por Pedro Barcelos
A história do Brasil e Inglaterra de 1984
Há exatos 36 anos, o Maracanã estava em festa. O Brasil vivia um de seus períodos históricos mais conturbados, com a emenda Dante de Oliveira rejeitada na câmara dos deputados, representando o fim das esperanças de todos que estavam nas ruas pedindo o voto direto. Mas no Maracanã era diferente, era dia de festa. Festa que durou até as 17h14.
O amistoso entre Brasil e Inglaterra de 10 de junho de 1984, com valor de ingresso referente a duas latas de óleos (na época) foi marcado por três comemorações. Primeira, a CBF comemorava os 70 anos de criação da FBS (Federação Brasileira de Sports), primeira instituição nacional criada para organizar todos os campeonatos esportivos no país. Pouco depois, a FBS passou a se chamar CBD (Confederação Brasileira de Desportos), para participar do primeiro Campeonato Sul-Americano, organizado na Argentina, e em 1979, finalmente, a CBD alterou seu nome e estatuto para respeitar as exigências da FIFA, tornando-se assim a CBF.
Outra comemoração era a volta da Taça Jules Rimet ao Rio de Janeiro, após o roubo na sede da CBF em 19 de dezembro do ano anterior. A réplica, encomendada pela Eastman Kodak Co., com autorização da FIFA, já havia passado por Brasília, para uma solenidade com o ditador Figueiredo, e em São Paulo, para a reabertura do Estádio do Pacaembu. Nesta última ocasião citada, Bellini, Mauro e Carlos Alberto Torres se encontraram com Paulo Machado de Carvalho, chefe das delegações das seleções de 1958 e 1962, e que após a reforma do estádio mais carismático da capital paulista, também passaria a dar seu nome ao mesmo. Na cerimônia carioca, apenas os três capitães estavam presentes.
A última novidade seria a estreia de Edu Coimbra como treinador da seleção brasileira. Após excelente passagem pelo Vasco da Gama (com o vice-campeonato brasileiro, perdendo a final para o Fluminense), ele começava sua curta passagem à frente do time. A equipe convocada não pôde contar com os jogadores de clubes estrangeiros. Falcão, Cerezo e Zico estavam na Itália. Sócrates, capitão brasileiro na última Copa, participava no mesmo dia do seu jogo de despedida pelo Corinthians, em Kingston (Jamaica), contra a seleção local. 2 a 1 para os caribenhos, com gol de desconto do Doutor.
Quem herdara a braçadeira e sua camisa 8 foi o companheiro de equipe, Zenon. No mais, a equipe brasileira era basicamente composta de jogadores de clubes cariocas. No gol: Roberto Costa (Vasco); na defesa: Leandro (Flamengo), Mozer (Flamengo), Ricardo Gomes (Fluminense) e Júnior (Flamengo); Meio de campo: Pires (Vasco), Assis (Fluminense) e Zenon (Corinthians); e ataque: Renato Gaúcho (Grêmio), Tato (Fluminense) e Roberto Dinamite (Vasco).
O time inglês era apenas um coadjuvante para aquela celebração. Como tudo no Brasil, a história fica ao relento dos pesquisadores, e as consequências dos nossos atos no presente viram livros de histórias vendidas em sebos empoeirados no futuro. Caso os dirigentes da CBF de 84 soubessem da partida histórica entre Brasil e Inglaterra em 1956, jamais teriam chamados os bretões para aquela festa. Sir Stanley Matthews, aos 41 anos, acabou com Nilton Santos, com 20, e consagrou uma das derrotas mais vexaminosas da seleção brasileira até então.
Porém, o “otimismo” de nossos dirigentes quase sempre se confunde com arrogância. Naquele 10 de junho de 1984, até os melhores amigos da seleção vaiaram ao término do jogo. Márcio Guedes, comentarista do Globo Esporte na época, disse que aquela havia sido “a pior exibição de que se tem notícia no Maracanã, em termos de Seleção”.
