CRITÉRIOS DE ARBITRAGEM
por André Luiz Pereira Nunes
Houve um tempo em que o quadro de árbitros do Campeonato Carioca era formado por elementos indicados pelos clubes então filiados à Liga Metropolitana de Desportos Atléticos. Ainda que os times tivessem a primazia de escolha, a escalação de juízes, embora em comum acordo, se tornava um verdadeiro nó cego. Não raro, eram necessários três dias para a escolha de um juiz. Quando as agremiações não chegavam a um consenso, o encontro ficava sem árbitro. Fazia-se então a chamada “pescaria” pelas arquibancadas. As agremiações apresentavam vários nomes de cavalheiros que iam assistir ao cotejo e, quando não chegavam a um acordo, ocorria então um sorteio.
Um saudoso cronista acabou sendo vítima desse rudimentar critério de escalação. Certa feita, o ilustre Zé de São Januário estava no campo do Vila Isabel, onde se localizava o antigo Jardim Zoológico, para assistir a uma partida entre a equipe local e o Sport Club Mangueira. O juiz não havia comparecido. O presidente do Vila Isabel, Alberto Silvares, pediu então ao jornalista para que dirigisse a disputa. Ele gentilmente aceitou. Ainda que o jogo tivesse terminado em empate, a diretoria do time mandante, nada satisfeita, resolveu entregar o juiz às feras. Não às do zoológico, mas às que se encontravam na entrada. As manifestações de simpatia foram de tal natureza, que muitos adeptos do Vila Isabel, não tendo flores para jogar, atiraram pedras e guarda-chuvas no pobre cronista e dublê de árbitro por um dia. Dos braços da multidão, o infeliz foi parar na ambulância.
Anos depois, dada a grave situação da arbitragem, os clubes passaram a ser responsáveis pela atuação das partidas. Extinguindo-se o quadro, os times tiveram que indicar nomes. Para exemplificar melhor, em um jogo entre Flamengo e Botafogo, o Vasco poderia ser obrigado a fornecer juízes. Esses nomes tanto poderiam ser conhecidos do público, como serem ilustres desconhecidos. Essa fórmula logicamente fracassou. Na época do comum acordo, todos concordavam antes do jogo, mas no final do encontro o que prevalecia era o desacordo com o árbitro.
Atualmente dispomos da tecnologia e de profissionais preparados e dedicados à função de arbitrar jogos de futebol. Porém, nada disso ao longo do tempo parece ter surtido algum efeito prático. Em 9 de janeiro, a partida entre Sport e Palmeiras, a qual terminou com a vitória dos paulistas por 1 a 0, deu o que falar mesmo após o apito final. Isso porque, aos 49 minutos da etapa final, o juiz Dyorgines José Padovani de Andrade assinalou um penal a favor dos mandantes. Contudo, após a intervenção do VAR e a ida ao monitor, a penalidade acabou anulada.
Após a partida, Augusto Caldas, diretor de futebol do clube pernambucano, insinuou que Botafogo e Vasco, dupla carioca que briga contra o rebaixamento, está sendo ajudada.
Além da insinuação, o dirigente detonou a comissão de arbitragem e o árbitro de vídeo.
– Fico imaginando onde a comissão de arbitragem e o VAR vão parar. É escandaloso. Essa falta de respeito com o Sport e com os times nordestinos nos deixa imaginar a proteção que se tem com esses clubes do Rio. No momento em que Botafogo e Vasco estão na zona, tudo começou a acontecer de uma forma no mínimo estranha, insinuou.
Thiago Neves, um dos atletas mais experientes do Sport, utilizou as redes sociais para demonstrar sua insatisfação. O meia escreveu: ‘Seguimos sendo roubados’. Além do dirigente e do meia, o técnico Jair Ventura também criticou a decisão da arbitragem. Em entrevista coletiva, afirmou que não era a primeira vez que erravam contra o Sport, mas se conteve por conta, como ele mesmo afirmou temer, da possibilidade de ser denunciado ao STJD.
