DESCANSE EM PAZ, AMIGO!
por Zé Roberto Padilha
Estava no meu segundo ano no Flamengo, início de 1977, quando fomos treinar contra os Juniores. Pena não terem sido filmados os coletivos. Seriam testemunhas oculares de uma bela história.
Porque ali aconteceram duelos isolados que mostraram, no embrião, a equipe que quatro anos depois alcançaria a maior glória rubro-negra.
Eu contra o Leandro, Toninho enfrentava o Julio César, e Luizinho duelava com o Mozer. Mas foi no meio-campo que a arte produzia o que Tóquio iria reverenciar mais tarde. Mal sabia o Liverpool o que estava sendo cultivado para sua indigestão.
Tadeu, Geraldo e Zico enfrentavam Andrade, Adilio e Tita. Que espetáculo! Aí os Deuses do Futebol me apresentaram o Santa Cruz FC, e uma proposta sedutora nos levou a conhecer Recife. Feirinha de Olinda, Boa Viagem, Bar Jangadeiros, o Arruda lotado para ver nascer Nunes e Betinho. E consagrar Givanildo. E viajei imaginando quando aquele elenco fosse se juntar.
Hoje, quando assisto partir um dos mais brilhantes camisa 8 do nosso futebol, um garoto humilde que pulou o muro da favela para ir à Gávea encontrar sua glória, não tive como não lembrar dos nossos treinos.
Lico veio ocupar o meu lugar e o Flamengo foi campeão mundial de clubes. O Santa Cruz, bicampeao pernambucano.
Mas há jogadores, como Adilio, que passam pela história de um clube e se tornam eternos.
Nem dá para explicar o quanto a humildade se mantinha absoluta do lado de fora perante tamanha genialidade. Tal dom é pra poucos. Por isso Adilios, de exemplos tão raros e preciosos, nos farão sempre falta.
BINGO! BINGO!
por Elso Venâncio
Um dos grandes nomes do rádio esportivo, Édson Pereira de Melo, o Édson Mauro, se destaca
há décadas, com sua criatividade e descontração no microfone da Rádio Globo. Criou bordões
históricos: “Comunicando”, “Marque o tempo, E aí? Beleza?”, “Bingo! Bingo! Olha o gol, olha o
gol”, “Foi ele que botou lá dentro, eu vi, eu vi…”.
Waldir Amaral, então diretor comercial e líder da equipe de esportes da Rádio Globo, foi quem
o descobriu, na Rádio Gazeta de Maceió, e sugeriu o slogan para o novo contratado: “O locutor
Bom de Bola”.
O talento de Édson Mauro para a comunicação surgiu cedo. Curiosamente, seu forte não era
jogar bola, mas, sim, narrar as peladas nas praias da sua terra natal. Profissionalmente, entre
tantas jornadas, transmitiu a despedida do Pelé, no Cosmos, direto do Giants Stadium, em
New Jersey, onde narrou o último gol do Rei do Futebol, cobrando falta, no minuto final do
jogo.
Um caso inusitado envolveu Édson Mauro e um dos grandes nomes da música brasileira. Certo
dia, Djavan procurou o amigo e conterrâneo na Rádio Globo. Estava desiludido, pensando em
voltar para a capital alagoana. Apresentado a Adelzon Alves, que comandava na Rádio Globo o
programa “Amigo da Madrugada”, apoiando a música popular brasileira, o artista viu a sua
vida se transformar. Produtor de nomes como Clara Nunes, João Nogueira, Dona Ivone Lara e
Roberto Ribeiro, Adelzon teve participação no sucesso de Djavan. Após ouvi-lo, levou a fita
cassete para João Araújo, da Som Livre, que selecionava canções para as novelas da TV Globo.
O resto é história…
No maior sufoco que Edson Mauro passou em um estádio de futebol, eu estava ao seu lado.
Era um Estudiantes x Flamengo, pela Supercopa dos Campeões da Libertadores, em 1991. Jogo
no El Palácio, campo do Huracán, em Buenos Aires. Não disponibilizaram cabine para a
transmissão. O operador de som contratado era argentino e nos colocou no meio das hinchas.
Edson, com sua técnica vocal, narrava baixo e de forma veloz, mas atento, como eu, a
qualquer reação contrária. Zinho fez um a zero; Gaúcho ampliou no segundo tempo.
Imaginem! Gritar gol duas vezes, no meio da torcida adversária e na Argentina…
Na redação de esportes da Rádio Globo, perto do Natal, João Saldanha contava histórias
quando, de repente, revelou: “Não quero mulher me enchendo o saco. Separei de novo!”.
Édson, então, perguntou onde ele iria passar o Natal.
— Sei lá!
— Quer ir para Maceió?
