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O dia em que quase desejei ser vascaína para agradar ao meu pai  – mas ele preferiu que eu fosse eu mesma

10 / maio / 2016

por Hérica Marmo


Houve um tempo em que eu achava besteira ter que torcer pro mesmo time do pai. Filha de uma botafoguense e de um vascaíno, minha primeira rebeldia foi me apaixonar pelo Flamengo. Logo o Flamengo. A ovelha-negra da família, dizem os primos alvinegros fanáticos. Ovelha rubro-negra, devolvo vidrada nas cores que me fascinam. Não foi capricho. Nem acaso. Apenas era muito complicado para os meus 6 anos só poder torcer para o Zico quando ele vestia verde e amarelo. Driblei o conflito interno e simplifiquei: meu time seria o que contasse com aquele camisa 10.

Na adolescência, quando o tema ainda era um tabu em casa, convenci meu pai a me levar pela primeira vez ao Maracanã. Em pleno domingo de clássico, propus a aposta que jamais poderia pagar: “Se seu time ganhar, eu viro Vasco”. Ele respondeu com uma piada que guardava um simbolismo que nem imaginávamos: “Não quero que você vire Vasco. Quero que você continue sendo Hérica”. Mas, empolgado com a excelente campanha do seu clube, que terminaria campeão brasileiro naquele 1989, resolveu pagar pra ver. “Vai que, né?”, deve ter pensado… Não deu… Quando subi as escadas e me deparei com a lindeza daquela arquibancada vermelha e preta, chorei de alegria e pertencimento. E rezei pra não perder a aposta. Recordar é viver: Bujica ouviu minhas preces, fez dois gols, ganhei uma camisa na saída do Maraca e nunca mais precisei esconder a minha paixão.

Meu pai pareceu levar na boa as duas derrotas. A partir daí, viramos rivais declarados. Mas, enquanto em mim o encanto pelo meu time só crescia, ele se envolvia cada vez menos com o dele (“Enquanto Eurico Miranda mandar, não quero saber de Vasco”, prometia). Mesmo assim, na contramão das estatísticas, eu me tornei minoria em casa: uma solitária rubro-negra contra dois vascaínos (meu pai e minha irmã) e dois botafoguenses (minha mãe e meu irmão). Acima de tudo, quatro fervorosos membros da torcida arco-íris. Não havia vitória do Vasco ou do Botafogo que os mobilizasse mais do que uma derrota do Flamengo. Quando o assunto era futebol, pegar no meu pé era o maior prazer da família.

Movida por essa certeza, comentei uma vez com o meu pai: “Você até gosta que eu torça pro Flamengo, né? Porque você adora implicar comigo quando eu perco”. Para a minha surpresa, ele desfez seu quase permanente sorriso e confessou com profunda tristeza: “Não, eu preferia que você torcesse para o mesmo time que eu”. Meu coração ficou pequenininho, mas já não tinha condições de voltar atrás.

Foi ali que entendi que herdar a paixão futebolística do pai não é besteira. Invejei todos os meus amigos que foram ungidos com essa benção. E fiz um acordo comigo mesma: se um dia tivesse um filho, eu o deixaria torcer para o mesmo time do pai, ainda que eu não tivesse competência para casar com um seguidor de Zico.

No papel de filha, consegui aplacar parte dessa frustração na Copa de 1994. Eu já morava em outra cidade e assisti aos primeiros jogos com os amigos da faculdade. Mas, quando Romário e cia chegaram à final, decidi ver o último jogo em casa. Meu desejo secreto: comemorar um título com o meu pai. Minha preocupação ainda mais secreta: meu pai se emocionar tanto com a vitória do Brasil e ter um infarto. Na minha cabeça maluca, eu tinha que estar lá para evitar que isso acontecesse. No momento em que Baggio chutou a bola pro alto, porém, o que fiz foi me jogar no pescoço do meu pai pra gritar junto com ele: somos campeões!!! Pela primeira vez, campeões ao mesmo tempo! Choramos abraçados e, se o coração dele realmente não aguentasse tanta emoção, a culpa teria sido toda minha.

Graças a Deus, salvo a minha neurose, ninguém estava doente. Com apenas 51 anos, meu pai gozava de plena saúde. O coração generoso, felizmente, continua batendo forte, agora, quando meu herói completa 73 temporadas de riso fácil, otimismo e respeito ao próximo.

Com a simplicidade de quem trocou a escola por uma boleia de caminhão, meu pai me ensinou que não precisa pensar igual para conviver bem com alguém. O futebol, claro, não foi o único campo da vida em que vestimos camisas diferentes. Mas em todas as vezes em que escolhi a arquibancada adversária, ele manteve o espírito esportivo. E eu aprendi a ter também.

Pai, desculpa pelo Flamengo e pelas outras decisões que causaram frustração. E muito obrigada por sempre me incentivar a ser tudo o que eu quis ser. Se o mundo fosse feito de mais pais como você, talvez não houvesse tanta demostração de ódio e intolerância por aí… Obrigada, obrigada, obrigada! Te amo!


Seu Ary e o seu sorriso indefectível

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