– Não é a primeira vez. Daqui a pouco, o campeonato vai passando, faltam nove jogos, agora, depois que acaba, ninguém vai lembrar dos pontos que foram tirados da gente. É triste, porque a gente trabalha para caramba. Vou seguir, ainda, sem falar de arbitragem. Posso pegar um gancho. Eu estou pendurado, não posso nem falar com o juiz. Estou com dois cartões e eu não posso largar minha equipe”, lamentou.
A NOITE DOS DESESPERADOS EM VERDE E BRANCO
por Marcelo Mendez
Horace McCoy, há muito tempo atrás, mais precisamente em 1935, escreveu o livro “A Noite Dos Desesperados”.
O livro conta a história de um grupo de pessoas que durante a grande depressão americana, pós quebra da bolsa, que tem uma única chance de aliviar a miséria a qual se encontram, num campeonato de dança, onde o vencedor tem que resistir, dançar até as pernas não aguentarem mais pra levar uma grana de prêmio. A partir daí, todo o drama humano começa com as mazelas das pessoas que vivem por ter que aguentar, que tirar do fundo da alma a força para lutar por sobrevivência.
Ontem, evidentemente, guardada as devidas proporções, vimos algo parecido na Arena do Palmeiras durante a semifinal da Libertadores da América, entre Palmeiras e River Plate. O placar final de 2×0 construído pelo time argentino na primeira etapa reserva um recente drama alviverde que há tempos não era vivido pelos seus.
Um time lento, frouxo na marcação e nas atitudes, pesado nas pernas e na mente, não conseguia reagir, não conseguia superar a pequenez sazonal que o acometeu e que fez com que a equipe verde ficasse atrás, recuada, com medo, vendo os argentinos jogarem. O resultado foi catastrófico e se não fosse pelo VAR, que corretamente agiu para corrigir marcações feitas, teríamos ontem uma das maiores derrotas palmeirenses de sua história. Ufa!
Foi um sufoco, mas o apito final com os 2×0 deu a classificação ao Palmeiras para a disputa da decisão da Libertadores de América. Vale a vaga. Vale muito. Todavia, assuntos relativos ao que aconteceu ontem precisam ser tratados. Futebol é um jogo demasiado humano, onde a execução de fatores táticos depende da boa cabeça e da boa preparação desses humanos para tal prática. Não foi isso que constatamos ontem.
O Palmeiras não estava la em seu estádio. As cabeças alviverdes vagaram para um lugar onde o que habita é medo, a descrença, a inoperância e, dessa forma, o time que perdeu para o River não era aquele time vivaz e alegre que vinha desempenhando muito bem as orientações do ótimo Abel Ferreira. Isso precisa mudar.
Seja lá quem vier da decisão de hoje, Santos ou Boca, o Palmeiras não pode mais ir a campo da maneira que foi ontem. Que fique a lição com esse vareio de bola que os argentinos deram nos alviverdes.
Que a noite da desesperança não se perpetue no Maracanã!
FOGO!
por Paulo Roberto Melo
Em 1979, com 13 anos, eu enfrentava alguns desafios. Pelo menos um deles de ordem pessoal: lutava para me aceitar como pessoa. Fisicamente as coisas não iam muito bem. A balança se tornara minha inimiga número 1, teimando em mostrar, através da subida impiedosa dos seus ponteiros, que eu não era mais aquele menino “fofinho” ou o garoto “forte” que alguns familiares e conhecidos carinhosamente ainda me chamavam. A dura realidade se evidenciava sobretudo na minha barriga e nas minhas bochechas. Sim, eu era…gordo!
Era assim que me chamavam no colégio. Depois de estudar minha infância toda em colégios públicos, fui matriculado em uma escola particular, Essa mudança foi particularmente dura comigo. Vim de um colégio pequeno, em que todos me conheciam pelo nome, para um onde eu não era ninguém, ou pior do que isso. Em dois anos, na nova escola, eu só escutei o meu nome ser pronunciado no momento da chamada. Fora isso, eu era o “gordão” ou o “gordinho”, dependendo da afinidade de quem se referia a mim. Mas, no geral, eu era mesmo o “gordo”.
