ADO: UM MOTIVO DE ORGULHO DO FUTEBOL BRASILEIRO
por André Luiz Pereira Nunes
O ponta-esquerda Miraldo Câmara de Souza, o Ado, sensação do Bangu na década de 80, tinha como característica o físico delgado, mais próximo de um maratonista do que de um jogador de futebol. Paraibano de nascimento, passaria por intensas agruras até se destacar no inesquecível time cujo patrono era o bicheiro Castor de Andrade. Com certeza, quem viveu os anos 80, se lembra com muito carinho da equipe cujo maior destaque era o ponta-direita Marinho, atleta completo e extremamente talentoso.
Ado foi levado para testes nas divisões inferiores do Vasco. Porém, lhe disseram que era muito franzino. Além disso, não queriam custear as suas despesas. Mas ele não desanimaria. Um amigo o levou até Marechal Hermes, em 1977, quando já tinha 15 anos. Outra decepção. O treinador Jair, das divisões inferiores do Botafogo, o achou raquítico e não quis sequer que mudasse de roupa. Alegou que não tinha corpo para jogar futebol. O companheiro que o tinha acompanhado ficou com pena e resolveu fazer uma última tentativa, dessa vez no Madureira, que o acabou projetando.
– Foi em Conselheiro Galvão que eu tive a melhor recepção. E devo tudo a dois treinadores. O primeiro foi Plínio Guedes, que me deixou treinando um ano, antes de jogar, para pegar corpo. Depois foi Célio de Souza que não cansou de elogiar meu futebol, alegando que era jogador para a Seleção Brasileira, relatou anos depois ao Jornal dos Sports.
De fato a ascensão foi meteórica. O atleta só permaneceria seis meses na categoria juvenil do Tricolor Suburbano. Com 16 anos foi convocado para a Seleção Carioca de juniores, dirigida por Joel Martins, mas o clube de Conselheiro Galvão não o liberou. Fora requisitado para o elenco de juniores do time, onde só atuaria por 4 meses. Jorge Ferreira, o treinador dos profissionais, o quis logo em suas fileiras.
Com 18 anos, Ado já era o destaque da equipe principal do Madureira. Mas a vida ainda era penosa. Nessa época ainda labutava numa obra em Copacabana. Treinava de manhã e misturava massa à tarde para poder viver dignamente. Trabalhava com seu pai. Ele conta que certa vez, quando passava pelas ruas de Copacabana, com duas latas de tinta, foi visto por dois jogadores do Madureira que estavam de carro. Ficaram com pena e lhe deram carona. Apesar do começo difícil, nem ele nem os colegas de profissão ficaram constrangidos com o fato de ser pedreiro.
– Estava fazendo o certo. Trabalhando. Jamais poderia ter vergonha disso, pois não estava cometendo nenhum crime. Tenho muito orgulho do meu passado, reitera.
Ado jamais se esqueceria dos dias que perdeu virando concreto. O garoto, que migrara de Campina Grande, munido de esperanças de se tornar um craque dos gramados brasileiros, olhava as mulheres, com seus biquínis mínimos, tomando sol no Posto 2, enquanto suava para conseguir uma grana extra.
Mas foi graças ao treinador Célio de Souza que não esmoreceu. Tudo mudaria quando certa feita ocorreria uma partida entre Bangu e Madureira, em São Januário. O treinador o chamou num canto e lhe disse que não se preocupasse com o placar. O adversário era favorito. O importante é que jogasse bem e demonstrasse o seu talento. Realmente o Bangu se saiu muito melhor, vencendo o rival pelo placar de 4 a 0, mas Ado, o melhor do time, levou pânico à defesa adversária, chegando a deixar o experiente Renê e o cabeça de área Índio caídos ao chão por conta de seus dribles desconcertantes.
A ótima atuação levou Carlinhos Maracanã, que assumira o cargo no Bangu de diretor de futebol, a comprar o seu passe junto ao Madureira. Na época, o treinador banguense era Jorge Vieira e Vilmar, o dono da posição. Durante um jogo-treino contra o Bonsucesso, o comandante chamou o titular num canto e lhe informou que gostaria de dar uma chance ao garoto estreante.
– Entrei no segundo tempo e me destaquei. Depois houve um amistoso contra o Guarapari, no qual entrei de cara e novamente fui o melhor em campo, marcando até gol. Nunca mais saí do time, recorda.
