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LEVIR CULPI, O CONTADOR DE CAUSOS

por Eduardo Lamas

Levir Culpi é daquelas grandes figuras humanas com as quais gostaríamos sempre de encontrar. Tive o privilégio de o conhecer em janeiro de 2003, quando cobria o Botafogo para o Jornal dos Sports. Foram apenas dez dias de ótima convivência na Granja Comary, em Teresópolis, durante a preparação para a temporada que precisava e seria de recuperação para o Alvinegro, que havia sido rebaixado pela primeira vez para a Série B do Campeonato Brasileiro.

Desta vez, quase 20 anos depois, nos reencontramos para esta entrevista, em que ele faz uma justa homenagem ao seu saudoso amigo Dirceu, que tem foto emoldurada ao lado de camisas, postêres e faixas do próprio Levir, no restaurante de sua propriedade no centro da capital paranaense, onde almoçamos e gravamos, eu e o cinegrafista Fernando Gustav, um bate-papo divertido. Levir é um grande contador de causos e, como não vivenciou poucos – muito longe disso -, o trabalho do entrevistador fica muito facilitado e a conversa flui.

Ao repassar sua trajetória como jogador e treinador, ele fez questão de lembrar sua passagem vitoriosa pela seleção brasileira de novos, quando ainda atuava pelo Coritiba, e seu período curto, porém, muito importante pessoal e profissionalmente, no Botafogo de 1973, fatos que certamente poucos torcedores, mesmo os mais aficionados, conhecem ou se recordam.

Mas, claro, falou também do grande Santa Cruz de 75, dos outros clubes que defendeu jogando e os muitos títulos que conquistou e também o que deixou de conquistar com o Athletico, em 2004, como treinador. Seu trabalho no Japão também é destacado, mas as muitas experiências pessoais que viveu na Terra do Sol Nascente merecem uma segunda entrevista.

Não caberia tudo num papo só, afinal Levir tem tanta, tanta, tanta história boa para contar, que já fez isso num livro que seu assessor de imprensa, Adriano Rattmann, nos presenteou, chamado “Um burro com sorte?”, título, aliás, oriundo de um engraçadíssimo episódio ocorrido quando comandava o Criciúma. Vamos dizer que aí vai a primeira parte. Espero voltar em breve a Curitiba, em especial ao seu ótimo e simpático restaurante, para mais uma resenha. Espero que você curta esta. Eu curti muito.

UMA COISA JOGADA COM MÚSICA – 1

por Eduardo Lamas Neiva

Capítulo 1

Eis aqui um bate-papo à mesa da eternidade em que vivem personagens dos dois maiores cronistas de futebol de todos os tempos, com algumas participações especialíssimas que serão reveladas ao longo desta longa e divertidíssima e emocionante conversa, recheada de músicas que contam, cantam e tocam de primeira a História do esporte mais popular do mundo no Brasil. Aqui, o tempo é ilimitado. João Sem Medo, Sobrenatural de Almeida, Ceguinho Torcedor e Idiota da Objetividade marcaram um encontro no restaurante-bar Além da Imaginação.

O garçom que os recebe e participa da animada conversa é Zé Ary, nome recebido pelo pai, “seu Barroso”, que fora um fanático torcedor rubro-negro, em homenagem a dois ilustres artistas que torciam fervorosamente para o Flamengo: José Lins do Rêgo e Ary Barroso. Por isso, todos acham que Zé Ary é flamenguista, mas quase ninguém sabe ao certo, só João Sem Medo, pelo menos é o que se deduz. Seu time o garçom não revela, mas é, sim, um apaixonado por futebol e música, principalmente músicas que falam de futebol.

João Sem Medo chega primeiro, fazendo seu cumprimento característico a conhecidos e desconhecidos: dois dedos à testa com breve movimento para frente. Senta-se a uma das mesas, reservada especialmente para eles, já com as quatro cadeiras dispostas, e pede algo para beber. Zé Ary o serve.

Garçom: – “Seu” João Sem Medo, é um prazer imenso receber o senhor novamente aqui no restaurante. Fique à vontade, por favor.

João Sem Medo: – Grande José Ary Lins Barroso! Meu camarada Zé Ary, muito obrigado. O prazer é todo meu.

Garçom: – Que isso, seu João! O senhor é sempre muito bem-vindo. Há quanto tempo!