Há algo interessante sobre esses apelidos jocosos. Os que se dizem entendidos no assunto costumam, falar que não se deve ligar para o apelido que quando a pessoa se importa, aí sim o apelido pega. Ok, mas isso é muito cruel. Os catedráticos em apelido certamente não sofreram esse tipo de perseguição, possivelmente estavam do outro lado, se não colocando apelidos, pelo menos incentivando o seu uso, ou não dariam uma recomendação tão simplista. Afinal, em qual página desse manual sobre apelidos, está escrito a forma de não ligar para um chamamento que ignora o seu nome e exalta uma característica no seu corpo, da qual você não gosta – especialmente quando se tem apenas 13 anos?
Agora, como afirmam os mais sábios, não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar. Pois bem, em paralelo com meu peso, eu ainda sofria de uma miopia galopante, que me obrigava a usar óculos com lentes muito grossas, que, precisavam, para serem sustentadas, de uma armação igualmente grossa e pesada. Não, não era fácil ter 13 anos em 1979, tendo um apetite voraz, sendo míope e estudando num colégio de burgueses onde ninguém sequer sabia o meu nome.
Outro desafio, este de ordem familiar, era lutar para ficar acordado depois das 22h, a fim de poder ver a programação noturna da TV. Com poucas opções de canais, a TV Globo, com suas novelas (Saramandaia, Nina, etc) séries americanas (Kojak, As Panteras, etc) era a emissora preferida para uma programação, digamos, mais adulta. Mas é claro, isso não me era permitido. Definitivamente, ser o temporão, caçula de dois irmãos, com pais não tão jovens, era um desafio difícil de ser vencido.
No futebol, como torcedor, eu também tinha meus desafios. O principal deles, era ver o Flamengo perder! Sim, desde que o Rondinelli, na final de 1978, subiu para cabecear e dar o título de campeão carioca ao Flamengo, o clube da Gávea ganhava de todos. As péssimas administrações de Vasco, Fluminense e Botafogo haviam enfraquecido os times, enquanto o time rubro-negro se fortalecia para ficar marcado na história com sua melhor geração. Assim, em 1979 ( como seria pelos próximos três anos) o time a ser batido era o Flamengo.
Todas as conversas no colégio, principalmente na segunda-feira, giravam em torno desse assunto. Fiz amizade com alguns pobres coitados, tão rejeitados quanto eu e, juntos, representávamos os quatro grandes clubes do Rio de Janeiro. O Marcelo tinha orelhas de abano e era Flamengo, o Mauro, era incrivelmente feio e torcia pelo Botafogo, o Ricardo, ruivo e sardento era Fluminense e eu… – gordo e quatro olho… vascaíno, claro. As nossas conversas invariavelmente giravam em torno de meninas que nunca conquistaríamos e do bom e velho futebol, abrigo confortável dos mais desafortunados.
Quando falei acima que o Flamengo ganhava de todos, eu não usei de sentido figurado para me expressar. Desde outubro de 1978, o Flamengo não perdia, somando 52 partidas de invencibilidade! Assim, ganhar do Flamengo, nessa época, podia ser comparado a conquistar um título.
Na primeira semana de junho de 1979, em plena disputa da Taça Guanabara, o assunto era o clássico entre Flamengo e Botafogo, que se realizaria no domingo. O jogo tinha um ingrediente a mais: de setembro de 1977 a julho de 1978, o Botafogo também teve uma série de 52 partidas invictas, sendo derrotado pelo Grêmio.
Dessa forma, o jogo do dia 3 de junho de 1979 era uma decisão. Se o Flamengo ganhasse ou empatasse, passava o Botafogo em número de partidas invictas. Por isso, a vitória do Glorioso era importantíssima, para quebrar a invencibilidade rubro-negra e dar a todos nós assunto para algumas semanas.
Mas a semana havia começado mal para o Botafogo. O goleiro titular, Zé Carlos, havia sofrido um acidente e quem vinha jogando era o reserva, Ubirajara. Acontece que o Ubirajara se machucou e quem iria para o jogo era o terceiro goleiro, um certo Borrachinha. Certamente, essa notícia deu à torcida do Flamengo a certeza de que um terceiro goleiro não conseguiria parar o poderoso esquadrão rubro negro, formado por Tita, Claudio Adão, Júlio César, Zico e cia.