— Vou.
“O comentarista que o Brasil consagrou” era reconhecido e festejado nas ruas. Simples que
era, Saldanha narrava fatos e tomava cervejas nos quiosques da Praia de Pajuçara.
Sobre Édson Mauro, lá se vão 74 anos de idade, mais de 50 dedicados à comunicação. Chegou
à Rádio Globo no início dos anos 1970 e deu um rápido até logo em 1984, passando pelas Rádios Jornal do Brasil e Tupi. Depois, retornou ao Sistema Globo de Rádio, onde continua
fazendo sucesso. Vida longa ao “Bom de Bola”!
O PASSARINHO CONTINUA VOANDO
por Mauro Ferreira
No meio de campo daquele fantástico Flamengo de 70/80 havia um passarinho. Não cantava, não piava. Encantava. Seu voo silencioso, rápido, rasteirinho, beirando a grama, encantava. E ai de quem tentasse prender o passarinho. Risco certo de um tombo daqueles vergonhosos, enquanto, sorriso aberto no bico, o passarinho voava…
Ah, o sorriso do passarinho… Era tímido uma hora; outras horas, quase sacana. Só não deixava de sorrir. Nunca. O passarinho estava sempre sorrindo. Vida leve a do passarinho, sempre voando, sempre voando. Escolheu gaiolas estranhas e grandes para exibir sua arte. E, mesmo engaiolado, exibia majestoso a penugem vermelha e preta, toda lustrosa, todo majestoso. Sabia estar livre, livre o passarinho. Ia para a gaiola para se divertir e divertir que estivesse de olhos grudados em seu voo…
Até que o passarinho resolveu sair de cena. Foi rápido, bem rápido. Num piscar de olhos, voou rasteirinho mais uma vez, só que para longe dos olhos de quem admirava suas peripécias. Desta vez, o drible foi em todos. Como nunca conseguiu ser preso, voou para bem longe, muito longe. Subiu para as nuvens atrás de outras gaiolas.
Adílio faleceu.
O passarinho continua voando.
O MAIOR CAMPEONATO DO MUNDO
por Zé Roberto Padilha
Nada se compara, em qualidade e equilíbrio, ao Campeonato Brasileiro. Que outro pelo mundo possui 20 clubes onde o último colocado, o Atlético-GO, joga na casa do adversário, campeão da Libertadores, vice mundial de clubes, o Fluminense, e joga melhor e lhe impõe uma derrota?
Tão equilibrado e com seus times investindo cada vez mais, repatriando suas crias, como Lucas, Coutinho, Thiago Silva, alguns se tornando SAF, que a cada rodada a tabela não se estende, no sentido de um clube se isolar na liderança ou rebaixamento, mas se comprime como numa sanfona quando ela se fecha.
Tão juntos que uma vitória ou derrota parecem valer 6 pontos pra cima ou para baixo tal a proximidade. Em outros campeonatos, ou dá Inter, Milan ou Juventus, Real ou Barcelona, PSV ou Ajax, Porto, Benfica ou Sporting e aqui nem tem como fazer previsões.
Aí vocês me perguntam: se é o melhor e mais difícil, por que o Brasil não ganha uma Copa há 22 anos?
A matéria prima Mãe in Brazil, cheia de dribles e improvisos, é vendida com 17 anos de produção. E passa a ser treinada pela geração Tic-Tac. Guardiola e seus seguidores não permitem mais de dois toques na bola. Aí são convocados para defender uma seleção brasileira jogando como europeus.
Pode trocar Diniz por Dorival, que enquanto ela for formada por quem joga na Europa jamais ela irá recuperar sua característica maior, seu diferencial, que nos levou a ser cinco vezes campeã mundial: a arte de criar algo novo. E jogar diferente.
Da última safra, um menino que desfilava seu variado repertório pelo Alianz Park, e encantava todo mundo, já caiu nas amarras dos Lancelottis. Ao estreiar contra o Barcelona, Endrick já ouviu: “Toca!!”.
E tudo que fez para encantar vai se desfazendo por obedecer, tocar e se adequar ao Padrão FIFA que alcançou os estádios por dentro e por fora.
GEOVANI E ADÍLIO
por Rubens Lemos
Quando o tema é meio-campo, nem pensar em meio-termo. Os retranqueiros do Brasil assassinaram o sarau literário de um time de futebol. A estrada por onde enchemos os olhos do mundo com luminosos craques e arquitetos, planejadores e cérebros de uma partida de futebol.
Me causa tanto desânimo o futebol patropi que voltei ao redemoinho dos anos 1980. Da minha década. Do meu tempo. Do brilho dos jogos a cada trama de categoria e talento criativo. Fixei minha saudade em dois exemplares preciosos do dom de fazer feliz um amante da arte sepultada: Geovani, camisa 8 do Vasco, Adílio, camisa 8 do Flamengo.