João Sem Medo: – Muito tempo mesmo não voltava pra essas bandas. Mas acompanho tudo, tudinho. Então, me diga aí, teu time ganhou hoje? (garçom faz que não com um gesto) Ih, de novo? É, rapaz, a coisa tá mal parada. Se continuar assim, a vaca vai pro brejo…

Garçom: – Nem me fale, “seu” João. E a nossa seleção?

João Sem Medo: – Meu amigo, nosso jeito de jogar futebol era único no mundo. Mas hoje em dia tem muito jogador de cintura dura dando chutão e canelada por aí. É uma correria só. Então, fica mais difícil pro técnico escolher. Perdemos muito da nossa ginga, o drible. Ainda há alguns muito bons, mas já não são tantos como antes. Quase não tem mais peladas nas ruas, em campinhos de terra batida. Eu não vejo mais isso. Você vê?

Garçom (faz que não com a cabeça): – Joguei muita bola na rua, “seu” João. Fui até atropelado uma vez.

João Sem Medo: – Verdade?

Garçom: – Não foi nada demais, apenas um susto. Mas havia mil campinhos pra jogar também…

João Sem Medo: – Hoje, onde tem campo é quase tudo de grama sintética. E a garotada que vai pros clubes mal consegue dominar a bola direito.  A especulação imobiliária, os condomínios construídos pra tentar isolar as classes média e alta da violência, e também a tecnologia, expulsaram a garotada das peladas de rua. Acabaram os campinhos de terra.

Garçom: – É verdade. No meu tempo era difícil um garoto que não gostasse de jogar bola…

João Sem Medo: – Antigamente, quando o garoto era meio fresco, não gostava de se sujar jogando futebol ou brincando de qualquer outra coisa, todo arrumadinho, a gente dizia que ele soltava pipa em frente ao ventilador e jogava bola de gude no carpete.

Garçom (rindo): – Um tempinho atrás faziam isso tudo no computador, agora é no celular.

João Sem Medo: – Ó, Zé Ary, tô esperando uns amigos pruma resenha boa. Eles vêm de mais longe, por isso demoram um pouco mais.

Garçom: – Eu tô sabendo, “seu” João! O papo vai render…

João Sem Medo: – Dizem que a melhor coisa que existe no futebol é o gol feito pelo time que se torce. Talvez seja. Mas eu acho que o melhor de tudo é o papo.

Garçom: – Também gosto muito.

João Sem Medo: – O papo depois dos jogos conserta qualquer coisa, ganha o jogo perdido, enaltece o perna de pau, reduz o valor da estrela da partida, enfim resolve qualquer parada. E quando o papo é meio sobre a ignorância, ainda assim é bom, porque às vezes resulta em boas brigas. O papo é a vida do futebol. Quem é que gosta de ir aos jogos sozinho? Ou mesmo de escutar pelo rádio (ou assistir pela TV) sem ter alguém para comentar?

Garçom: – Por isso, o senhor foi o comentarista que o Brasil consagrou.

João Sem Medo: – O comentário pra mim era como um bom papo sobre futebol na mesa de um bar. Os músicos confirmaram?

Garçom: – Os músicos já estão sabendo e prepararam um repertório especial pra acompanhar a resenha.

João Sem Medo: – Muito bom. Hoje o repertório somos nós que vamos ditar. Quero que eles agradem à moçada que vem aqui hoje.

Garçom: – Tá bom, “seu” João. Ainda tem o nosso aparelho de som e o telão também pra mostrar uns vídeos. Daqui a pouco os músicos chegam. Um deles me contou que o futebol e a música brasileira tiveram um início muito parecido. Era música e futebol de branco, cintura dura?

João Sem Medo: – Isso mesmo. Era futebol pra inglês ver e jogar. A música…

Garçom: – Ah, é verdade que o senhor é primo do Tom Jobim?

João Sem Medo: – É, por parte de mãe.

Garçom: – Ele vinha muito aqui. Gostava muito do “seu” Tom.

João Sem Medo: – A turma dele tinha um papo muito intelectual, gosto mais da linguagem do povão… No início, a música tocada no Brasil era toda da Europa: polca, valsa, erudita… Mas aí, os negros foram entrando e deram o batuque, a ginga. O chorinho nasceu dessa mistura. Era tão elitizada e preconceituosa a coisa que era proibido tocar samba. Bom, fomos o último país a abolir a escravidão, você sabe. Aliás, pelo que tenho lido, ainda existe lá na minha terra, o Rio Grande do Sul. Mas não só lá, claro.