No início de 1985, o Bangu contratou o experiente Gílson Gênio, um dos destaques do America, campeão dos campeões, em 1982. Pela primeira vez desde que assumira a posição de titular, Ado teve que ir para o banco. Mas por muito pouco tempo. Logo recuperaria a posição, sendo peça determinante para que o time, de maneira surpreendente e inédita, chegasse ao vice-campeonato brasileiro e estadual. Em 1987, foi campeão da Taça Rio. Ainda conquistou a Bola de Prata, em 1985.
A carreira sempre foi marcada por grandes atuações e uma enorme infelicidade: o penal perdido durante a disputa de pênaltis na fatídica decisão do Brasileiro, de 1985, contra o Coritiba no Maracanã.
A ligação com o alvirrubro carioca é longa. Foram seis anos, entre 1983 e 1987, uma segunda passagem, em 1994, e ainda uma terceira, em 1997. Na temporada 1987/88, esteve no Espinho, de Portugal, intercalando um breve período no Internacional, no fim de 1988. Ao retornar a Portugal, jogou no Espinho por mais três temporadas. A carreira iria até 2002, pontuada por times como Friburguense e Barreira, e alguns da Indonésia e Peru, e finalmente encerrada no Campo Grande.
Foi considerado, em 2019, o técnico-revelação do Bangu, após promover uma excelente campanha à frente dos mulatinhos rosados de Moça Bonita.
RETROSPECTIVA DO CAJU
:::::::: por Paulo Cézar Caju ::::::::
Chegou o momento da retrospectiva do Caju! O problema será listar os bons momentos em um ano para ser apagado de nossas memórias. O clímax de 2020, sem dúvida, foi o furacão Jorge Jesus. Sua passagem relâmpago pelo Flamengo deu uma chacoalhada no arrastado futebol brasileiro. Causou uma ciumeira tremenda e abriu o mercado para outros portugueses tentarem a sorte por aqui. Josualdo passou pelo Santos e logo viu que não é assim que a banda toca. Hoje, Ricardo Sa Pinto, no Vasco, está quase pulando fora da banda. E o do Palmeiras ainda não emplacou.
Jorge Jesus deu uma liga danada e Rogério Ceni chegou ao fim de 2020 sem dizer a que veio. Uma pena, torço por ele. Fernando Diniz, mesmo perdendo alguns títulos, conseguiu ser o grande destaque do ano para mim. E falo isso porque ele, mesmo não tendo o reconhecimento da mídia, sendo massacrado regularmente, manteve seu estilo de jogo e o São Paulo, hoje, é o time mais gostoso de se ver jogar. Sem falar em Brenner, uma grata revelação, a maior de 2020.
Meu Botafogo começou ruim e terminou pior, assim como o Vasco. Fluminense e Inter, dois elencos fracos, chegaram longe demais. O VAR é o mico do ano, assim como o vocabulário dos comentaristas do novo normal: último terço, tomada de decisão, beirinha, atacar a bola, quebrar a bola e um monte de expressões que conseguem piorar ainda mais o futebol. Comentaristas que nunca chutaram uma bola e só soltaram pipa no ventilador. Chuparam laranja com quem?
Outro mico foi a dança das cadeiras dos técnicos da Segunda Divisão, uma palhaçada. E pela Segundona podemos perceber que estamos fritos, nenhuma novidade e os dois primeiros colocados, Chapecoense e América Mineiro jogando por uma bola, retranca na veia. Apostei em Thales Magno, do Vasco, e quebrei a cara, bacana ver Nenê ainda jogando com qualidade, legal ver Thiago Galhardo encontrando a posição, ruim demais ver Roger Machado sem clube, ótimo ver os clubes do Nordeste apostando em administrações profissionais, duro ainda sermos dominados pela filosofia da escola gaúcha e pior ainda ver uma seleção brasileira que não nos encante.
Fim de ano melancólico, com o Flamengo descendo de nível e se equivalendo a Palmeiras, São Paulo, Inter, Grêmio. E para piorar o comentarista ainda lembra que o Mengão não marca um gol de falta há dois anos. O Mengão do Galinho de Quintino, que colocava a bola aonde a coruja dorme. Peraí, eu também fiz muitos de falta. Mas vai aparecer alguém dizendo que hoje os goleiros são maiores, que é mais difícil, baboseiras que vamos escutar ao longo de 2021 porque sempre tem alguém para cornetar.