A Folha de São Paulo destacou a “total falta de entrosamento entre os jogadores e da ausência de um esquema definido”, sendo surpreendidos por um 4-2-4 (“tática que caiu em desuso no futebol brasileiro”, segundo o veículo). Sandro Moreyra, em sua coluna “Bola Dividida”, n’O Globo, seguiu a semana inteira justificando os erros do Edu, tentando advogar por uma causa que não cabia ao mesmo.
O problema daquela derrota não foi o Edu ou o abismo que o futebol brasileiro apresentava nos últimos anos. O problema daquela derrota não estava apenas nos 11 jogadores de amarelo e azul em campo, nem de qualquer problema político-eleitoral brasileiro. Naquele 10 de junho de 1984, o mistério do futebol aconteceu. Nenhuma de todas as possibilidades esperadas seriam capazes de prever a graça do futebol: o penetra. Ninguém organiza uma festa como aquela esperando que um não-convidado assopre as velas.
O penetra: John Barnes, o jamaicano. Seus 20 anos de idade não resumiam toda a sua inconsequência. Jogador do Watford, não queria ver o adversário atacar sem revidar. Até os 11 minutos do primeiro tempo, só o Brasil atacou. Não abriu o placar porque Assis furou uma bola impressionante na marca do pênalti e porque Renato Gaúcho resolveu driblar o goleiro inglês. Vendo aquilo, Barnes deve ter entendido que o antigo Maracanã não servia apenas ao futebol, mas a todos os espetáculos que ali aparecessem.
Não tardou muito, na primeira bola limpa que teve deixou Leandro (o latifundiário daquelas terras) com a bunda estatelada no gramado. E na segunda jogada, aos 44 minutos, um lance que os torcedores jamais deveriam ter esquecido: matou a redonda nos peitos, correu 35 jardas, driblou seis adversários e só não entrou com bola e tudo porque teve humildade. Sem dúvida, um dos gols mais bonitos da história do Maracanã (RIP 1950-2010).
Não bastando ter acabado com toda a linha de defesa no primeiro tempo, ainda deu assistência para o gol de Hateley no segundo, forçando a substituição de Leandro por Vladimir (passando Júnior para a lateral direita), dois minutos depois. Sem dúvida, uma atuação digna de Mago dos Driblings, apelido do Sir Stanley Matthews.
Conclusão do jogo para o Brasil: a população brasileira pouco se importou com uma réplica da Jules Rimet, a CBF chegaria ao seu centenário com pouquíssimos créditos (à exceção do uso de seus uniformes em manifestações reacionárias), Edu só duraria como técnico durante o período que fora contratado (três jogos), Roberto Dinamite se despediria da seleção na partida seguinte e aquelas duas latas de óleo nunca mais valeriam tanto.
Conclusão de jogo para a Inglaterra: Barnes continuaria sendo cobrado por atuações similares e, por mais que tentasse, os ingleses jamais aceitariam um jogador de país colonizado como protagonista de sua seleção. Sua cor da pele, que até hoje gera insultos entre os jornais galeses, nunca passou desapercebido, trazendo à tona o racismo estrutural tão dito atualmente.
Na Copa de 86, por exemplo, ainda como um dos maiores craques da seleção inglesa, amargurou o banco de reservas até os 30 do segundo tempo contra a Argentina, de Maradona. Já perdendo de 2 a 0, pouco poderia fazer. Mas, como qualquer bom penetra, fez. Um jogo rodeado pelas críticas à Guerra das Malvinas, poderia também ter sido lembrado como o jogo do penetra, não fosse o preconceito. Com apenas 9 minutos em campo, Barnes fez mais uma de suas jogadas surpreendentes, dando assistência para Lineker descontar o placar. Os 10 jogadores ingleses em campo foram eliminados, mas não Barnes.
Décadas depois, a Inglaterra voltaria a enfrentar o Brasil na reabertura do estádio carioca para a Copa do Mundo. Em 2013, o “The Guardian”, principal jornal inglês, foi categórico sobre aquela partida de 1984: “O Carnaval pertence à Barnes”. É, pode ser. Carnaval fora de época, como qualquer penetra gosta.
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