No domingo, mais de 100 mil pessoas lotavam o maior do mundo para ver o clássico da invencibilidade. Como todo jogo cercado de expectativa, esse começou tenso e estudado. Mas logo aos 9 minutos, o jogador do Botafogo, Renato Sá, aproveitou uma bola rebatida da defesa e tocou no cantinho do goleiro Raul. Botafogo 1×0! Refeito do susto de um gol sofrido no início da partida, o Flamengo se lançou todo ao ataque.
Pelo velho Spica, o radinho de pilha do meu pai, eu escutava Jorge Curi e Waldir Amaral narrarem o bombardeio à meta botafoguense. O gol de empate parecia uma questão de tempo – mas aquela tarde estava reservada para consagrar outro atleta, não o rei Zico nem algum dos seus companheiros. Com o nome de um improvável filho de super-herói, o goleiro Borrachinha pegou tudo nesse jogo e, garantiu a vitória do time de General Severiano, interrompendo a sequência de partidas invictas do Flamengo.
Um detalhe curioso desse jogo, é que o Renato Sá, autor do gol da vitória, também ajudara a quebrar a longa invencibilidade do Botafogo, dois anos antes, jogando pelo Grêmio, quando marcou dois gols.
Como complemento do grande domingo de derrota do rival, consegui junto ao conselho familiar a graça de poder ficar acordado até mais tarde, para ver o videoteipe do jogo, que começaria perto da meia – noite, na TV Bandeirantes.
Com todos dormindo, sozinho na sala e no mundo, longe dos meus problemas, eu experimentei naquela hora uma sensação diferente. Foi assim, feliz, relaxado, me sentindo adulto, que com todos dormindo, eu escutei a voz do Paulo Stein, começar a narrar o jogo, já pensando nas gozações que faria pela manhã no colégio, com meu único colega rubro-negro.
Mal o jogo havia começado, ouvi, um grito forte, vindo da rua: “Fogo!” Sorri, compreendendo a alegria do torcedor alvinegro. Novo grito: “Fogo!” Dessa vez, eu achei um pouco de exagero, principalmente pelo adiantado da hora. O terceiro grito de, “Fogo!”, me fez levantar do sofá, desconfiado e ir até a janela para conferir aquela súbita alegria botafoguense.
Quando cheguei à janela, ao mesmo tempo vi uma grande labareda tremeluzindo à minha frente e senti um forte calor nas paredes do apartamento. Algumas pessoas, do outro lado da calçada, sinalizavam, nervosamente, apontando na direção do nosso edifício.
Corri para chamar meus pais e meus irmãos, e saímos todos do prédio. O incêndio era em uma loja de tecidos, que ficava ao lado da portaria do prédio, e as chamas rugiam, subindo de forma assustadora. Alguns minutos depois, os bombeiros chegaram, e o fogo enfim foi controlado.
Quando voltamos para casa, meu pai botou suas mãos em meu rosto e me disse:
– Que bom que você estava acordado!
Fui dormir radiante de felicidade naquela noite, com a certeza de que os desafios se apresentam em nossas vidas, para testar o quanto somos fortes e o quanto estamos preparados para enfrentá-los. E tinha no meu peito de adolescente a forte convicção, de que, em algum lugar do Rio de Janeiro, o Borrachinha experimentava o mesmo sentimento.
OBITUÁRIO
por Cláudio Lovato Filho
Ergueu-se da cama num pulo, como se pregos e facas e agulhas e cacos de vidro tivessem emergido subitamente do colchão de encontro ao seu corpo. Antes mesmo de conferir o horário no celular soube que estava atrasado, e muito. Voou para o banheiro, jogou água no rosto, escovou os dentes, voltou ao quarto, vestiu as mesmas roupas da noite anterior, torceu para que a carteira e as chaves do carro estivessem no lugar de sempre – na mesinha do abajur, na entrada do apartamento – e, quase feliz por ter encontrado o que queria, saiu do apartamento.
