por Claudio Lovato
Entrei no carro quando o temporal estava prestes a desabar. Foi só o tempo de fechar a porta para que os primeiros pingos começassem a metralhar a janela. O motorista era um cara grisalho. Quando li o nome dele e olhei para a foto que apareciam na tela do meu celular, uma sensação de estranha familiaridade me assaltou, mas foi só dentro do automóvel que tive a certeza de que era ele.
“Puxa, mas você é o Délio! Que satisfação!”, falei sem conseguir calibrar o volume da voz e o tom do entusiasmo.
“Desculpe, não entendi”, ele respondeu, evitando meus olhos no retrovisor.
“Será que eu me enganei?”, eu disse. “Você não é o Délio, centroavante?”
“Não, não sou”, ele disse, forçando um sorriso. “Muita gente me confunde com ele”.
Não dissemos mais nada um ao outro. A corrida durou mais alguns minutos. Durante o que nos restava de viagem nem me dei o trabalho de pesquisar sobre ele na internet, ver fotos atuais, conferir o que ele andava fazendo, essas coisas. Eu sabia que era ele. Paguei, saí do carro e fiquei pensando sobre as razões de ele ter mentido. Não cheguei à conclusão alguma. Fiz apenas algumas suposições sem a menor importância.
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“Vai com Deus, meu filho”, e isso foi tudo o que ela disse.
Seu menino estava indo embora. Ela bem que gostaria de fazer um último pedido ao seu Waldemar, para que ele cuidasse bem do menino, mas não conseguiu. Se tentasse falar mais do que falou, cairia num choro incontrolável.
Thiago levava a mochila às costas e uma bolsa preta de náilon, ambas com o distintivo do clube, mas não eram produtos licenciados; seu Waldemar tinha comprado tudo, uma forma de agradar o garoto e tornar “oficial” uma sequência de procedimentos que de oficial tinha muito pouco.
Ela viu o filho e o homem magro e calvo entrarem no carro, sob a chuva fina e insistente, e tomarem o rumo da capital.
“Vai com Deus, meu filho”, ela pensou, os braços cruzados, o coração parecendo estar dentro de uma caixa de fósforos.
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Há algum tempo que ele só tem olhos para ela.
Ele foi uma promessa de craque que deu certo. Profissional aos 18 anos. Europa aos 21. Duas Copas do Mundo. Hoje, de volta ao Brasil, é o artilheiro do clube. Solteiro. Rico.
Ela trabalha na loja do clube. Mora na periferia. É um pouco mais jovem que ele.
Ele passa pela loja todos os dias. A loja é anexa ao Centro de Treinamento. Numa tarde em que o sol e a chuva resolveram aparecer juntos, ele a convidou para sair. Ela disse não. Tem namorado. Vão se casar. O namorado dirige Uber e estuda para concursos.
O artilheiro, apesar disso, só tem olhos para ela. Apaixonou-se como somente ocorreu uma outra vez em sua vida – pela mulher vencida pela doença cruel há dois anos.
Ambos – o artilheiro celebridade e a vendedora da loja do clube – estão sendo honestos com eles mesmos.
São pessoas que já entenderam que a vida está além do que se compra e do que se vende.
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Nos últimos dias, ele tem pensado muito no avô.
O avô lhe dava muitos conselhos e gostava muito de ditados e provérbios.
“Não se deve ser arrogante com os humildes nem humilde com os arrogantes”, o avô dizia com frequência.
Ele riu, enquanto dirigia para casa. O avô era uma figura.
Muito, muito tempo atrás, antes de sua primeira viagem com o time principal, ele recebeu do avô o seguinte conselho:
“Cuidado com o terno. A camisa é branca. Quando forem comer no aeroporto, cuidado com a beterraba e o molho da massa”.
Ele riu de novo dentro do carro silencioso que avançava no asfalto molhado pela chuva que tinha começado de manhã e não dava sinais de trégua.
Como sentia saudades do avô.
Chegou em casa, estacionou o carro na garagem e, antes de sair, olhou para a calça. Na perna direita, logo acima do joelho, a marca redonda e roxa denunciava que uma rodela de beterraba havia despencado ali.
Então, antes de dar aquele dia por encerrado, ele pensou:
“Em apenas um par de dias fui arrogante com um humilde e humilde com um arrogante”.
E por fim:
“Eu não sou isso”.
Depois, com a cabeça baixa e os olhos grudados no chão, foi falar com os dois bisnetos do homem que ele sempre teve e sempre terá como referência absoluta do que é bom e digno e realmente importante.
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