por Marcelo Mendez
Manhãs de inverno são naturalmente belas pela deferência que lhes cabe à existência. Pois senão vejamos como se dá os domingos de várzea no ABCD Paulista…
Não acordo com aquela eletricidade múltipla, o salto da cama não é pirotécnico, furioso e acelerado. Não. Para mais um dia de futebol de várzea, o ato de sair da cama é leve, lento, profundo, não se acorda ao som da ira de um Rolling Stones, mas sim, com um John Coltrane a tocar Naima.
É de introspecção e sonhos que se faz um domingo de inverno. Assim estava eu no caminho do jogo entre D.E.R x Vila Vivaldi, válido pela semifinal do campeonato amador de São Bernardo. Da janela do banco de trás do carro que me levaria para a peleja no Campo do Lavínia, me resignei ao som do silêncio para olhar para o céu de então.
Não havia nele a costumeira resplandecência das manhãs de eterno verão que regem a várzea, mas tinha um encanto igualmente épico. Era de um cinza, de um escuro como os quadros em que Francisco Goya eternizou com suas “Pinturas Negras”. Algo muito forte, denso e vivaz que imaginei que se perpetuaria e até que estava indo bem nesse ínterim.
No entanto, o cinza e o escuro daquela manhã se dissiparam aos exatos 11 minutos do primeiro tempo do jogo em questão. O tempo suficiente que a bola levou para encontrar Raul, o camisa 8 do time do D.E.R…
Vinha ela, a bola, a sofrer. Por entre bicas e chutões, vitimada por esbarrões, cotoveladas, trancos e outras coisas menos nobres, ela, a bola, não se via por nada em um momento de calma e regozijo. Os modos dos homens ludopédicos não eram dos mais refinados. Surge então a dividida:
Uma bola quebrada pela zaga viaja até o meio campo e em meio a tudo isso que havia, ela encontra o peito de Raul. Com a calma de um homem que ama, munido das maiores intenções de versos e odes, o menino dá um salto, enche o peito e a apara. Por entre ventos e tempestades, Raul mantém a bola do seu peito, a protege, com um giro de bailarino do Bolshoi, se livra da marcação, e daí pra frente, com a bola já no gramado, Raul dá um passe preciso e o sol, como por encanto surge no Lavínia:
Até ele, o sol, aparece para ver Raul jogar!
Que coisa bela. Olhando para o campo do Lavínia, inebriado pelo futebol daquele menino de rosto de Rimbaud, me lembrei das coisas mais belas e mais tenras que pode haver na vida. Raul era nada menos que isso.
Com um futebol quase que Imperial, o rapaz eleva aos píncaros da beleza o exercício de se jogar futebol. Com ele nada é feio, nada é tosco, nenhum poema se da pela metade. Raul é intensamente gênio. Tem a primazia de deter todos os minutos, instantes, átimos e segundos dessa coisa bela que é o futebol. O menino que comandava o meio campo do time do DER não era só dono da cancha de jogo:
Raul era dono do tempo.
Quando a bola chegava aos seus pés, como que por encanto, ele, o tempo, parava pra vê-lo jogar. De cabeça erguida coma imponência de um Grande, Raul distribuía muito mais do que passes e lançamentos. Raul esparramava sonhos, versos e odes pelo campo do Lavínia. Ali, nada mais foi meramente comum depois dos seus passos de craque. Seu futebol dignificou até a grama sintética a qual flutuava.
Afinal, quem pisa são os outros que são mortais. Craques flutuam…
Com toda a leveza de um milhão de versos, Raul estufou as redes do Vila Vivaldi com um chute preciso. E o placar de 1×0 se manteve como inevitável. O jogo devia terminar assim por profissão de fé e arte; 1×0 gol de Raul.
Raul o Grande! Eu te louvo!
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