Com esses, dá vontade de fazer como os árbitros tem feito com os jogadores que demoram a sair de campo na hora da substituição: dar uma empurrãozinho de leve. Nesse fim de ano, perdoo todos que me xingaram nas redes sociais e agradeço aos que entenderam meus pontos de vista. E torço para que 2021 seja uma imensa Geral, todos juntos e misturados, respeitando-se independentemente das cores, dos credos e posicionamento político. Clamamos por um 2021 com mais Gerais em nossos corações!
CARBONE, UM BIGODE, O MARACANÃ E COISAS DE CRIANÇA
por André Felipe de Lima
Onde jogou, recebia apelidos dos mais inusitados. Na época em que defendeu o Internacional, de Porto Alegre, Carbone era o “Caminhão”, segundo o ex-centroavante Claudiomiro. Quando vestiu a camisa do Botafogo, Marinho Chagas batizou-o de “Charbon” (?!) e Ademir Vicente, de simplesmente “Veterano”.
José Luís Carbone, um dos mais aguerridos volantes do futebol brasileiro nas décadas de 1960 e 70, sobrinho do também ídolo e goleador corintiano Rodolpho Carbone, faz anos hoje.
Nasceu em 1946, na cidade de São Paulo, e começou a jogar bola aos onze anos, no Flor de Vila Formosa. Depois seguiu para a divisão de base do Juventus, quando contava dezesseis anos. Após um jogo do Juventus, foi levado ao São Paulo. E foi no tricolor do Morumbi onde começou a carreira profissional, em 1963. Perambulou pela Ponte Preta, em 1966, mas, no ano seguinte, regressou ao São Paulo, clube no qual permaneceu até 1968.
Passou rapidamente pelo Metropol, de Criciúma, que na época tinha um time bastante competitivo, de onde saiu o ponta-direita Valdomiro, e depois fincou os pés no Beira-Rio.
No Internacional, Carbone ganhou o estrelato. Era um dos ídolos da torcida e respeitado pela crônica esportiva gaúcha. Foi um dos ícones da equipe colorada que impôs um freio no ímpeto do Grêmio, que almejava o oitavo “gauchão” seguido. Logo na primeira temporada, em 1969, foi eleito o melhor jogador do estado. Nos cincos anos em que vestiu o manto Colorado, de 69 a 73, foi campeão estadual. Depois, sua história seria com o Botafogo.
Vi Carbone em campo defendendo o Botafogo. Embora vascaíno, meu pai levou-me ao Maracanã algumas vezes para ver o Fogão. Acho que foi uma forma de agradecer ao meu avô que, botafoguense, tentava convencê-lo a tornar-se alvinegro levando-o aos jogos para torcer pelo Otávio de Morais, pelo Nilton Santos, pelo Paraguaio, pelo Juvenal e pelo Geninho. Frustrada tentativa do vovô. Para o papai, era Deus no céu e Ademir de Menezes na terra. Segui o mesmo caminho.
Quanto a mim e ao dia em que “conheci” Carbone, confesso, era pequeno e não me recordo muito bem dos jogos. Sei que um deles foi contra o Bahia e terminou 0 a 0. Creio que em 1975 ou 76. Literalmente dormi no gelado cimento da arquibancada do velho Maracanã. Entre um cochilo e outro, chamava-me atenção o Carbone. Havia visto a foto dele no jornal. É, porém, certo: a cabeleira e o bigode do Carbone jamais saíram da minha memória. Tanto que achava bacana. Achava que ao crescer teria o mesmo bigode do Carbone. Coisas de criança. Fiz do craque um dos meus primeiros astros do futebol de botão, uma mistureba de jogadores do Vasco com os do Botafogo. No gol era o Andrada. Miguel e Osmar na zaga. Tinha, na meia, o Carbone, o Manfrini e o Zanata. Dinamite no ataque, com Jorginho Carvoeiro e por aí vai.
A cabeleira e o bigode do Carbone “rivalizavam” com outro famoso bigode, o do tricolor Rivellino. Um verdadeiro “Clássico vovô” dos bigodes. Divertia-me com tudo aquilo. Coisas de criança.
Hoje, aniversário do ídolo Carbone, esta memória veio à tona. Graças a Deus que ainda existem em mim… coisas de criança.
