de clubes, ora essa. Nosso Alvirrubro carioca é, sim, em tese, campeão mundial, e ponto final. Pensou que parou por aqui? Nada disso. A mesma competição seria disputada até 1965, sendo que o “campeão do mundo” de 1962 — mesmo ano em que o Santos conquistava a sua primeira edição da Copa Intercontinental ou Mundial Interclubes, como queiram — foi o querido América do Rio de Janeiro.
Por aqui, a CBF decidiu que a Taça Brasil, várias vezes conquistada por Santos e Palmeiras, deveria ingressar na lista de campeonatos nacionais iniciada com o título do Atlético Mineiro, em 1971. É justo, em termos. A Taça Brasil, em sua fórmula, assemelha-se mais à atual Copa do Brasil. Já a antiga Taça de Prata, ou Torneio Roberto Gomes de Pedrosa, disputada entre 1967 e 1970, está mais adequada ao modelo deflagrado em 1971. O que muita gente esquece é que o Atlético Mineiro seria, em tese, o legítimo primeiro campeão nacional de clubes ao levantar heroicamente a Copa dos Campeões, de 1937, organizada pela extinta Federação Brasileira de Futebol (FBF). O Galo disputou a taça, em pontos corridos, contra outras cinco equipes, dentre elas Fluminense e Portuguesa de Desportos. Mérito indiscutível.
Essa barafunda de conquistas pode ser motivo para o Flamengo requerer junto à Conmebol o título de “Campeão Sul-americano”, de 1961. Isso porque, em fevereiro daquele ano, o rubro-negro foi campeão do primeiro Torneio Octogonal de Verão, que reuniu a nata do futebol continental. Em campo estiveram Boca Juniors, River Plate, Nacional de Montevidéu, Cerro Porteño, Corinthians, São Paulo e Vasco da Gama. Todos contra todos, ponto corrido para valer. Longe da fórmula do mata-mata da Libertadores, que é até emocionante, mas que pode resultar em algumas injustiças históricas.
Se o “Mundial” valeria para o Palmeiras, vale também para Fluminense e Vasco. Se Santos e Palmeiras assumiram a pecha de maiorais em taças nacionais, reconheça-se (ou, pelo menos, deveriam) o pioneiro título do Galo mineiro. Se a Conmebol reconheceu o Vasco de 1948, por que não reconhecer o Flamengo de 1961? Seria o rubro-negro, portanto, “tricampeão” continental após levantar a Taça Libertadores de 2019?
Tudo é realmente polêmico, mas um prato cheio para fazermos do futebol um inesgotável manancial de saudáveis e acalorados bate-papos. O que desejamos, realmente, é que nossos times sejam campeões. Se a Fifa ou a CBF não reconhecem as conquistas… azar delas, e, garçom, traga, por favor, outra gelada, porque o papo só está no começo.
ENTÃO RESCINDE
por Idel Halfen
Um dia após fazer o lançamento dos novos uniformes, em tese para 2020, o Cruzeiro anunciou que irá rescindir o contrato com o fornecedor.
Apesar de estranho em função do espaço de tempo, trata-se de um direito que ambas as partes contemplam em contrato. Faltou acrescentar à informação acima que não apenas a coleção era nova, mas também o fornecedor, pois, seria a estreia da Adidas no clube mineiro em substituição à Umbro.
A inusitada situação lança luz sobre as mudanças que o mercado de fornecimento de material esportivo vem passando nesses últimos anos.
Após um aquecimento causado não apenas por uma avaliação um pouco distorcida sobre o retorno dos investimentos, mas também, no caso do Brasil, pela proximidade de megaeventos como Jogos Olímpicos e Copa do Mundo, as marcas passaram a ser mais criteriosas em suas ações e propor modelos de negócios diferentes.
Se no passado os principais clubes recebiam das marcas valores fixos mais variáveis baseados em performances esportivas e de vendas, além de um número de peças de vestuário que permitia suprir com folga suas necessidades, agora a maioria ganha basicamente a parte variável e/ou as peças – mesmo assim numa quantidade inferior ao que era no passado.
É natural que toda mudança traga insegurança e insatisfação em um primeiro momento, o que se agrava em clubes de futebol, pois as alterações costumam ocorrer em mandatos presidenciais diferentes, o que deixa a gestão que sofre a mudança vulnerável quando comparada com a anterior. Em resumo, além do impacto que é causado no orçamento em função da redução de receitas, há que se justificar internamente pelo ocorrido, pois, certamente será colocado em dúvida o poder de negociação dos envolvidos.
