por André Luiz Pereira Nunes
A história do futebol é recheada de dramas, alegrias, comoções e superações. Porém, nenhum feito é comparável ao que foi protagonizado pelos atletas do Dínamo de Kiev, nos anos 40. Seus atletas jogaram uma partida cientes que se ganhassem, seriam assassinados. E ainda assim decidiram vencê-la, em uma rara e verdadeira lição de coragem e esportividade que não encontra similaridade no mundo. Para a compreensão dessa árdua decisão, faz-se necessário retroagir no tempo para entender como um simples encontro representou um momento crucial e derradeiro de todo um elenco esportivo.
Em 19 de setembro de 1941, a cidade de Kiev, atualmente a capital da Ucrânia, foi invadida e ocupada pelo exército nazista. Diante desse inferno, nos meses seguintes, centenas de prisioneiros de guerra não tinham permissão para trabalhar, tampouco para viver em casas, de modo que vagavam pelas ruas na mais completa indigência. Um deles era Nikolai Trusevich, goleiro do Dínamo de Kiev, uma das agremiações mais importantes e prestigiosas da então União Soviética. Josef Kordik, um padeiro alemão, a quem os nazistas não perseguiam exatamente por ser germânico, era torcedor fanático do clube. Pois, em um belo dia, caminhava ele tranquilo pela rua, quando ao olhar para um mendigo, estupefato, se deu conta que se tratava de seu ídolo, o gigante guarda-metas Trusevich.
Ainda que viesse a agir de forma ilegal, o comerciante teutônico resolveu desafiar as regras, enganando os nazistas, ao contratar o goleiro para trabalhar na sua padaria. Para Trusevich era a chance de poder se alimentar e dormir debaixo de um teto seguro. Para o seu empregador era a oportunidade de ajudar a estrela de seu time. Durante as atividades laborativas as conversas entre ambos giravam sempre em torno de futebol até que o padeiro teve uma excelente ideia. Propôs a Trusevich que ao invés de amassar pães, se dedicasse a procurar o restante de seus colegas de elenco. Não só continuaria remunerado, como ainda poderia salvar os outros jogadores.
O goleiro então diuturnamente passaria a percorrer o que restara da cidade devastada e, entre inúmeros mendigos, paulatinamente achou os atletas do clube. Kordik forneceu trabalho a todos, se esmerando ao máximo para que as autoridades não descobrissem a sua artimanha. O arqueiro ainda encontrou alguns atletas rivais do campeonato russo, entre os quais, três jogadores do Lokomotiv, vindo também a resgatá-los. Em pouco tempo, a padaria havia virado um verdadeiro campo de refugiados contendo uma equipe de futebol completa.
Ao se verem sob a proteção do padeiro alemão, os jogadores foram logo estimulados a voltar a jogar. A maioria havia perdido as suas famílias diante do exército de Hitler e o futebol era a última chama acesa que poderia acalentar os seus combalidos corações. Como o Dínamo estava proibido de realizar atividades, resolveu-se dar outro nome para aquela agremiação, a qual passou a se chamar FC Start. Não tardaria para que fossem feitos desafios contra equipes de soldados inimigos e seleções formadas pelo Terceiro Reich.
A 7 de junho de 1942 ocorreu a primeira peleja. Ainda que cansados e famintos por terem trabalhado durante toda a noite, os refugiados venceram por 7 a 2. O adversário seguinte seria um time de uma guarnição húngara, também goleado pelo escore elástico de 6 a 2. Uma equipe romena também veio a sofrer uma derrota acachapante de 11 a 0. A situação ficaria ainda mais séria quando, a 17 de julho, defrontaram um time composto pelo exército alemão, vindo a golear por 6 a 2. Os nazistas então começaram a ficar bastante aborrecidos e impacientes devido à crescente fama de um grupo de empregados de uma padaria e se mobilizaram na tentativa de encontrar um time que pudesse derrotá-los, afinal o orgulho alemão estava mortalmente ferido. Trouxeram da Hungria o forte MSG, mas o FC Start triunfaria por 5 a 1 e ainda ganharia uma revanche por 3 a 2. Em 6 de agosto, cientes de sua superioridade, os alemães resolveram preparar uma equipe contendo membros da Luftware, o Flakelf, um grande time, utilizado como instrumento de propaganda de Hitler. Tratava-se de uma tentativa de buscar o melhor rival possível para que cessasse a incômoda e crescente popularidade do FC Start, o qual já gozava de uma enorme fama entre o sofrido povo refém dos nazistas. De nada adiantou, pois apesar da violência e da falta de esportividade dos desafiantes, o Start saiu vencedor por 5 a 1.