PIU PIU, O MATADOR DE PENEIRAS
por Serginho 5Bocas
Vocês sabem o que é uma Peneira? É a prova dos nove dos moleques candidatos a craques da bola, pois é lá que o jogo fica em seu estado mais bruto na vida dos jovens postulantes a craques e onde morrem ou nascem sonhos e esperanças daqueles que sonham em ser jogador de futebol.
Não há espaço para palavras educadas e motivadoras. Ao final do treino é aquela hora do momento mais temido, quando o homem da prancheta decide e diz quem fica e quem volta para casa.
O ex jogador Cafu, que foi recentemente eleito o melhor lateral direito do futebol mundial de todos os tempos pela revista France Football, foi um caso extremo de resiliência no campo das peneiras. Reprovado em mais de dez delas, sempre voltava e tentava novamente. Um dia ele foi lá e a coisa aconteceu e o resto todos já conhecem. Muita gente boa ficou pelo caminho, porque não tinha paciência para aturar os destratos dos negligentes avaliadores ou porque não davam importância mesmo. O certo é que querendo ou não querendo, tem que passar pela duríssima prova de fogo.
A vida dos meninos é tão difícil que para vocês terem uma ideia, Pelé precisou de uma forcinha do ex-craque da seleção brasileira Waldemar de Brito e Zico precisou do aval do radialista Celso Garcia. Imaginem os simples mortais? Mas vamos ao moleque da hora…
Moleque de rua, de paralelepípedo, das tabelinhas com as paredes, das paradas de bola para esperar a moça ou o carro passar, somos nós, somos todos nós, quando olhamos com carinho para a infância que passou. Piu Piu era bola-bola, gastava ela com amor, não era o melhor de todos, nem era o mais habilidoso, o mais driblador, mas era impávido, determinado, chato de ser vencido. Tinha qualidade no passe, visão de jogo, batia forte e com direção na bola e tinha uma vontade absurda de vencer.
Ainda menino, no auge de seus 11 anos, Piu Piu não tinha medo de cara feia, nem de cara grande, os temidos “galalaus”. Jogava suas peladas contra os caras bem mais velhos e grandes e num domingo desses de manhã, foi jogar um time contra o Vitoria do Lins, um clube de futebol de salão do subúrbio do Rio de Janeiro. Perderam nas três categorias (mirim, infantil e infanto), mas Piu Piu e o amigo Caolha foram chamados para fazer testes no clube. Passaram, mas não seguiram com a experiência, porque tinham medo de andar de ônibus à noite. Apesar da peneira superada, “queimou a largada” na primeira peneira superada.
Cinco anos depois, lá estavam juntos novamente, Piu Piu e Caolha fazendo um teste no infanto-juvenil do time de futebol de salão do clube Ríver de Quintino. Dessa vez, passaram e seguiram em frente, jogaram o segundo turno do Carioca daquele mesmo ano, no longínquo 1983. Outra peneira vencida, desta vez mais fácil.
No ano seguinte, Piu Piu se sentindo desprestigiado no clube de Quintino, foi fazer teste numa peneira no Grajaú Tênis Clube e mais uma vez passou no teste, chegando a disputar algumas partidas amistosas e uma ou duas do Carioca do campeonato juvenil. Mas novamente alguma coisa não vingou, ele era cabeça quente demais, não engolia sapos e decidiu jogar aquilo tudo para o alto e se dedicar aos estudos.
Neste intervalo de tempo, ocorreu o fato mais inusitado. A mãe do padrinho de Piu Piu trabalhava como doméstica na casa do jogador Júnior, do Flamengo, sim do Leovegildo. Dona Dolores pediu ao craque da seleção, o famoso lateral, mas que ainda não era o nosso maestro, para dar uma carta de apresentação que permitisse o afilhado do filho dela fazer um teste no Flamengo.
Júnior escreveu a carta pedindo ao Joel, ex-ponta direita do Flamengo, que desse a chance a ele de fazer um teste no campo conhecido como 8º GAC, um quartel na Vila Militar onde estava rolando uma peneira.
Carta recebida e quase ignorada por não acreditar que o Júnior daria esta moral. Passado o susto inicial, foi falar com seu pai, que lhe deu um valioso conselho, mas que infelizmente foi ignorado:
– Filho, pega um ônibus para lá um dia antes, para você ver onde é, para depois não errar o endereço.
Piu Piu deu de ombros e achou que era preciosismo demais de seu pai. “Quem não escuta cuidado, escuta coitado”, já dizia o velho ditado. No dia marcado, Piu Piu pegou o ônibus 689 “Meier-Campo Grande” e foi para o maior desafio daquele garoto de 14 prestes a fazer 15 anos.