O problema se agrava na medida em que não há mais muitos caminhos para buscar por se tratar de um movimento das marcas globais, o qual acaba se refletindo nas menores. Diante desse quadro, passa a surgir como opção as chamadas “marcas próprias”, aliás, bastante forte no Brasil.
Os clubes que aderiram a essa “modalidade” se dizem satisfeitos, devendo ser ressaltado que nenhum deles está entre os chamados doze grandes e tampouco têm parte significativa da torcida fora do próprio estado.
Dessa forma fica difícil afirmar se, caso o Cruzeiro venha a optar por ter uma marca própria, ele conseguirá tão bons resultados, até porque, uma marca global traz entre seus benefícios intangíveis o conceito de co-branding – a associação com marcas de relevância.
O mais curioso nessa história é que os clubes que optam pelas “marcas próprias” usam como uma das justificativas para a troca: “a distribuição ruim das grandes marcas”, e o pior é que tanto a imprensa quanto a opinião pública embarcam nesse sofisma, certamente por desconhecerem que para haver distribuição é necessário que o varejo compre, isto é, para o produto chegar ele precisa ser pedido. Partindo desse corolário, um clube como o Cruzeiro deve refletir bastante se será capaz de ter uma equipe comercial que atenda boa parte dos pontos de vendas onde precisa estar presente para suprir seus torcedores e, aí sim, se terá condições de entregar.
Independentemente dos desafios que se enfrentará com esse tipo de fornecimento, a avaliação sobre sua efetividade passa antes de tudo por um comparativo entre as alternativas disponíveis – se é que existem -, tal avaliação deve vir despida de qualquer tipo de paixão ou parametrização com o que era no passado, e tendo como premissa básica a consciência de que o mercado mudou.
‘DE LOUCO E FELINO, TODO GOLEIRO TEM UM POUCO’
por André Felipe de Lima
“Comecei como o fazem todos, ou seja, correndo atrás de uma bola pelas ruas ou pelos campos de várzea. Até que um belo dia, lembro-me bem, pois tinha 10 anos de idade, houve um pênalti contra o nosso lado. Eu atuava na extrema direita, porém o nosso arqueiro abandonou o posto no momento da cobrança da falta. Como naquele jogo valia tudo, fui para o arco ver se conseguia defender. Um ‘grandão’, moreno, com um corpo bastante avantajado, correu e soltou um tremendo balaço de pé direito. Vi que a bola vinha como um foguete e, rapidamente, saltei de encontro à menina. Senti um impacto na cabeça e caí. Depois de ficar atordoado por uns instantes, voltei ao estado normal, em meio a abraços e vivas dos meus companheiros. Tinha defendido com uma cabeçada — aqui entre nós, sem querer… — rebatendo o couro para o meio do campo. Depois dessa, meteram-me na cabeça que eu devia ser goleiro.”
O ex-goleiro Luiz Moraes, o “Cabeção”, cujo apelido não poderia ser outro, nasceu em São Paulo, no dia 23 de agosto de 1930. No gol do Corinthians, na década de 1950, foi o grande rival do inesquecível Gylmar dos Santos Neves, que era exatamente um dia mais velho que ele. “Fiquei sendo Cabeção, simplesmente, e chego ao cúmulo de sentir estranheza quando alguém de chama de Luiz. Luiz Moraes, para mim, é um nome diferente e assume ares de importância”, declarou Cabeção, quando começava a despontar no time do Corinthians.
O pai, o português Adolfo, um mecânico e corintiano não muito convicto, pois não era muito fã do futebol, queria, contudo, vê-lo um dia jogador, mas a mãe, a brasileira Josefina, sempre se mostrou um pouco contrariada com o propósito. Como impedir, porém, o filho, que ainda bem pequeno, gritava pelos pulmões “Gol!!! Gol de Teleco”? Adolfo vaticinara: “Este diabinho ainda vai jogar no Corinthians”. Josefina argumentava que o futebol “não dá camisa” para ninguém, e que o mais sensato seria estudar para se defender dos imprevistos que a vida nos apresenta. Mas Adolfo insistiu em sua intuição.