Após essa escandalosa e vergonhosa derrota, finalmente os alemães vieram a descobrir a manobra do padeiro. Chegou então de Berlim a sentença de que todos fossem executados, incluindo o dono da padaria, mas as autoridades locais não se deram por satisfeitas. De maneira alguma desejavam que o time russo ficasse perpetuado como uma lenda, pois se fossem todos assassinados, o fracasso alemão estaria perpetuado, pois a superioridade da raça ariana era um dos pilares do nazismo. Por essa razão, antes que fossem fuzilados deveriam ser derrotados em uma derradeira disputa.
Diante de um clima de extrema pressão e ameaças, foi anunciada uma revanche para 9 de agosto, no estádio Zenit. Antes da partida, um oficial da SS adentrou ao vestiário e disse em russo:
– Serei o juiz do jogo, então respeitem as regras e saúdem a platéia com o braço levantado! – exigindo que fizessem a saudação nazista.
No gramado, os atletas do Start, de camisa vermelha e calção branco, levantaram o braço, mas no momento da saudação, levaram a mão ao peito e proclamaram uma expressão soviética que valorizava a cultura física. Os alemães, de camisa branca e calção negro, marcaram o primeiro gol, mas o Start chegou ao intervalo do segundo tempo ganhando por 2 a 1. No intervalo receberiam novas visitas ao vestiário, desta vez com armas e advertências mais claras e concretas:
– Se vocês ganharem, não sai ninguém vivo! – ameaçou um outro oficial da SS. Os aterrorizados atletas até aventaram a hipótese de não voltarem para o segundo tempo, mas pensaram em suas famílias, na gente sofrida que se encontrava nas arquibancadas e gritava desesperadamente por eles e decidiram, enfim, jogar.
Pois, venceram com todos os méritos. No fim, quando já batiam os adversários por 5 a 3, o atacante Klimenko ficou cara a cara com o goleiro alemão, deu-lhe um drible, deixando-o estatelado no chão e, ao ficar em frente a trave, quando todos esperavam o gol, simplesmente deu meia volta e chutou a bola para o centro do campo em um gesto de desprezo e superioridade total. O estádio veio abaixo.
Após a partida, nada de anormal aconteceria. Os nazistas deixaram que saíssem normalmente de campo. O Start ainda atuaria dias depois, goleando o Rukh por 8 a 0. Mas o destino de todos já estava selado. Ao término da partida, a Gestapo visitou a padaria.
O primeiro a morrer com requintes de crueldade, em frente a todos, foi Kordik, o padeiro. Os demais foram enviados para os campos de concentração de Siretz. Nesse local foram mortos brutalmente Kuzmenko, Klimenko e o goleiro Trusevich, este vestido com a camisa do FC Start. Goncharenko e Sviridovsky, que não estavam na padaria naquele dia, foram os únicos sobreviventes e se mantiveram escondidos até a libertação de Kiev, em novembro de 1943. O restante da equipe pereceu em meio a torturas até a morte.
Ainda hoje nas escadarias do clube é mantido um monumento de saudação e recordação aos heróis do FC Start, os indomáveis e corajosos prisioneiros de guerra, os quais ninguém pôde derrotar durante uma dezena de históricas partidas, entre 1941 e 1942.
Na Ucrânia, os jogadores do FC Start são tido como heróis da pátria e seu exemplo de coragem é ensinado nos colégios. No estádio Zenit uma placa brada: “Aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor nazista”.
O cineasta John Huston se inspiraria nesse drama real para rodar o filme “Fuga para a vitória” (Escape to victory), de 1982, que chamaria muita atenção à época do lançamento, pois participaram grandes astros como Michael Caine, Sylvester Stallone e Max Von Sydow, além de algumas estrelas do futebol como Bobby Moore, Osvaldo Ardiles, Kazimierz Deyna e Pelé. No filme John Huston fez o que o destino não foi capaz: salvar os heróis.
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