Garçom (faz que sim com a cabeça): – Vou ligar o som enquanto os músicos não chegam.

Zé Ary põe um LP na antiga vitrola do restaurante ainda com aspecto de novinha em folha. Toca  “Só se não for brasileiro nessa hora”, de Galvão e Moraes Moreira.

João Sem Medo: – Que coisa, linda, Zé Ary? 

Garçom: – É o Moraes Moreira cantando, nos tempos dos Novos Baianos. Do disco Novos Baianos Futebol Clube. Ele prometeu vir mais tarde tocar um pouco pra nós também.

João Sem Medo (prestando atenção na música e apreciando): – Muito bom. (e cantarola baixinho): – “Só se não for brasileiro nessa hora. Só se não for…”.

FIM do Capítulo 1

QUANDO O GURI APARECE

por Claudio Lovato Filho

Ele fica lá, sentado no sofá da sala ou deitado no quarto.
Mais tempo na cama.
Sempre com o controle remoto da TV na mão.
A cuidadora já sabe: os óculos para ver TV na sala não são os mesmos usados no quarto.
E ninguém mexe na bandeira pendurada na porta do armário!
Ele fala pouco, só o estritamente necessário, e quase nunca ri; fica num dorme-e-acorda sem fim ao longo de todo o dia e, volta e meia, se recusa a comer, não importa o que lhe seja oferecido.
Mas isso quando o guri não vem. Quando o guri aparece, a história é outra.
O guri que já nem é tão guri assim. Mas é neto, e neto sempre será guri.
E o guri sempre aparece com a camisa do clube (número 11 às costas) ou o boné ou o cachecol ou o agasalho do clube, o clube amado por ambos desde sempre.
Então, ele, o vô, fica falante e ri e come.
Conta histórias que viveu (às vezes acrescenta uma ou outra parte inventada, mas em essência é tudo verdadeiro, muito sincero e muito comovente, porque são coisas preparadas para serem contadas especialmente ao guri).
Histórias do tempo em que ele, o vô, tinha o nome gritado pela torcida no estádio; do tempo em que ele, o vô, fazia muitos gols, a maioria com seu chute forte de canhota, e fazia a torcida enlouquecer de alegria; do tempo em que ele, o vô, usava a camisa do clube amado com o número 11 às costas.
São dias muito felizes, os dias em que o guri aparece.
Ô, se são.
Para os dois.
Assistem aos jogos juntos, e quando o time deles vence – o que tem acontecido bastante ultimamente, porque o time está numa fase muito boa – até bebem uma cerveja ou duas (a do vô, sem álcool – mas tudo bem).
É na hora de o guri ir embora que o clima fica meio triste, mas nada que chegue a tirar a graça do que viveram ali. Não mesmo. O guri sempre vai embora dando garantias de que volta logo. E sempre volta.
No caminho de casa, o guri às vezes tem vontade de chorar. E já aconteceu de chorar mesmo – no Uber, no ônibus.
Ele queria o vô para sempre com ele. Mas sabe que isso é impossível. E então tem vontade de chorar. E às vezes chora mesmo.
“Até já, vô. Fica com Deus”, ele costuma dizer quando se despede.
E o vô sempre responde: “Vai com Deus, guri. Te cuida”.
Então eles aguardam até a próxima vez, sem nunca se separar.

O CORINTHIANS DE TODOS OS TEMPOS

por Luis Filipe Chateaubriand

No gol, Gilmar dos Santos Neves, goleiro de classe.

Na lateral direita, Zé Maria, raça a toda prova.

Na zaga central, Gamarra, excelente no desarme.

Na quarta zaga, Domingos da Guia, beque de excelência.

Na lateral esquerda, Wladimir, excelente marcador.

Como volante, Freddie Rincón, líder nato.

Na meia direita, Sócrates, futebol cerebral.

Na meia esquerda, Neto, canhota irrequieta.

De ponta direita, Marcelinho, “pé de anjo”.

Como centroavante, Ronaldo Nazário, um fenômeno.

De ponta esquerda, Rivelino, o reizinho do parque.

Gilmar; Zé Maria, Gamarra, Domingos da Guia e Wladimir; Rincón, Sócrates e Neto; Marcelinho, Ronaldo e Rivelino.

E aí?

Vai encarar?

MANÉ E A NOVA COPA

por Rubens Lemos

Enquanto estava na flor da forma, Garrincha nunca foi o otário inventado por maus jornalistas e historiadores. Para conhecê-lo sem a menor ingenuidade, basta ler a definitiva biografia escrita por Ruy Castro, um craque.

