por Paulo Andel
São pouco mais de oito horas da manhã, num silêncio enorme abraçado à luz ensolarada da Cruz Vermelha. Estamos no último domingo de agosto. Por alguma razão o futebol cutuca meu ombro antes que eu levante para lavar o rosto, então volto no tempo e desembarco num outro domingo qualquer de agosto, podendo ser em 1979, 1980 ou 1981.
Era batata: uma rotina maravilhosa. Logo ao acordar, lá estava o rádio ligado no programa do Waldir Vieira – a vinheta tinha o assobio clássico da Rádio Globo – até que, em algum momento, anunciavam a cobertura da rodada do futebol a partir de meio-dia. E aí eu descia para fazer as compras matinais, sonhando em ir ao jogo no Maracanã, especialmente do meu Fluminense – se não desse, seria bom ir a outro também, quando o Flu jogava longe ou fora da cidade. Pão, ovos, queijo, presunto, Jornal dos Sports, O Globo, O Dia, Jornal do Brasil.
Terminado o Waldir, meu pai ligava a TV no Conversa de Arquibancada na Bandeirantes (hoje Band), o programa onde representantes das torcidas organizadas dos clubes cariocas debatiam o futebol. Era um barato. Personagens como Niltinho (Flamengo), Russão (Botafogo), Amâncio Cezar (Vasco, que viria a ser um de meus melhores professores na UERJ) e Antonio Gonzalez (do Fluminense, meu ídolo e que se tornaria meu grande amigo no futuro), comandados por Hamilton Bastos e posteriormente por Dênis Miranda. E depois de uma hora ouvindo os torcedores falarem do Maracanã e do futebol, eu só queria era ouvir a senha mágica, ir para o estádio e ver aquele mar de gente se espremendo com radinhos de pilha nos ouvido, uma experiência sensorial indescritível.
Mas que senha mágica? “Paulo, vá lá embaixo comprar lasanha na Trattoria Torna (da rua Anita Garibaldi)”. Não falhava nunca. Acho que o ritual do Maracanã para meu pai exigia a lasanha de domingo. Comprado o almoço e feita a deliciosa refeição, era só esperar o ônibus na porta do Shopping dos Antiquários em Copacabana e partir para a glória. Saíamos bem cedo, perto de uma da tarde, e geralmente chegávamos com os portões do Maracanã ainda fechados, o que aumentava ainda mais o clima do jogo.
Para nós, o 435 era bem mais rápido e ainda passava na porta do Fluminense, o que era sempre um bom presságio, mas meu pai geralmente pegava o 434, linha Grajaú-Leblon, eleito o ônibus de percurso mais charmoso do Rio, atravessando toda a zona sul, o centro da cidade, passando pelo Maracanã e depois por Vila Isabel. Desconfio de que ele gostasse do percurso e também quisesse me colocar para saborear a cidade. Uma hora depois, estávamos no Maraca. Tinha vendedores de laranjas – a descascada era mais cara -, de almofadinhas para assento – em dias de calor a arquibancada era quente! – de bandeirinhas de mão, de cachorro quente e, acreditem, o estádio dono do mundo tinha bancos de praça em suas cercanias. Em pouco tempo, o vazio era tomado por um mundaréu de gente.
A experiência de subir a rampa do Bellini ou da UERJ de mãos dadas com o pai era algo indescritível. E ainda passar pelas salas das torcidas, com a festa sendo preparada. O lance final era embarcar nos estreitíssimos e escuros túneis que davam acesso à arquibancada, como se você fosse teletransportado para outra dimensão, até que vinha a luz e qualquer garoto ia à Lua ao se deparar com aquele campo gigantesco, aquele monte de gente cantando, a preliminar rolando – ou prestes a acontecer -, os vendedores de Coca-Cola vestido feito astronautas, todos de branco, com capacete e o tanque de refresco nas costas como se fosse um respirador.
Às quinze para as cinco terminava o jogo dos juvenis. As torcidas começavam a arrumar suas bandeiras para desfilar na arquibancada. Papel picado, papel higiênico, pó de arroz, fumaça. Quando começava a ter algum burburinho na entrada dos vestiários, um de cada lado, subterrâneos, aí as torcidas explodiam de alegria. E quem torcia para o Fluminense sonhava com Edinho, Zezé, Deley, Mário, Pintinho, Gilberto, mas por tabela via Mendonça, Helinho, Marcelo, Carpeggiani, Adílio, Zico, Júnior, Roberto Dinamite, Paulo Cezar Caju, Orlando Lelé, Marco Antônio, Edu, Luisinho Tombo, Alex, Mirandinha, Moisés e Luizão lutando contra Wendell, Renato, Raul, Cantarele, Mazzaropi, Zé Carlos, Tobias, País, Ernani.
Às sete da noite, o jogo acabava. Ganhando, perdendo ou tendo apenas assistido, lá estava meu pai e sua mão a me puxar, enquanto eu já pensava na resenha da TVE, na reprise do jogo à meia-noite de domingo, ao próximo jogo que teria que ser pelo apaixonante radinho de pilha e também pelo próximo no Maracanã. O próximo, o próximo, o próximo jogo, numa sucessão infinita que talvez atravesse a morte, honrando as palavras do mestre Nelson Rodrigues.
Agora são nove da manhã do último domingo de agosto. Não estamos mais em 1979 ou 1980, mas em 2020. O rádio está desligado. A banca não vende mais jornais. A senha do pai emudeceu e o clássico do Maracanã foi ontem, com a bela vitória do Fluminense sobre o Vasco. Não há como ir ao jogo logo mais, seja de que time for, e o jeito é navegar pela televisão. E o próprio estádio é totalmente diferente do que já foi um dia. Mas quem disse que aquele desejo infinito de pegar o 434 em Copacabana e passear pela cidade por uma hora até chegar ao Maracanã passou? Não passa, não passará.
Quem subiu as rampas do Bellini ou da UERJ, mergulhou no micro túnel da arquibancada ou desfilou pela grande volta olímpica da geral, nunca mais deixou de voltar. É uma busca infinita pelo futebol, pela paixão, pelo Rio de Janeiro, feito a dos garimpeiros que não largam seu ofício à procura de uma pepita de ouro, aquela que explica a nossa paixão pelo jogo de bola. É o Maracanã, amigos. Que venha o próximo jogo!
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