Corria o ano de 1937, quando o pai pegou o menino pelo braço, vestiu-o com um terninho branco de marinheiro e rumou para o Parque São Jorge, santo chão corintiano. Queria fazer-lhe um mimo: mostrar, bem de perto, o ídolo Teleco. O menino tinha sete anos e, lógico, ficou extasiado porque não conhecera apenas Teleco, mas um panteão de craques. Lá estavam Jaú, Jango, Brandão, Filó Guarisi e Munhoz. Nunca vira uma bola genuinamente de couro até aquele inesquecível dia. No ano seguinte, Cabeção já era sócio do clube e do quadro infantil do Timão. “A gente entrava lá [no Parque São Jorge], brincava com eles [os jogadores], antigamente, quando era moleque, e eles pagavam [entradas para o cinema]… tinha o Cine São Jorge [hoje uma loja de calçados], na avenida Celso Garcia […] E esses jogadores antigos pagavam o cinema para nós. Segunda-feira, como era folga deles, eles, mais uns quatro ou cinco jogadores do juvenil, eles pagavam a entrada para a gente ir lá no cinema. Então, a gente conviveu muito com esses jogadores antigos e foi criando raízes dentro do clube”, declarou Cabeção em 2011, durante depoimento para o projeto Futebol, Memória e Patrimônio, do CPDOC/FGV.
Convivendo com cobras do futebol, Cabeção foi galgando, passo a passo, todas as categorias até chegar aos aspirantes, em 1946, sob o olhar clínico do treinador Dante Pietrobon, com quem tudo aprendeu no arco. Uma ascensão extraordinária para o orgulho de Adolfo e de Josefina, pais “corujas”, e claro, do tio Salvador Salerno, quem mais o incentivava, comparecendo, inclusive, aos treinos e até às peladas do “River Plate”, time de várzea onde Cabeção também despontava. E foi por conta desse “River Plate” que Cabeção foi agraciado com todo o uniforme do River Plate original, o famoso millionarios de Buenos Aires. Em 1947, o time argentino excursionou por São Paulo. Após um jogo preliminar no Pacaembu, defendendo o juvenil do Corinthians, Cabeção invadiu o vestiário do River e pediu aos gringos, na maior cara dura, um uniforme completo do time portenho. E os caras deram camisa, short, meião… Cabeção levou a melhor.
“O meu avô era italiano, mas era corintiano. Tinha esta diferença, porque, geralmente, o italiano era palmeirense, e o meu avô era corintiano e ajudou muito o Corinthians […] ele era cocheiro. Tinha uma carroça de aluguel. Carregou muita coisa para fazer o Corinthians que é hoje, que antigamente era do Sírio (O Esporte Clube Sírio foi o antigo dono do campo do Parque São Jorge, comprado pelo Corinthians em 1926 para a construção do histórico estádio). O Corinthians comprou e meu avô levava muita mercadoria e muita madeira para fazer o estádio […] terminar o campo de futebol. Torcia para o Corinthians. A minha avó, não sei, porque ela não falava. Minha mãe também não ligava. Meu pai, português, também não ligou muito para futebol. Eu tinha uns tios que jogavam na várzea. Estes me incentivaram muito. Torciam para o Corinthians, foram atletas do Esperia – antigo Esperia –, mas não eram muito ligados ao futebol.”
Até despontar entre os profissionais, Cabeção dividia o futebol com o estudo noturno e o emprego em uma loja próxima a sua casa. “Antigamente, só tinha escola na cidade [no Centro] […] Estudava à noite. Quando perdia o ônibus ou o bonde, tinha que ir a pé da Liberdade até o Parque São Jorge. Era uma caminhada muito violenta e de madrugada. Apesar de que, naquele tempo, não tinha tanto perigo, como tem hoje. Você ia sozinho… Não cheguei a me formar em nada. Mas fiz essas três fases do primário, ginásio e científico.”
O tempo passou e, em 1948, portanto um ano antes de ingressar no time profissional do Corinthians, Cabeção por pouco não seguiu para o Fluminense, que insistira em seu concurso. Foi o alerta para que os cartolas corintianos assinassem num rompante o primeiro contrato com o talentoso goleiro para mantê-lo no Parque São Jorge.
Como profissional, disputou 323 jogos e sofreu 419 gols. Subiu ao time principal em 1949, junto com Idário, Roberto e Luizinho. Apesar de ser revelado pelo time da “fazendinha”, Cabeção, que dizia se espelhar no goleiro Jurandyr, do Flamengo, ouvia do ídolo a frase “Goleiro de pé vale por dois. Goleiro deitado está morto”. Seguia-a sem questioná-la.
