por Claudio Lovato Filho
O primeiro obstáculo eles haviam transposto sem maiores dificuldades: arranjar uma desculpa para passar toda a tarde de domingo fora de casa.
Aproveitaram um fato verdadeiro para inserir nele sua mentira. Disseram que iam participar do plantio de mudas no parque da cidade, uma atividade voluntária da qual participava a escola em que estudavam.
– Mas nada de muita gente junta! Sem chegar muito perto de ninguém! – disse a mãe de um deles.
– Não tirem a máscara! – disse o pai do outro.
Receberam permissão e, depois do almoço e de muita comunicação por mensagens de dentro de seus quartos, encontraram-se no ponto de ônibus, com suas mochilas e máscaras com o escudo do clube. No ônibus falaram pouco, porque estavam nervosos, mas a verdade é que nem precisavam conversar, porque já estava tudo planejado.
O ônibus os deixou muito além do ponto do parque. Desceram em frente ao estádio.
Ao lado do campo da escolinha, no qual eles jogavam todas as quartas-feiras à tarde, estavam construindo o estacionamento do estádio. Era uma obra pequena, para um estádio pequeno de uma cidade pequena. Havia uma rampa de serviço, provisória, porque o estacionamento teria dois níveis. Projeto modesto, mas bem-feito. E essa rampa, em certo ponto, praticamente se encontrava, de forma paralela, com o muro que fazia o limite do setor oeste das arquibancadas, o setor diametralmente oposto ao das sociais do estádio. Havia apenas um pequeno (embora perigoso, é verdade) vão que separava a rampa feita de madeira e o alto do muro. Era por ali que eles entrariam. Era por ali que tentariam entrar.
Primeiro se certificaram de que não havia vigilantes por perto.
– Devem estar trabalhando no jogo! – disse João Carlos, e Pedro apenas balançou a cabeça em sinal de concordância.
Entraram no terreno da escolinha, avançaram, se esgueirando, como se estivessem numa frente de batalha na guerra ou no meio de um tiroteio de gangues, e chegaram ao pé da rampa sem serem vistos. Avançaram, pé ante pé, cautelosos, tensos, contendo até a respiração, aqui e ali. Então chegaram ao ponto em que a lateral da rampa quase encostava no alto do muro que limitava as arquibancadas. Olharam um para outro.
– Tem que se agarrar no muro e depois passar as pernas – disse Pedro, e agora foi João Carlos quem apenas balançou a cabeça.
Primeiro foi Pedro. Com um pouco de esforço, conseguiu. Já do lado de dentro do estádio, de pé no que era o último degrau das arquibancadas, olhando o tempo todo para um lado e para outro, para conferir se alguém o tinha visto, ele fez sinal para João Carlos, que, apesar de ser mais alto e pesado que o amigo, conseguiu realizar a operação a contento.
Tinha dado certo. Haviam entrado no estádio.
Os dois times já estavam em campo. O time deles, o dono da casa, com o uniforme número 1, completo. Havia apenas alguns repórteres e fotógrafos. Da TV, apenas uma equipe.
Então o árbitro pediu que fosse feito um minuto de silêncio em respeito aos mortos na pandemia. “Tanta gente que se foi, meu Deus do céu!”, João Carlos ouvia o pai dizer a cada jogo que assistiam na TV.
O juiz apitou o início o jogo, e o que os dois amigos passaram a presenciar a partir de então foi uma experiência totalmente nova para eles, que, apesar da pouca idade, já estavam acostumados a assistir jogos no estádio. Ouviam tudo o que o seu Tadeu, o técnico, dizia (gritava) e também o que o treinador do time adversário gritava (berrava). Ouviam os que os jogadores falavam uns para os outros. João Carlos e Pedro só não estranharam mais porque, alunos da escolinha que eram, volta e meia conseguiam assistir a um treino do time profissional, mas, ainda assim, aquilo que estavam presenciando, numa partida oficial valendo pontos, era uma coisa totalmente diferente.
