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O EXAME

14 / outubro / 2020

por Claudio Lovato


– Toma o seu protetor auricular, pra enfrentar essa música bonita que você vai ouvir daqui a pouco.

O enfermeiro era um cara de meia-idade, muito falante, e tentava criar um clima de bom humor.

– Valeu! – disse o craque, que já havia usado em outras ocasiões aquelas duas pequenas “rolhas” (era o que sempre lhe vinha à cabeça) cor de laranja ligadas por um cordão da mesma cor. 

O enfermeiro disse que ele já podia se deitar. O jogador já sabia o que tinha de fazer. Não era a primeira vez que passava por um exame desse tipo, mas agora era uma situação diferente, muito diferente. 

Enquanto ele se acomodava na máquina, o técnico responsável pela condução do exame, que era mais jovem e bem maior que o enfermeiro, entrou na sala.

– Qualquer coisa é só apertar aqui, que paramos o examena mesma hora! – ele disse, enquanto acomodava na palma da mão esquerda do paciente o que parecia ser uma bola de borracha.

– O mais importante é não se mexer! – ele acrescentou antes de voltar para a salinha anexa, onde ficava o computador que era sua ferramenta de trabalho.  

Então começou.

Primeiro uma sirene, depois um bate-estaca, em seguida leves movimentos da maca para frente e para trás, e por fim o silêncio, até recomeçar a barulheira, e assim por diante. 

A ressonância magnética diria o tamanho do estrago que havia sido feito no seu joelho. 

Ele rezou. Dentro daquele túnel ruidoso, ele rezou pais-nossos e aves-marias e, no meio das orações, veio-lhe à mente, venenosa que só ela, a pergunta “por que isso foi acontecer comigo, por que comigo?”. Lidava com essa interrogação bandida ao mesmo tempo em que via o rosto da mãe e do pai e dos outros que ele amparava; sim, pensou neles, mas era o rosto da mulher e da filha pequena, a filhota linda, que fazia seu coração bater aospulos, e de novo “por que comigo, por que essa porra foi acontecer comigo?”, e ele ficou com receio de acabar fazendo algum movimento brusco por causa do tumulto na sua cabeça e dos saltos que seu coração dava.

Num certo momento, as orações e a preocupação e o amor infinito e o inconformismo se combinaram de uma forma tão intensa que acabaram resultando numa explosão em forma de lágrima solitária, que escorreu do canto do olho direito, e só no que ele conseguiu pensar nessa hora é que sua vida não podia se encerrar ali, fosse qual fosse o resultado do exame, e foi então que ele sentiu o rastro quente de outra lágrima, essa no olho esquerdo, e sua cabeça de repente invadida, completamente invadida, todos os cantos e recantos dela, por uma nova pergunta: “O que eu vou fazer se não puder mais jogar?”, e diante dessa indagação gigantesca e brutal, completamente solitário perante essa questão assassina, a única resposta que ele conseguiu arranjar foi um suspiro fundo e alto, um gemido, talvez tenha até falado, e de repente tudo foi interrompido pela voz do técnico no alto-falante: 

– Estamos finalizando seu exame. Só mais um instante.

E então acabou. 

Ele agradeceu ao enfermeiro e ao técnico, que lhe responderam com votos de boa sorte e entusiasmadas confissões de que eram seus fãs. 


Havia uma tristeza profunda que vinha lá do fundo do peito e que tirava a graça de qualquer coisa, uma tristeza que era enfrentada apenas por uma persistente fé com base naquilo que ele não conseguia explicar nem em palavras nem em pensamento, um sentimento, ou uma sensação, ou apenas um desejo – sim, talvez apenas isto, desejo – de que a tragédia fosse evitada. 

Foi somente horas mais tarde, horas longas e difíceis, que ele conseguiu se livrar desse campo minado de emoções potentes e paradoxais. Isso ocorreu no exato momento em que seu médico, o médico do clube, entrou no quarto e, sem dizer uma palavra, sorriu e levantou os dois braços numa simulação de comemoração de gol.

Sob o olhar atento da mulher e de um de seus irmãos, ele apenas conseguiu fechar os olhos e pensar que é preciso passar por algumas coisas nesta vida, simplesmente isso, é preciso passar, e que o futebol e a vida são lindos, mas são duros, e só não foi adiante em seus pensamentos porque nesse momento sentiu o toque de uma mãozinha macia e quente em seu rosto e ouviu a vozinha fina da dona daquela mãozinha, e então, como nunca antes, tudo fez completo sentido para ele, completo e perfeito sentido. 

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