Garrincha tapeava treinadores na proporção com que entortava laterais. Colegas que imaginavam constrangê-lo, recebiam de revide um rato morto dentro da chuteira.

É duvidosa, portanto, a frase de Garrincha durante a comemoração da vitória de 5×2 na decisão do título mundial de 1958, quando teria dito, ainda segundo irresponsáveis da memória, “que a Copa era mixuruca porque não tinha segundo turno”.

Garrincha, malandro-mor, transou com suecas fugindo da concentração e deixou um filho por lá. Sua tragédia pessoal calibrada pelo álcool não tem nada a ver com esperteza ou tolice.

Tomando por verdadeira a menção de Mané à rapidez de uma Copa do Mundo, ele estaria feliz com a absurda decisão da Fifa de aumentar para 48 seleções o total de participantes já na próxima edição em 2026, elevando o número de jogos para intermináveis 104 confrontos. Botsuana, Trinidad e Tobago e o Afeganistão podem ir se animando com mais uma medida financista e demagógica da madrasta do futebol.

Pelo modelo anunciado, serão 12 grupos de quatro seleções cada classificando-se duas para o mata-mata com 32 equipes. Até a decisão, os finalistas terão disputado oito partidas, uma a mais do que a versão atual. Aparentemente, nenhuma discrepância. Mas a superlotação trabalha contra o bom nível dos jogos.

As Eliminatórias Sul-Americanas perderão o sentido, posto que o limite de classificados deve chegar a, no mínimo, seis. A Venezuela, eterno saco de pancadas e a abominável Bolívia, podem começar a se preparar para a fase final. Na Europa, onde é comum seleções tradicionais, caso da Itália no ano passado, passarem vexame sendo desclassificadas, sobrará espaço.

Copa do Mundo, de verdade, era com 16 times, como no tempo de Garrincha, que ganhou duas jogando demais, dentro desse contingente. Os triunfos de 1958, 1962 e 1970 devem ser mais valorizados, porque logo de cara, o escrete nacional enfrentou paradas duras.

Em 1958, pegou de saída a Áustria, que venceu por enganosos 3×0, a Inglaterra, com a qual empatou por 0x0 e a União Soviética, vencida e desmontada por econômicos 3×0 porque o técnico Vicente Feola foi praticamente obrigado a por em campo um líder – Zito e dois caras que decidiam: Pelé e Garrincha que se juntaram ao genial meia-direita Didi.

O Brasil classificou-se e encarou a retranca do País de Gales, salvando-se com um gol sobrenatural de Pelé, aplicando uma meia-lua no gigante da zaga e batendo no cantinho do goleiro: 1×0 e foi goleada. Depois, repeteco no placar de 5×2 contra França e Suécia e a primeira taça Jules Rimet conquistada.

Em 1962, sufoco pela contusão de Pelé no segundo jogo contra a Tchecoslováquia(0x0), após um modesto 2×0 no México. Um passinho para fora da grande área de Nilton Santos após um pênalti claro, permitiu a virada contra a Espanha(2×1). Garrincha, motivado pela escultura corporal da cantora Elza Soares, jogou por ele e por Pelé, garantindo o bicampeonato.

Com 16 seleções, passamos vergonha na Inglaterra, ganhando sem convencer da Bulgária(2×0) e tomando duas sovas de 3×1, da Hungria e de Portugal, voltando para casa na primeira fase. Foi a maior bagunça de todos os tempos desde a bola de capotão.

No tricampeonato, começamos apanhando da Tchecoslováquia para desfilar no Estádio Jalisco, virando para 4×1. Acabamos com a banca da campeã do mundo, é, a Inglaterra surgiu logo no começo da guerra, num gol sensacional criado pela inteligência de Tostão, a supremacia de Pelé até o chute de Jairzinho(1×0). O Brasil venceria o Peru(4×2), o Uruguai(3×1) e a Itália(4×1), na Copa do Mundo cujo sinônimo foi o Rei.

Excesso diminui a emoção, privilegia a mediocridade e acomoda os favoritos. Garrincha jogaria a Nova Copa desde que abastecido de robustas cabrochas, estoque pesado de cachaça e rejuvenescido aos seus 25, 26 anos, quando ninguém o parava. Nem os babacas que inventam balelas para ridicularizar alguém que era o Charles Chaplin do Drible.