Tomaram o cuidado de ficar atrás de uma coluna, no alto das arquibancadas, escondidos.
O jogo se resumia a um infindável perde-ganha entre as duas intermediárias. Nada de lances de área. Mas para eles isso não era o mais importante. O que interessava mesmo era estar dentro do estádio, vendo jogar o time que amavam de todo o coração.
Veio o intervalo. Abriram as mochilas e tiraram delas copinhos de água iguais aos que os jogadores recebiam durante os treinos e jogos.
Imóveis e calados, eles viram os times voltarem a campo. O jogo foi reiniciado e prosseguiu em sua toada de muita disputa no meio-campo e feriado para os goleiros. Mas isso foi interrompido de maneira repentina e completamente inesperada lá pela metade do segundo tempo. O futebol e sua maravilhosa capacidade de surpreender e encantar. De uma hora para outra, a magia acontece. O futebol.
A bola veio do goleiro, uma reposição de bola para o grande círculo. O chutão encontrou Luiz Rafael, o atacante que costumava dizer que era o último centroavante do mundo, o garoto tatuado e marrento de quem João Carlos e Pedro eram fãs incondicionais. A partir daí foi tudo muito rápido. Cercado por três adversários – dois zagueiros e o lateral-esquerdo –, Luiz Rafael matou a bola no peito e, de costas, deu um lençol no lateral. Quando se virou, deixou a bola quicar uma vez, ela subiu muito e ele teve que aplicar um drible de cabeça num dos zagueiros, um testaço que permitiu que começasse a avançar em alta velocidade em direção à grande área. Percebeu o goleiro se armando todo para sair do gol e também a aproximação do outro zagueiro, que primeiramente tentou lhe puxar pela camisa, e depois, sem conseguir sucesso no primeiro intento, apelou para o carrinho por trás, um carrinho desesperado e assassino que Luiz Rafael evitou com um salto, deixando o defensor deitado. Com os outros dois marcadores ainda em seu encalço, mas já distantes e conscientes de que não conseguiriamcontê-lo, ele ficou cara a cara com o goleiro. Ameaçou a batida rasteira, no canto, o goleiro se jogou para o lado em que pensou que bola ia, e foi então que o atrevido e habilidoso camisa 9 deu uma cavadinha e fez a bola morrer lindamente no fundo da rede, bem no meio do gol.
Naquele exato momento, João Carlos, sem conseguir se conter, gritou a pleno pulmões:
– Puta que pariu!!!
E no meio do alvoroço das comemorações do time lá no campo, um funcionário do clube ouviu o grito, olhou para cima e viu os dois. Quando perceberam que o sujeito estava mexendo no celular, enquanto continua a olhar para eles, resolveram se mandar. Correram.
No trajeto entre a arquibancada e a rampa, e entre a rampa e o terreno da escolinha, e entre o terreno da escolinha e o ponto de ônibus, só o que eles conseguiam dizer uma para o outro era:
– Tu viu o que ele fez? Tu viu???
E entre risos e exclamações atônitas e a certeza de que haviam presenciado um momento especial na história do clube e, principalmente, em sua própria história pessoal, eles foram para casa com seu segredo bem guardado e com uma felicidade orgulhosa que era maior que tudo – um sentimento que, ao que tudo indicava, os acompanharia pela vida afora, com as novas roupagens que o tempo sempre traz.
Daqui a um tempo, muito tempo, eles contarão aquela história aos amigos e aos filhos e aos netos,em ocasiões diferentes, e, em alguns casos, mais de uma vez para as mesmas pessoas; contarão que estavam no estádio quando Luiz Rafael fez “aquele” gol. E muitos duvidarão da história, claro, ou todos, e muitos rirão e balançarão a cabeça ao ouvir o relato, porque, afinal, aqueles eram tempos de pandemia, e não havia torcida nos estádios. Mas eles, João Carlos e Pedro, saberão. Lembrarão em detalhes daquilo que viram – daquilo que, de uma forma muito especial e muito única, só eles viram.
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