Cabeção peregrinou por vários clubes. Quase jogou pelo Porto, de Portugal, mas o Corinthians não quis vender seu passe. Mas a resistência dos cartolas duraria pouco. Sem espaço por conta da forma exuberante de Gylmar, deixou o Corinthians em 1954 e seguiu, por empréstimo, para o Bangu. No ano anterior, porém, já na reserva de Gylmar, para quem perdeu a posição em definitivo em 1952, Cabeção chegou a ser hostilizado pela torcida que até então era sua fã incondicional. Mesmo com Gylmar balançando no posto de titular após a goleada de 7 a 3 para a Portuguesa de Desportos, valendo pelo segundo turno do campeonato paulista de 51, Cabeção não conseguiu manter a unanimidade, embora suas atuações fossem impecáveis e a imprensa paulista continuava a exaltá-lo, especialmente após as defesas sensacionais na final do Torneio Rio-São Paulo de 54, que garantiu o magro placar de 1 a 0 contra o Palmeiras. Nem isso o segurou no Timão.
Após improdutiva passagem pelo Bangu, que defendeu apenas 14 vezes, Cabeção aportou, em 1955, na Portuguesa de Desportos — uma de seus principais momentos no futebol, ao lado de feras como Julinho Botelho, Pinga e Djalma Santos. Talvez o melhor time da história da Lusa, que teve Cabeção embaixo das traves na inesquecível conquista do torneio Rio-São Paulo de 55.
Finda a gratificante experiência na Portuguesa, Cabeção retornou ao Corinthians, em 1958. O regresso ao time de origem foi de idas e vindas, ou seja, em 1961 foi emprestado ao Comercial de Ribeiro Preto. Um relâmpago. Ficou apenas alguns meses e voltou ao Timão, no qual permaneceu até 1966. No final da carreira, defendeu o Juventus, do bairro paulistano Mooca, de 1967 a 1968, e a Portuguesa Santista, em 1969. Do futebol, ganhou o suficiente para investir em imóveis e a eterna reverência das torcidas corintiana e da Lusa.
Algumas lendas são conferidas a Cabeção, como a sua eficiência mais comum em jogos diurnos que noturnos. Mito ou não, isso não importa. Cabeção foi, sem dúvidas, um goleiro bastante regular. O que lhe valeu algumas convocações para a seleção brasileira, inclusive para a Copa do Mundo de 1954, na Suíça, onde foi reserva de Castilho e de Veludo, ambos do Fluminense, sem disputar sequer uma partida. Das atuações de Cabeção com a amarelinha, apenas uma vem à memória. A da vitória do Brasil sobre o Millionarios, da Colômbia, por 2 a 0, no Maracanã, pouco antes da Copa, na Suíça, no dia 9 de maio de 1954. Cabeção entrou no decorrer da partida no lugar de Veludo. Sua maior conquista com a camisa da seleção aconteceu na categoria de amadores, no campeonato pan-americano de 1949, no Chile, um time de jovens talentos que contava com Pinheiro [Fluminense], Vasconcelos [ex-Santos], Tovar [Botafogo] e Tite [ex-Flu e Santos].
Cabeção mantinha esperança de ir à Copa de 1958, mas um desentendimento com o técnico Flávio Costa, da Portuguesa, teria dificultado a convocação do goleiro. Discutiu asperamente com Costa após este culpá-lo pelos dois gols sofridos durante um empate com a Portuguesa Santista. No vestiário, Costa teria ameaçado bater no goleiro, que reagiu atirando uma chuteira contra o técnico. Costa, que era influente na antiga CBD, deixou a Portuguesa meses depois do episódio enquanto Cabeção sofreu uma severa suspensão. O famoso treinador retornou ao Rio de Janeiro e, como afirmou o goleiro, foi consultado pela CBD para avaliar os possíveis nomes para a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Com isso, suspeita Cabeção, seu nome foi definitivamente banido do escrete nacional.
Este não foi o único entrevero de Cabeção com treinadores tidos “casca grossa”. A antiga revista Cruzeiro publicou na década de 1950 aquele que teria sido o motivo da ida de Cabeção para o futebol carioca. O goleiro levou sua esposa ao médico Mário Augusto Isaías, este um apaixonado torcedor e dirigente da Lusa. A cartolagem do Corinthians teria visto no fato motivo bastante para afastá-lo do time. E o fizeram. Cabeção, logicamente indignado, disse que nunca mais vestiria a camisa do Corinthians. Acabou vestindo-a em outras duas fases, mas nunca escondeu a mágoa por este e outros casos relacionados à sua família e o Corinthians.