Só quando chegou à garagem se deu conta de que não havia tomado nada para combater a ressaca, e a cabeça começava a latejar ferozmente. Ele pensou (pela quarta ou quinta vez nos últimos dez ou doze dias) que precisava mudar seu estilo de vida. Um pensamento obviamente inócuo. Então acionou o controle-remoto da garagem e tomou o rumo do jornal.
Entrou na redação sob o olhar irônico dos colegas, mas sabia que o pior viria ao ingressar no aquário da editoria de Esportes, onde trabalhava. Ali teria de enfrentar a carranca condenatória de seu editor, que, para começo de conversa e dizendo bem a verdade, não queria que ele estivesse ali; apenas o aturava em razão de um pedido feito por um velho amigo.
– João Carlos, o obituário do Valério Dias é com você! – disse o editor.
Ele ficou olhando para o editor. Teve dificuldade para vencer a pasmaceira.
– Manda brasa! – emendou o editor, apontando para o computador.
Ele se deixou desabar na cadeira. Teve de se esforçar para se livrar da prostração trazida pelo choque e ligar o computador.
Valério Dias estava morto.
O técnico que era o herói das torcidas de quatro clubes gigantes do país, com passagem muito digna pela seleção e o feito de ter criado uma vencedora e celebrada escola de treinadores. E ele de ressaca, tendo de escrever o obituário de uma lenda. Mas a coisa era muito mais complexa que isso.
Pensou que seu editor ou era um baita filho-da-puta ou um dos melhores sujeitos que já encontrara em sua vida.
Aquele bate-boca com o técnico lhe custara o emprego no jornal em que trabalhava havia mais de 20 anos. Mais que isso, lhe rendera o tipo de condenação que fica estampada na cara de cada colega, mesmo daqueles que ele considerava os mais próximos, quem sabe até mesmo amigos. Isso sem contar as portas fechadas, sabia-se lá por quanto tempo, talvez para sempre, no seu clube do coração.
Ele chamara Valério Dias de “ultrapassado” e “arrogante” no meio de uma entrevista coletiva. Valério Dias, em resposta, o chamara de “ignorante” e “venal”.
Então ocorre que, menos de um ano depois daquele evento sombrio que transformou João Carlos Nunes Filho numa espécie de pária na comunidade jornalística local (e não apenas na comunidade local), Valério Dias morre aos 67 anos, vítima de um infarto no começo de uma madrugada em que ele, o próprio estereótipo de jornalista veterano cuja carreira iniciava imparável descida em direção ao ocaso, estava enchendo a cara em um bar perto da rodoviária, sozinho e com o celular descarregado.
“Puta que pariu”, ele pensou, e decidiu que escreveria aquele obituário da melhor forma que pudesse, produziria o melhor texto que conseguisse. Que fosse seu último texto decente nesta porra de vida sacana.
Sentiu vontade de fumar. Pensou em descer para pitar, mas não levou a ideia adiante. Perguntou-se se devia ir até a copa, mas decidiu que não faria aquilo também. Era tudo procrastinação. Ele podia ter muitos defeitos, e com certeza os tinha, mas um deles não era a covardia.
Pôs-se a escrever.
A tentar escrever.
“Se liga, porra. Acerta logo o tom desse negócio”.
Então digitou:
“Morreu na madrugada desta segunda-feira…”
Deletou. Este não poderia ser um texto burocrático.
Ficou olhando para a tela em branco. Porra, um cigarro ajudaria. Só um cigarrinho.
“Um infarto na madrugada desta segunda-feira tirou a vida do técnico Valério Dias, 67 anos…”
Deletou. Começar o texto com a causa da morte? Ele se perguntou, com irritação, se não deveria pedir uns conselhos ao estagiário.
Deu uma rápida olhada para o fundo do aquário e viu que o editor o estava observando, sem sequer se dar ao trabalho de disfarçar. Pensou de novo no café. E no cigarro.