Geovani e Adílio nunca disputaram Copas do Mundo. São dois injustiçados incríveis. Geovani poderia ter ido em 1986 e em seu lugar jogou Alemão. Geovani seria o titular mais aclamado em 1990, na insossa equipe de Sebastião Lazaroni e não viajou para a Itália. Alemão novamente, com Tita aos pedaços na reserva, foram convocados.
Adílio surgiu com a morte de outro solista, Geraldo Assobiador, de choque anafilático em operação para retirada de amígdalas. Adílio, juvenil nascido na Cruzada São Sebastião, conjunto de apartamentos para pobres, criado por Dom Hélder Câmara em plena área nobre do Rio de Janeiro, foi o companheiro perfeito de Zico.
Adílio de Oliveira Gonçalves era o típico carioca de morro. Negro, pernas arqueadas, andar gingado, malabarista com a bola. Criava no meio-campo e, se o treinador quisesse, driblava até a sombra de Nelson Rodrigues, deslocado para a ponta-esquerda. Teria vaga em 1978, seguiram Chicão e Batista, em 1982, na vaga de Renato Pé-Murcho, do São Paulo. Adílio jogou uma só partida pela seleção brasileira, em março de 1982 e foi excepcional diante de 150.289 pagantes.
Deu o passe medido para Júnior fazer o gol da vitória de 1×0 sobre a Alemanha Ocidental. É ela sim, a Alemanha que hoje põe na roda os pernas-de-pau de camisa amarela. Recebeu nota 10 da imprensa e Telê Santana o preteriu. Adílio também tinha vaga em 1986, Copa do Mundo em que foram passear Valdo e o falecido Edivaldo.
Geovani ganhou o Mundial de Juniores de 1983 pela seleção brasileira sub-20. Foi artilheiro e melhor jogador. Nasceu no tempo errado. Deveria ter surgido antes. A síndrome dos brucutus se alastrava e o seu estilo elegante, cadenciado, imperial na armação de jogadas era considerado lento e em desuso.
Geovani foi o jogador que conquistou o maior número de títulos cariocas pelo Vasco juntamente com Roberto Dinamite: Foram cinco, todos vencendo ao Flamengo. Geovani foi o melhor jogador das Olimpíadas de Seul em 1988. Tomou um cartão amarelo na semifinal contra a Alemanha (coincidência lamentável) e o Brasil perdeu a final contra a URSS. Neto ocupou o seu lugar e nada fez.
O capixaba Geovani foi o melhor jogador da América do Sul em 1988 e em 1989, venceu a Copa América pela seleção de Lazaroni, já na reserva, vítima do esquema de cinco zagueiros e menos um inteligente no meio e sobrou da lista porque Lazaroni tinha um compromisso de camaradagem com o seu “compadre” Tita.
Nos jogos entre Vasco e Flamengo na década de 1980, Geovani e Adílio coadjuvavam, ainda que tão brilhantes quanto às estrelas. A Geovani, Romário deve muitos dos seus gols, recebendo livre na área lançamentos de 40 metros, fita métrica na chuteira do Pequeno Príncipe, assim batizado o regente cruzmaltino.
Adílio destruía adversários quando Zico era anulado por três marcadores. Até dois ele resolvia fácil, fácil. Adílio, tendo mais atrás Andrade, ritmava o sensacional Flamengo campeão da Libertadores e do Mundial Interclubes de 1981.
Geovani e Adílio se respeitavam. Geovani, embora mais novo, aparentava a maturidade de um Gerson, mais toque e passes longos do que rapidez. Raciocínio genial na antevisão dos lances. Adílio, manhoso, balançava o corpo e se sobrepunha a qualquer marcador, desnorteado com tanta beleza afro-carioca.
Geovani e Adílio, observando emocionado o velho jogo – tenho muitos no acervo para me encantar mais adiante , pouco se encontravam, nunca trombavam um no outro. Eram clássicos, sutis, desconcertantes. Eles pensavam, traziam do ventre de suas mães, a intelectualidade boleira que desapareceu para sempre.
Geovani e Adílio jogavam num tempo de sábios: Havia Sócrates, Pita, Zenon, Delei, Silas, Mário Sérgio em fase vinho puro, Raí começando. Sobravam virtudes.
Lamentáveis do baixo nível atual, naquele tempo, com muito esforço, disputariam a quarta divisão de Ariquemes em Rondônia. Meninos de hoje, se vocês tivessem visto Geovani e Adílio, falar em Renato Augusto, Lucas Lima, seria blasfêmia. Penso em Geovani e Adílio. Com saudade e revanche.