O REI DE IPANEMA
por Elso Venâncio

Narciso Horácio Doval era o personagem mais popular de Ipanema nos anos 1970. Chegou ao Flamengo indicado por Elba de Pádua Lima, o Tim, que havia sido seu treinador no San Lorenzo de Almagro, na Argentina. Rodava o bairro onde foi “rei” de moto ou com carro conversível.
No início da carreira, Zico teve em Doval o seu principal companheiro de ataque. O argentino residia na Montenegro — quadra da praia de Ipanema —, hoje Vinícius de Moraes. Jogava futevôlei nas redes da esquina da rua onde morava com a Vieira Souto, onde exigia que as partidas fossem disputadas a dinheiro, fato hoje comum entre ex-profissionais como Romário, Edmundo, Djalminha e outros, na Barra da Tijuca.
Doval andava pelas ruas de Ipanema sempre cercado e saudado pelos fãs. Alegre, contador de histórias e falando um portunhol que poucos entendiam. Identificado com a cidade que o acolheu, era presença constante também na noite, o que não o impedia de chegar cedo aos treinamentos. Pelo Flamengo, foi bicampeão carioca, em 1972 e 74, e tri da Taça Guanabara, em 1970, 72 e 73, além de ter conquistado o Torneio do Povo em 1972.
O eterno presidente do Fluminense, Francisco Horta, ficou horas para convencer o então presidente do Flamengo, Hélio Maurício, a motivar o futebol carioca utilizando o chamado “troca-troca”, diante da falta de recursos para investir. A conversa entrou pela madrugada, num restaurante em Copacabana. Horta só não esperava o êxito de ter o goleiro Renato, o lateral Rodrigues Neto e o gringo Doval, liberando ao Flamengo o goleiro Roberto, o lateral Toninho Baiano e o ponta Zé Roberto Padilha. Doval foi justamente o jogador trocado por Zé Roberto, que estava em grande forma e tinha colocado Mário Sérgio no banco de reservas tricolor.
Um punhado de craques formou o mais famoso e badalado time da história do Fluminense. Basta dizer que a segunda versão da Máquina Tricolor superou a primeira, de 1975, que conquistou o Campeonato Carioca. A nova equipe-base tinha Félix; Carlos Alberto Torres, Miguel, Edinho e Rodrigues Neto; Pintinho, Paulo Cézar Lima e Rivellino; Gil, Doval e Dirceu.
No Torneio de Paris de 1976, o Fluminense obteve uma conquista invicta, com direito a vitória por 3 a 1 sobre a Seleção Europeia na decisão, gols de Paulo Cézar, Carlos Alberto Torres e Doval. Francisco Horta gostava de contar que, no hotel em Paris, havia público para ver uma disputada partida de tênis. O presidente, surpreso, viu Doval animado e jogando bem, enfrentando uma bela e hábil loira parisiense. No fechamento daquela temporada, ainda houve o bicampeonato carioca, gol de Doval de cabeça na prorrogação, contra o Vasco, após zero a zero no tempo normal.
No ano seguinte, os destaques do Fluminense foram Rivellino e Doval, importantíssimos no título do Torneio Teresa Herrera, em La Coruña, na Espanha. Na final, vitória por 4 a 1 sobre o tcheco Dukla Praga, enquanto o famoso Real Madrid ficou na terceira colocação.
O Ídolo do Flamengo e do Fluminense recebeu o título de cidadão carioca honorário e naturalizou-se brasileiro. Doval faleceu no dia 12 de outubro de 1991, aos 47 anos, em Buenos Aires, vítima de um ataque cardíaco.
A MÁQUINA
por Zé Roberto Padilha

