por Claudio Lovato
Faustino Bezerra tinha oito anos quando o conheceu: um mulato alto e magro chamado Irineu Alves. Faustino ouviu esse nome ser pronunciado pela primeira vez quando o recém-chegado do Rio de Janeiro foi ao encontro de seu pai, gerente administrativo da obra, e se apresentou:
– Irineu Alves, topógrafo.
Irineu começou a trabalhar no dia seguinte, e não se passou muito tempo até que começasse a impressionar a todos como goleiro nos jogos do canteiro de obras. Alguns trabalhadores vindos do Rio tinham a impressão de que já o haviam visto.
Depois das partidas, os trabalhadores se reuniam para beber. Até que todos iam embora e apenas Moisés e Irineu permaneciam. Haviam se tornado amigos. Essas conversas, relatadas ao longo de anos por seu pai, permitiram a Faustino escrever a maior parte do que está registrado à caneta em ensebados cadernos escolares de espiral.
Irineu realizou seu primeiro grande feito futebolístico aos 17 anos, num jogo em São Januário contra o poderoso Vasco da Gama. Naquela partida, ele defendeu dois pênaltis e foi elogiado por Sabará e Pinga ao longo de dias. Vavá, outro integrante do Expresso da Vitória, disse que aquele garoto logo se tornaria o melhor goleiro do país, opinião compartilhada publicamente por Nilton Santos, do Botafogo, e Moacir, do Flamengo.
Nascido em Bonsucesso, Irineu chegou aos 15 anos ao clube que leva o nome do bairro e logo cedo começou a se sobressair. Dividia-se entre o clube, a escola e a ajuda ao pai no pequeno armazém que ficava no andar de baixo da casa onde moravam.
Conheceu Mariana quando tinha 17, e ela, 16, recém-chegada de Madureira, de mudança com a família. Nessa época, Irineu já tomava conta do armazém praticamente sozinho, porque o pai sofria o açoite constante da artrose na coluna, e, em razão disso – e também por conta da amizade de um dirigente do Bonsucesso com um tenente-coronel torcedor do clube –, conseguiu escapar do Exército.
O jovem goleiro assumiu a titularidade do time principal quando ainda não havia completado 18 anos, e pouco tempo se passou até o dia do jogo contra o Vasco em São Januário e os subsequentes elogios de Sabará, Pinga, Vavá, Nilton Santos e Moacir.
Irineu e Mariana se casaram com a autorização e as sinceras bênçãos do pai dela. Irineu conseguia tempo para o curso técnico de topografia, uma escolha feita em razão do que alguns conhecidos haviam lhe dito, de que o Brasil estava para se tornar um grande canteiro de obras.
Vasco, Flamengo e América tentaram contratá-lo, mas, por vontade própria, ele permaneceu no Bonsucesso. Moacir, o reserva de Didi na Copa de 58, na Suécia, chegou a procurá-lo no armazém da família para tentar convencê-lo a aceitar a proposta do Flamengo, mas não teve sucesso na empreitada.
Irineu e Mariana se casaram. Da união nasceu uma menina que eles decidiram que se chamaria Paulina, nome da mãe de Irineu, falecida quando ele tinha sete anos.
Goleiro promissor, mencionado em crônica de Nelson Rodrigues, dono do próprio negócio, topógrafo formado, marido e pai amado, benquisto na comunidade, Irineu não poderia imaginar para si uma vida melhor, mas as tragédias ao que parece chegam exatamente nessas horas e foi então que uma vela acessa em uma casa próxima causou um incêndio que destruiu uma dezena de residências e a vida de duas famílias, entre as quais a de Irineu. Mariana e Paulina foram levadas pelo fogo.
A vida para ele não seria mais possível em Bonsucesso nem no Rio. Quanto mais longe melhor, mesmo que tivesse que esquecer a carreira de jogador, e assim Irineu foi para Brasília, tentar reconstruir a vida em meio à construção do novo Distrito Federal.
O trabalho o ajudava a enfrentar o terror do passado e a impossibilidade de vislumbrar um futuro, mas a vida é maior que tudo, sempre empurrando a tudo e a todos para frente, e Irineu conheceu uma jovem de cabelos negros muito lisos de nome Luzia, filha de um comerciante nascido na Bahia e de uma professora goiana. Foi com Luzia que Irineu voltou a sorrir. Foi com Irineu que Luzia viveu o amor pela primeira vez. Planejavam se casar e ter uma casa ali mesmo no Cruzeiro Velho.
Esses planos bem que poderiam ter se concretizado não fosse um jovem engenheiro de São Paulo, decidido a fazer de Luzia sua esposa. Um dos encontros clandestinos de Irineu e Luzia foi testemunhado por um encarregado de obras, subordinado do engenheiro. O pai da Faustino deu seu conselho:
– Esqueça essa menina, Irineu.
A resposta era o silêncio e um sorriso indolente.
Um dia, Irineu sumiu de repente. Seus pertences desapareceram por completo. Foi como se ele tivesse evaporado ou como se nunca tivesse existido.
O engenheiro paulista e Luzia, depois de obsessiva insistência dele, se casaram e foram morar em São Paulo – ela com a sensação de que perdera a chance de ser complemente feliz; ele com uma culpa da qual jamais conseguiria se livrar, resultado de um ato de violência e covardia que o impediria de conseguir olhar nos olhos de seus três filhos.
Pouco tempo se passou até que os moradores do Cruzeiro Velho passassem a relatar o quicar de uma bola e certos gritos, de madrugada, entre as quadras e blocos. Quando saíam para verificar, não viam ninguém. Os gritos diziam sempre a mesma coisa:
– Sai, zagueiro, sai!
e
– Essa foi pra você, Luzia!
Não tardou muito para que um veterano decretasse:
– É o fantasma do Irineu!
Faustino, cujo pai se foi deste mundo quase cinco décadas depois do sumiço de Irineu, continua escrevendo em seus cadernos – acrescentando detalhes, ampliando o contexto, passando a limpo.
Faustino já decidiu que frase usará como epígrafe de seu livro, que ele ainda não desistiu de ver publicado. É uma frase de sua própria autoria, lapidada ao longo dos anos:
– Todo mundo vira fantasma um dia. A diferença é que alguns fazem isso depois de morrer e outros, antes.
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