Na cabeça era um misto de ansiedade, medo e vontade de ver como é que seria. Imagina só passar no teste e falar com a galera da rua que agora era jogador do Mengão, putz!
Piu Piu pegou o ônibus e quando chegou próximo da Vila Militar, perguntou ao cobrador e depois ao motorista se conheciam o campo do 8º GAC e ambos nunca tinham ouvido falar dele. Frustração e um frio na barriga, lembrou na hora do velho pai e já pensava o que diria para ele se não encontrasse o campo.
Desceu do ônibus um pouco mais a frente e saiu perguntando para algumas pessoas sem sucesso, ninguém sabia onde era o campo. Resignado, triste e um pouco menos tenso, porque não faria mais o teste, pegou o mesmo ônibus no sentido contrário e um estranho sentimento rondava sua mente. Sentira tanta ansiedade e medo que agora voltar para casa parecia uma coisa bem tranquila.
Aí, aconteceu a coisa mais marcante dessa história toda. Piu Piu se sentou próximo ao cobrador, num banco mais alto, que ele gostava de ficar, para ver melhor a rua e não enjoar com o balanço do ônibus e quando já estava saindo da Vila Militar, viu um Quartel a sua direita e teve quase a certeza que estava escrito no muro GAC. Não deu pra ver se tinha um 8º antes, foi muito rápido e imediatamente, virou-se para olhar por cima do muro e lá avistou alguns meninos jogando bola em um campo gramado.
– “É ali, Piu? – Seu cérebro indagou em milissegundo a pergunta cruel.
Agora havia uma decisão a ser tomada urgente, o que fazer? Descer do ônibus e sair correndo, se desculpar pelo atraso e tentar fazer o teste ou deixar pra lá, seguir seu destino e arrumar uma desculpa para contar em casa, para seu pai e sua mãe.
Optou pelo caminho mais confortável. Sentiu um terrível medo do insucesso, coisa nunca experimentada, talvez por ser no seu clube de coração. Talvez tenha imaginado o tamanho daquilo tudo e seu cérebro não parava de pensar em todas as possibilidades de fracasso.
À medida que o ônibus ia se distanciando do endereço de seu sonho, Piu Piu ia ficando triste e talvez com uma ponta de arrependimento de não ter voltado e ter realizado o grande teste de sua vida. O que poderia ter acontecido? Nunca irá saber.
Hoje, Piu Piu diz que o que passou, passou, mas sente lá no fundo, uma tristeza de não ter a certeza se dava ou não dava para ele. Faltou coragem, talvez experiência ou até mesmo um padrinho naquela fatídica empreitada, para lhe dar aquele último empurrão. No aconchego do seu travesseiro, quantas vezes ele já pensou que tem tanta gente que não joga nada e virou profissional, porque logo ele, que era um matador de peneiras, não se tornaria um jogador de futebol? Nunca vai saber.
Se houvesse na vida de Piu Piu um momento “De volta para o futuro” (ou para o passado), com o “Marty McFly” e o “Dr. Emmett Brown”, astros marcantes daquele filme inesquecível, lhe dando uma nova chance de reescrever o seu caminho, voltando no tempo momentos antes de entrar naquele ônibus. E se ele pudesse ter as informações e a orientação para realizar aquele teste, do seu próprio “eu”, será que ele seria feliz? Será que também encontraria a sua namorada de novo, que depois virou esposa e teria os seus filhos, que tanto ama? Será que realmente teria uma carreira de sucesso nesse esporte ou teria uma contusão grave ou ainda seria esquecido na penúria de um time pequeno? Ninguém pode responder, nem mesmo ele tem a certeza de que tentaria de novo, a conta já está fechada.
O mundo das peneiras é feito muito mais de momentos triste do que felizes, um funil apertadíssimo separa os homens dos meninos, muita gente boa fica pelo caminho, é lugar para casca grossa, a bola vira prato de comida e não dá tempo para dúvidas. Reparem que raramente vemos jogadores de futebol de origem rica ou de classe média alta, em sua grande maioria, são os meninos mais carentes que vingam, aquele que não tem plano “B”, não há escola para oferecer outro caminho, empresa da família ou qualquer outra opção para largar o objetivo e partir para outra, é dá ou desce.