Muitos anos depois, ele explicou os bastidores do seu afastamento do Corinthians naquela ocasião: “Eles acharam que eu tinha me vendido em um jogo Corinthians X Portuguesa porque o médico da família da minha mulher era presidente da Portuguesa, e a minha mulher precisava ser operada com este médico. Então, eu cheguei pro Brandão, o treinador, e falei: ‘[Oswaldo] Brandão, a minha mulher vai ser operada pelo dr. Mário Augusto Isaías. Já estou avisando, porque nós vamos jogar com a Portuguesa, não quero encrenca’. ‘Não, tudo bem. Tudo bem. Ela pode operar, pode…’. Esse dr. Mário Augusto Isaías tinha salvado a minha sogra de uma hemorragia em casa. […] O jogo Corinthians X Portuguesa foi feito em um sábado.”
Na véspera dos jogos, o técnico Brandão costumava fazer reuniões com os jogadores e antecipar a escalação do time. Naquela sexta-feira ele não fez. Os jogadores ficaram “cabreiros”, como assinalou Cabeção. O treinador só falaria horas antes do jogo. Cabeção, embora titular há alguns jogos, ficara fora do jogo, dando lugar a Gylmar. “Saí do vestiário, nem troquei de roupa, fui ficar no alambrado. Chamei um diretor, falei: ‘Oh, enquanto o Brandão estiver aqui, eu não jogo mais aqui. Eu vou embora. Vocês podem me mandar para onde vocês quiserem, só que com o Brandão, eu não fico mais aqui’. Ele costumava fazer isso com outros jogadores, então ele quis fazer comigo. Fez comigo. E foi danado. Então, saiu publicado em todos os jornais aqui da capital, a carteira [de poupança] de quanto eu ganhava, quanto eu tinha de depósito. Se tinha algum depósito naquela data. Aí, eu me queimei. Me queimei, e falei que enquanto ele ficava aqui, enquanto ele era o treinador, eu ia embora. Fui para o Bangu. Era para ir para o Vasco porque o Barbosa estava terminado de jogar, o Vasco. O Silveirinha me convidou: ‘Vai jogar no Bangu’. E o time do Bangu era bom. E eles pagavam direito”, recordou Cabeção, com uma ponta de remorso, pois preferia ter ido para o Vasco.
O ídolo do Corinthians e da Lusa colecionou títulos pelos dois clubes. Foi campeão paulista em 1951, 52 — quando foi reserva de Gylmar — e 54, todas as conquistas com o Timão. Conquistou também o Rio-São Paulo em 1950, 53 e 54, com Corinthians, e em 55, com a Portuguesa de Desportos, consagrando-se como o jogador que mais edições conquistou do torneio interestadual.
Nos tempos em que defendia o Corinthians, era fã de Zizinho e adorava cinema, sobretudo filmes estrelados por Gary Cooper, Elizabeth Taylor, John Wayne, Jean Simons, Gace Kelly e Ann Miller. Dos atores nacionais, sempre gostou do Anselmo Duarte e da Eliane Lage. Dizia-se devoto de Nossa Senhora da Penha e jamais dispensava uma macarronada.
Quando se aposentou como jogador, imediatamente tornou-se técnico. Treinou categorias de base do Corinthians e conquistou títulos ao longo de 20 anos, período em que revelou grandes craques para o Corinthians, como o centroavante Casagrande, o lateral-esquerdo Waldimir e os goleiros Ronaldo, Solito e Rafael Cammarota.
Em 1981, o grande arqueiro concedeu uma entrevista ao jovem repórter Fausto Silva, que anos mais tarde se tornaria simplesmente o Faustão, um dos mais bem sucedidos apresentadores da televisão brasileira. Cabeção criticava o futebol de então, comparando-o com o de sua época: “Não é saudosismo, não. Mas há cinco anos que não vou a um estádio de futebol. Prefiro ver pela televisão. Sinceramente, não está valendo a pena. Reconheço que o passado não diz nada, cada um tem que viver a sua época, mas a qualidade do futebol caiu […] Tive mais alegrias do que tristezas no futebol. E as mágoas, eu procuro esquecê-las logo. Mas a minha maior alegria foi em 1949, quando fomos campeões do pan-americano de juvenis no Chile.”