Deus tem nos preservado, e como agradeço por essa bênção, que me permitiu estudar Comunicação Social e permanecer lúcido – ou quase – para descrever capítulos de uma história sobre uma Máquina de jogar futebol.
Já publiquei alguns livros e escrevi diversas crônicas sobre o privilégio de ter sido testemunha, de chuteiras nos pés, ao lado de uma genialidade reunida em torno de uma equipe inesquecível.
Assim como o Flamengo de 81, o São Paulo de Telê Santana e o Palmeiras de Vanderlei Luxemburgo, igualmente memoráveis, era necessário registrar, além dos gols, jogadas e títulos, os bastidores. Os sons do vestiário.
No meu caso, consegui, em parte, descrever a saga de Rivellino, PC e companhia. Só faltava mesmo convencer meus filhos de que fiz parte dela. Afinal, não fazia gols, realizava poucas assistências e passava noites procurando uma imagem minha no Baú do Esporte. Mas nada encontrava, além de ser o primeiro a abraçar o Gil.
Antes de pensar em procurar um psicólogo, fui salvo pela Mercedes de Lewis Hamilton. Lá em casa, somos apaixonados por Fórmula 1 desde Emerson e José Carlos Pace. Quando o carro prateado rasgou a reta oposta de Interlagos, senti um alívio. Ali estava o segredo de a camisa 11 estar comigo.
Não era o bico do carro, que pertencia ao Manfrini. Nem os pneus, que tinham Toninho e Gil de um lado, Marco Antônio e Paulo César do outro. No volante sentava Rivellino, e da suspensão cuidava o equilíbrio de Zé Mário.
Eu era o motor. E o motor nunca é visto.
Ufa!
DO PRIMEIRO TIME A GENTE NUNCA ESQUECE
por Zé Roberto Padilha

Aos 12 anos, já torcia para o Fluminense. Aos 8 anos, fui conhecer o Maracanã ao lado da minha família. Toda ela americana. O América venceu e foi campeão carioca. Na volta para Três Rios, falei para o meu pai :
– Gostei daquela torcida. Aquela nuvem de pó de arroz, as cores tricolores…
E ele concordou.
Esse time foi minha referência. A camisa, linda e sem patrocínios, era cobiçada porque não vendia nas lojas. Eram confeccionadas e bordadas às mãos. Puma e Adidas, só décadas depois. Flu Boutique? Nem pensar.
Só a bola era pesada demais. Se chovesse, a água se introduzia no couro e passava a pesar 100kg. O bacana é que essa escalação perdurava por anos, dava para guardar de cabeça e colecionar o álbum de figurinhas da Panini.
Hoje, qualquer Endrick chega ao profissional sem pedir licença. Dar, como nós demos, um “Com licença, Seu Denilson?” .”Sim, pode chegar. Mas senta naquele banquinho e espera sua vez”.
Depois do Gilson Nunes, veio o Lula ocupar a ponta-esquerda. E depois, quando foi vendido ao Internacional, não é que chegara a minha vez?
Saudades. E orgulho de ser tricolor.
DE CARA COM O CARA
por Elso Venâncio