A história do Piu Piu não é única, tampouco inédita. Na verdade ela é baseada em fatos reais, ocorridos com o Serginho 5bocas ou se preferirem, com o “Piu Piu”, da Dona Jalderia (sua mãe), do Seu Domingos (seu pai) e de seus queridos irmãos Jorge, Geraldo, Marcos (in memoriam), Graça, Dolores e Consuelo.
Ô tempo bão!
ARQUIBANCADA VAZIA, CORAÇÃO PLENO
por Paulo-Roberto Andel
Duas da tarde de domingo. Se fosse possível voltar no tempo, há 40 anos eu sentiria o peito bater mais forte com a chance de ir para o Maracanã, chegando lá no máximo às três, com casa cheia ou não. Se estivesse lotado era acompanhar a preliminar. Não estando, era feliz do mesmo jeito.
Com a arquibancada vazia a visão era outra, mas não menos importante para um garoto de dez ou onze anos de idade, sonhando com o mundo, com seus craques e botões. O Maracanã era tão colossal que, mesmo numa tarde de pouco público, o olhar infantil não deixava passar nada: os pequenos burburinhos do outro lado, os personagens da geral, o movimento nas cabines de rádio com os craques da transmissão, as poucas pessoas sentadas perto ou nem tanto, os frequentadores das cadeiras de baixo.
Num outro jogo aquilo ali estava tudo lotado, mas não é ou pode não ser o caso de hoje. Ao longe você vê os vendedores de refrigerante, todos de branco com capacete e o tanque de refresco nas costas – pareciam astronautas. E o moço do cachorro-quente tem uma caixa bem grande. Os vendedores de amendoim são quase todos garotos, deixando o produto quentinho em latas que eles mesmos adaptam.
Bem no meio de campo tem o cordão de isolamento da polícia, mas só é necessário em dia de clássicos.
Do outro lado pintaram os pés da trave com tinta preta, fazendo duas bordas.
Se o radinho estiver ligado por perto, geralmente do pai e do responsável, logo alguém vai entrevistar o Justino, funcionário da SUDERJ que invariavelmente acerta todas as previsões de público.
Não tendo preliminar ou ela sendo pouco empolgante, dá para ir no corredor e ver as salas das torcidas organizadas, cheias de bandeiras. Ou então espiar o térreo, onde estacionam os ônibus dos times e aí você pode ver os jogadores à paisana. Atrás de um dos gols você vê a estação de trem Derby Club, que sempre traz gente para o jogo; se for do outro lado, tem a turma se esbaldando de bebida no Bar dos Esportes.
Se preferir ficar sentado na arquibancada cinzenta e olhar para cima, o céu vira um lindo círculo formado pela cobertura de concreto – a mesma que, nos grandes jogos, é responsável por aquele eco vigoroso de UUUUUUHHHHH toda vez que alguém acerta um chute perigoso ou, claro, GOOOOOOLLLL quando o nosso time balança a rede e Jorge Curi, Garotinho, Doalcei, Édson Mauro ou outro craque da narração dispara a vibrar.
Do lado de cá e do lado de lá tem bumbo e samba. É uma certeza marcial do jogo.
Lá pelo segundo tempo eles ligam os refletores, que parecem pequenas estrelas luminosas cravejadas no alto do Maracanã. Quando o goleiro chuta a bola muito alto, ela se perde em meio às luzes por um segundo e, logo no outro, quica no maior gramado do mundo.
Pode ter tido gols, jogadas bonitas, emoção, mas estar naquele lugar marca a criança para sempre em qualquer resultado. Perto das sete da noite, tudo termina, mas aí vem um componente especial: a mão do pai puxando a do filho, orientando, guiando, dando a sensação de que ela estará sempre presente.
Na hora de ir embora, pode ser de carro, trem ou ônibus, tanto faz: dá uma vontade de começar tudo outra vez, para sempre, para sempre. Só de pensar que tem uma bola branca novinha em cima da grama perto da lateral, e que ela vai correr por todo lado naquele campo verde, a gente pensa que a infância vai durar eternamente e o Maracanã estará ao nosso dispor.
Três da tarde. Uma câmera mostra um campo vazio. Daqui a pouco vai ter jogo na televisão. Cadê o radinho, a bandeira, a sala das torcidas? Cadê o trem chegando, a torcida cantando, a arquibancada enchendo?
O Maracanã agora é outro, mas o sonho permanece. Vai ter outro ano, vai ter outro jogo.
@pauloandel