Cabeção, neto de italiano [vejam só…] corintiano que cresceu e viveu seus melhores dias no bairro do Brás, bem pertinho do Parque São Jorge, casou-se e teve um filho, professor de Educação Física e campeão de natação, que aos 30 anos morreu vítima de uma grave doença no cérebro. Cabeção largou tudo, inclusive o futebol, para dedicar-se exclusivamente ao filho. Precisou de treze mil dólares para operará-lo no Hospital Albert Einstein, recorreu a cartolas do Corinthians, especialmente o principal deles, Wadih Helu, que alegaram não ter o dinheiro. Um amigo do filho de Cabeção é quem ajudou com a quantia. O rapaz operou, mas o resultado não foi satisfatório. Permaneceu por mais cinco anos em cadeira de rodas. A mágoa com o futebol e com o Corinthians foi grande. Fora esta a segunda grande decepção após o episódio com a esposa. Não quis mais saber do futebol. Um trauma na vida do grande goleiro do passado.
Cabeção foi o único filho de Adolfo e Josefina. A vida é simples e tranquila ao lado da esposa. “Hoje, só vivemos eu e a esposa. Mais ninguém. Tem os parentes, mas são distantes. Mas vamos levando essa vida. Agora, com 81 anos, então, é assistir jogos pela televisão, que é mais fácil do que vir no estádio. E esta é a minha vida, agora.”
Mas Cabeção faz falta aos estádios. Pudera os deuses torná-lo eternamente jovem para nunca mais deixa os gramados. Pudera as gerações que não o viram jogar se deliciarem com os saltos acrobáticos, as “pontes” memoráveis e as defesas com a mão trocada executadas com maestria pelo Cabeção. Nos tempos em que jogava, o eterno ídolo costumava dizer que “de louco e de felino, todo goleiro tem um pouco”. É verdade…
DNA RUBRO-NEGRO
por Paulo Oliveira
Quantos clubes de futebol brasileiros tiveram quatro irmãos defendendo suas cores em campo, sendo todos eles torcedores desse time? Essa conjunção rara ocorreu entre o final da década de 1950 e todos os anos 1960, no Esporte Clube Vitória. A família Gonçalves cedeu Kleber Bubu, Romenil, Itamar e Carlinhos e fez história no rubro-negro baiano.
Ontem, o zagueiro Kleber Bubu, 78 anos, foi sepultado no cemitério Campo Santo, no bairro da Federação, em Salvador (BA). Ele morreu de insuficiência respiratório após sofrer por 19 anos com sequelas de um acidente vascular cerebral.
Bubu iniciou a carreira com breve passagem pelo Bahia, mas logo foi para o time de seu coração. Teve três passagens pelo clube na década de 1960, tendo se tornado campeão do Torneio Início, em 1961, quando tinha 19 anos. A última atuação ocorreu em 1968
Jogou ainda pelos dois times rivais de Ribeirão Preto (SP): Comercial e Botafogo. De volta a Salvador, atuou, em final de carreira, pelo Botafogo BA e pelo Monte Líbano, extinta equipe do subúrbio ferroviário.
Dos quatro irmãos, o que mais se destacou foi o também zagueiro Romenil Arestides Gonçalves Filho, 76 anos, considerado o maior zagueiro da história do rubro-negro baiano, e o único dos Gonçalves ainda vivo. Ele começou no time reserva do Leão, enquanto o irmão Carlinhos era da equipe titular.
Adoentado, Romenil não compareceu ao enterro de Kleber Bubu, que deixa viúva, um filho – o jornalista Kleber Leal, torcedor apaixonado do Bahia – e duas filhas.
Já o centroavante Carlinhos Gonçalves iniciou a carreira na divisão de base do Vitória. Posteriormente, atuou pelo São Cristóvão (BA), América (RJ), Bonsucesso (RJ), Fluminense (RJ), Internacional (RS), Galícia (BA), Sergipe e Botafogo (BA).
Carlinhos estava consagrado quando chegou ao Bahia em 1969. Dois anos depois, fez história, marcando um gol de cabeça, mesmo com ela enfaixada após um choque com um adversário. E, em seguida, marcou o gol da virada sobre o Botafogo (BA), que deu o título estadual ao tricolor. O atacante morreu em 2005, aos 65 anos, de diabetes.
O quarto irmão, o ponta esquerda Itamar morreu em acidente de automóvel. A assessoria do Vitória informou desconhecer outro clube por onde ele tenha passado.