Digitou:
“O futebol perdeu na madrugada desta segunda-feira o técnico…”
Continuava protocolar, ele pensou. Continuava impessoal. Uma bela bosta.
Recostou-se na cadeira. Respirou profundamente duas, três vezes. Passou a mão nos cabelos ainda desgrenhados, um recuerdo da noite passada, tristemente embalada à cerveja e tequila. Ah, se arrependimento matasse (ou se pelo menos aliviasse a ressaca)…
Um cigarro. Um café. Talvez uma fuga a toda velocidade para casa ou para lugar nenhum. Um copo até a boca de uísque sem gelo.
Mas não era um covarde.
Abriu mais um botão da camisa, passou a mão no pescoço, tocou o terço que usava há muitos anos, presente da madrinha.
E então digitou:
“Uma vez, em uma entrevista coletiva, eu o chamei de ultrapassado e arrogante. Ele respondeu dizendo que eu era ignorante e venal. Nós nos ofendemos. Eu perdi meu emprego. Mas isso, de todos os danos, foi o menor”.
Ele olhou para as palavras que acabara de alinhar, pesando-as uma a uma. Já não sentia mais vontade de fumar nem de beber nem de fugir.
“Agora, sim, temos um bom começo”, ele pensou.
E deu prosseguimento – a muito custo, com o necessário e inevitável sofrimento, enfrentando seu ego, numa empreitada irreversivelmente transformadora – à construção daquele que seria, de todos os textos que já escrevera, o mais honesto e, exatamente por isso, o melhor.
BOTAFOGO SEGUE O CAMINHO DO CRUZEIRO
:::::::: por Paulo Cézar Caju ::::::::
Quando o Vasco fez 1 x 0 fui dormir porque sei que o Botafogo não tem time para reverter um resultado e, pela manhã, não fiquei surpreso ao concluir o placar final: 3×0. Tenho 71 anos e ao longo dessa estrada venho acompanhando as destruições causadas pelos dirigentes, sanguessugas, destruidores de patrimônio, coveiros da memória. Vocês têm notícia de algum presidente, diretor, gerente, conselheiro ou vice preso? Não estão encarcerados e, pior, aproveitam-se da popularidade de alguns desses clubes, candidatam-se a cargos políticos. E me expliquem o que leva alguém a querer administrar, presidir, um clube falido?
Os clubes trocam de técnico como se bebe água, acumulam dívidas e deixam o abacaxi para as administrações seguintes. A CBF deveria dar uma freada nessa dança de cadeiras, pois é um jogo de interesses que só prejudica as instituições porque de alguma forma essas dívidas terão que ser pagas. E aí começa a dilapidação do patrimônio. Na Segunda Divisão, isso foi vergonhoso. Outro dia, vi a Portuguesa de Desportos comemorar a vitória em um torneiozinho. Portuguesa, de Enéas, Leivinha, Marinho Peres, Ivair, Badeco, Elói, Dener, Zé Maria, Djalma Santos, Julinho e Servilho. Jairzinho, o Furacão da Copa, já atuou pelo Noroeste. Por anda esse clube?
Muitos jogadores em fim de carreira atuaram pelo Nacional e Rio Negro, ambos de Manaus, pelo Operário, de Mato Grosso, e tantos outros. Os clubes estão minguando, a história se esvai pelos bueiros e ninguém faz nada. Os estádios são reduzidos, a torcida migra para outras modalidades e só nos restam as lembranças. O Cruzeiro correu o risco de cair para a Terceira Divisão, os times do subúrbio carioca foram soterrados por administrações desastrosas.
O Botafogo vinha falando de clube empresa e aguardava cair do céu a ajuda de uma família rica. “Quem dorme sonha, quem trabalha conquista” ensina a mensagem que vem colada aos pacotes de balas, que os meninos penduram nos retrovisores dos carros, nos sinais de trânsito. Botafogo, Portuguesa e Cruzeiro já conquistaram, viveram dias de glória, mas pelo jeito seus últimos presidentes não seguiram os ensinamentos da garotada dos sinais e agora estão engarrafados, sem saída, presos em um sinal vermelho que talvez não fique verde nunca mais.