por Rubens Lemos
Sonhava ser narrador de futebol. Razão lógica: era um perna de pau, nunca teria chance de copiar meus ídolos. Incapaz de um drible, zagueiro medíocre, admirava a categoria dos domadores de multidões em estádios lotados.
Queria ser Marco Antônio Antunes, o Garotinho da Copa, queria ser Hélio Câmara(foto), maior comunicador de massa do Rio Grande do Norte, em centésimos transitando da emoção sequencial do jogo à tiradas hilárias da filosofal atmosfera de uma arquibancada de cimento quente.
Hélio Câmara irmanava alvinegros e rubros na explosão de um clássico em narrativa a transformar a peleja em última e apocalíptica. Os dois , Marco Antônio e Hélio Câmara, amigos e companheiros de jornada do meu pai, Rubens Lemos, o “Comentarista de Classe”. Hoje, o gaúcho Marcos Lopes, honra a tradição dos antepassados.
O jeitão rococó e empolado da TV Tupi, com velhos remanescentes preocupados em exibir conhecimento de vocabulário sem vibração, me levava à idolatria do rádio.
Aqui e no Rio de Janeiro, sintonizador pulando entre a Nacional de José Carlos Araújo(o melhor de todos os tempos) e a Globo de Waldir Amaral e Jorge Coury.
O narrador sempre protagonizou vitórias amplificadas e impossíveis. No silêncio vazio e amargo das tardes perdidas no Castelão, quando o América vencia por 1×0, criava, na insônia do domingo para a segunda, bordões e jogadas fáceis de acontecer na imaginação maior que a sentença do clássico.
No quarto mais escuro de tristeza, desenhava como se minha fosse a latinha: ” Atenção, Danilo Menezes, Rei do Castelão, limpou um, fintou o segundo, lançou, falhou Argeu, entrou Noé Silva, atirou é gol!” O 1×1 se restringia ao meu silêncio e ao conforto sem efeito algum. O narrador dentro de mim significava a alegoria do carnaval particular perdido.
Luciano do Valle
Emoção nas transmissões de TV chegou com Luciano do Valle, estabelecendo o bom meio-termo entre a eletricidade fantasiosa de quem descreve para quem está em casa, refém angustiado e o ritmo tenso que parecia contagiar os times em campo.
O primeiro gol que vi narrado por ele foi de Roberto Dinamite batendo o pênalti decisivo para o título carioca do Vasco em 1977. Vascaíno sobrevive do que já passou, do que é memória, nostalgia.
Me ganhou em outro grito de legitima verdade – relação que deve prevalecer entre o locutor e o ouvinte ou telespectador. O gol de Rivelino aos 44 minutos do segundo tempo, quase caindo, Ex-Maracanã lotado, no empate em 1×1 contra a poderosa Alemanha Ocidental campeã mundial na época.
Em 1977, estava selada a minha fidelidade a Luciano do Valle. Enquanto seus colegas se esgoelavam narrando o gol de Basílio, libertador dos 23 anos sem título do Corinthians no Campeonato Paulista, ele transmitia profissionalmente com a alma doída. Torcia com fanatismo fora do microfone pela Ponte Preta e cumpriu sua missão com voz grave.
Hoje a melhor diversão dos homens em paz reclusa(opcional e prudente) é ficar em casa. Refugiados por tédio, Covid e violência.O futebol se vê no Led da tela do aparelho moderno, o esporte se multiplica por canais inteiros, repetitivos e salgados no preço.
Nos anos 1980, Luciano do Valle nos oferecia tudo desse jeito e de graça. Claro, jogos do Brasileirão eram raros. Fartos para nós, adolescentes da escala distante dos deslumbramentos, por opção e circustâncias, sempre foram os shows dominicais. O boxe virou rotina com o caricato Maguila e o ótimo Tomaz da Cruz, o basquete encantava com Hortência e “Magic” Paula, Oscar e Marcel.
O voleibol da geração de prata, Renan, Bernard, Montanaro e o suspiro de nossas recatadas namoradinhas, fãs de Paulo Ricardo e do RPM . Sinuca virou febre. Saiu dos botequins para as telinhas. Rui Chapéu tornou-se ídolo, surrado por Cabra Gordo de Ceará-Mirim, caboclo canavial, ao vivo, no ginásio da Escola Doméstica, rua em que nasci, cresci e mandaria ladrilhar se fosse minha. Em Natal.
Os masters de Rivelino, Edu, Marco Antônio, Cafuringa, Djalma Dias, a arte ensinada como programa educacional de futebol, Norte a Sul. No Castelão fantasma, eles sofreram aos pés de Hélcio Jacaré, ídolo do América e do Deus adotado potiguarano Alberi. Foi 2×0 injusto, domingo revivido em colagens de paciência.
Luciano do Valle, porta-voz do timaço brasileiro de 1982. A cabeçada de Oscar, defendida na linha do gol pelo italiano Zoff. O grito que a ele faltou. Explosão represada. Garganta representando milhões de esperanças perdidas.
Nem o pênalti perdido por Baggio em 1994 compensou.
Talvez os dribles encantados de Zico em 1986 no Arruda, um, dois, três cartas humanas de baralho caindo até o toque sensual na perfeição contra a Iugoslávia, resumam o que a minha geração repete, inconformada, no clichê inútil : “Não há palavras para descrever! “
Luciano do Valle viveu de sangue nas veias e morreu(19/04/14), de coração costurado em gomo e quatro linhas coronarianas. Nunca haverá palavras definitivas para ele. Nem para Marco Antônio. Ou Hélio Câmara. O Super.
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