Na última semana, o baixinho Romário participou de dois podcasts. Em um deles foi o convidado, dando entrevista a Bruno Cantarelli e Beto Junior no ótimo Charla PodCast; e no outro, como apresentador, recebendo o craque Neymar na estreia da Romário TV – De Cara com o Cara. A política amadureceu o senador, que hoje vem evitando as polêmicas, sem os ataques e revides que não levam a lugar nenhum. Romário intermediou as pazes do cantor Belo com Denilson e não descarta voltar às boas com Edmundo:
— Jogávamos futevôlei na mesma rede na Barra. Hoje, não, mas já já tudo vai ser como antes — disse o Baixinho. Isso indica que, em breve, o Animal pode ser convidado para a Romário TV.
Parece que foi ontem, mas há 30 anos o Flamengo repatriava o maior jogador do mundo, na mais significativa contratação do futebol brasileiro de todos os tempos, após a conquista do tetracampeonato mundial pela Seleção Brasileira, nos Estados Unidos. Logo que voltou, Romário pediu ao então presidente rubro-negro, Kléber Leite, que contratasse Edmundo, na época o grande jogador do futebol brasileiro com a camisa do Palmeiras.
Formado por Edmundo, Romário e Sávio, o ataque dos sonhos do Flamengo foi implodido pela vaidade. O mesmo aconteceu quando Romário e Edmundo estavam juntos, no Vasco e no Fluminense. Jovens, os ídolos se afastaram, sem ter, na realidade, nenhum motivo sério que justificasse o rompimento. Romário, por exemplo, mora na casa que era de Edmundo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Recomendo a entrevista de Romário no Charla PodCast. Ele ficou à vontade para contar suas historias, que não são poucas. O papo de Cantarelli, Beto Junior e Romário me fez lembrar do Mundial de 1994. Na véspera do embarque da equipe da Rádio Globo AM-RJ, recebi um inusitado telefonema da Mônica Santoro, esposa do Baixinho na época:
— Você poderia levar uma calça, um sapato e BIS (chocolate) para Romário?.
Nos Estados Unidos, o mais famoso atleta da Copa não falava com a imprensa e me cobrava a entrega da encomenda, que condicionei a uma entrevista exclusiva.
A Casa da Brahma, em Los Gatos, recebia alguns jogadores da Seleção que mantinha sob contrato, em dias de folga. Lá esperei Romário, que abriu o coração numa longa entrevista para o “Show da Madrugada”, apresentado ao vivo, direto da Califórnia, pelo inesquecível Washington Rodrigues. O astro falou de tudo, pautando os jornais do Brasil por alguns dias. Mas o que era para ser destaque passou desapercebido: “Ganho a Copa e volto para jogar no Flamengo”. Isso era simplesmente inacreditável!
Incrédulo, arrogante e com o nariz em pé, o vice-presidente de futebol do Barcelona, Juan Gaspar, avisou a Kléber Leite:
— Só se o senhor pagar 4 milhões e meio de dólares.
— Faço agora o depósito — foi a resposta.
Um pool de empresas garantiu a transação. Romário passou a ser a maior personalidade não só do futebol brasileiro, mas de todo o país.
IMORTAL ATÉ QUANDO NOSSO FUTEBOL MERECIA
por Zé Roberto Padilha

Não era apenas o futebol praticado no país que exalava arte. Sua magia se expandia para os jornais, com Nelson Rodrigues e Armando Nogueira escrevendo colunas que eram verdadeiras poesias. A arte também contagiava as transmissões esportivas, onde João Saldanha dava moldura ao que assistia e descrevia com maestria.
Léo Batista fazia no Globo Esporte o que Luis Mendes e os Apolinhos faziam no rádio: transformavam o esporte em um instrumento mágico de interação com os torcedores. Lá em casa, o almoço era servido antes ou depois do Léo Batista.
O futebol brasileiro era uma religião, e os estaduais eram mais importantes que qualquer competição nacional. A Taça Guanabara, por exemplo, sempre bateu recordes de público e renda.
Com o tempo, nossos craques partiram para a Europa e só retornavam um ano antes da aposentadoria. Assim, encheram nossos clubes de idade e levaram para Brasília e Cariacica o que antes era jogado no quintal da nossa casa.
Léo Batista, como qualquer amante do nosso futebol, estava cansado de noticiar a vinda de Coutinho e a partida de Luiz Henrique. Dos meninos de Xerém que nos deixam a cada dia enquanto o Fluminense insiste em trazer Renato Augusto e anuncia o retorno de René, dispensado pelo Flamengo.
Para quem se orgulhou de apresentar à nação os gols de Vavá, Ronaldo e Careca, ter que anunciar a escalação de Carlinhos no comando do ataque do Flamengo, ou Lelê no Fluminense, era um fardo difícil de carregar.
Portanto, não cobrem lucidez dos jornalistas que hoje inundam as mesas redondas. Não há fragrâncias exaladas dos campos que os inspirem como antes, quando tínhamos a presença e a voz de Léo Batista.
Ele foi imortal enquanto a hegemonia do futebol brasileiro merecia sua presença.
Descanse em paz.