DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS BOLEIROS
por Pedro Motta Gueiros
Marcado por uma linha, dois chinelos ou três paus, a meta de todo boleiro é um portal que eternize seus melhores momentos. Mas, atenção; por questão de segurança, a sua entrada depende da identificação das palavras a seguir: caneta, lençol, chapéu, tesoura, carretilha, filó, chaleira e… vá lá, rolinho, só para os paulistas.
Antes de qualquer interpretação lúdica, quem pensou em mercadoria já teve o acesso negado. Os entusiastas da objetividade, crentes na verdade absoluta dos números, que sigam o mesmo caminho. Todos ao shopping! Os demais receberão, a seguir, as orientações para frequentar e sustentar uma construção permanente, com arcos monumentais, goleiros alados e matadores divinos. Sua existência depende daqueles que usam a paixão do torcedor e a criatividade dos craques para transformar objetos prosaicos, como caneta, lençol e balão, em marcas de um futebol de fantasia. Bem-vindos ao Museu da Pelada!
Num tempo em que bola na rede é futebol pela internet, com mais atenção à tática do que ao homem, a palavra chave para se reestabelecer a velha conexão pode ser nostalgia ou romantismo. Para evitar entradas maldosas, a senha é irreverência. A julgar que a capacidade de destruir é maior do que a criatividade, haverá sempre uma linha de brucutus para reduzir as boas lembranças a saudosismo e amargura. Quando o choque parece inevitável, resta a opção do drible, que deixa o pragmatismo no chão. Se a hegemonia já não se faz presente, o passe no ponto futuro aponta para uma volta ao passado.
Em todos os tempos, saudade é o amor que fica apesar das perdas acumuladas no período. Capazes de deixar os visitantes boquiabertos diante de suas linhas monumentais, o Maracanã e o futebol brasileiro se apequenaram pela submissão ao padrão que vem de fora. O Mineirão teve suas estruturas definitivamente abaladas por sete tremores naquela tarde em que a Ilusão do hexa se espatifou contra o muro alemão. O fim anuncia o eterno recomeço. Do barro viestes e ao barro voltará. A pelada é o mito original do futebol brasileiro.
Alguns acreditam que tenha nascido em Portugal, na identificação do piso, onde a bola rola sobre a relva rala. Para outros, resulta do atrito do couro com a terra nua, o que deixa a bola igualmente despida. Palavra de origem controversa, pelada merece um fórum permanente. Mais ainda, um museu que é virtual, não apenas pelo seu caráter digital, mas pela possibilidade de vir a ser um ponto de encontro físico, e técnico, entre e o amadorismo e o alto desempenho. Em meio à crise de identidade, um museu guarda os valores mais preciosos de uma sociedade. Não se trata de deboche ou heresia diante do formalismo que se exige nos palácios das artes. Sua exposição tampouco deve ser reduzida a uma manifestação primitiva, que se contrapõe à produção acadêmica. Em todos os sentidos, pelada também é cultura!
A começar pelo desenho da bola, em que a combinação de hexágonos e pentágonos determina o número de gomos, a geometria faz parte da formação de um peladeiro. Os mais graduados dominam a ciência exata da trivela, a visão espacial e a relação tempo/espaço. Pelada também exige conhecimento de meteorologia. Não que a chuva acabe com a brincadeira, mas é sempre melhor que a água caia depois que o jogo e o sangue já tenham esquentado. Os fundamentos da geologia se tornaram obsoletos com o advento da grama sintética. Até então, era preciso conhecer o tipo do solo, o tempo de absorção da água e a natureza jurídica daquelas terras. Em unidades militares, clubes ou sítios administrados com rigidez, qualquer precipitação na noite anterior já era uma tormenta. Junto com a água na lateral do campo, quantas ilusões escorreram na vala comum de uma pelada cancelada pela chuva? Com a grama sintética, o barro foi coberto pela aparência da perfeição.
Se na terra batida o jogador desliza e a bola trava, no piso emborrachado as relações se invertem. O tapete estendido aos peladeiros, em sinal de reverência e nobreza, é também uma forma de ocultar suas raízes. O período glorioso do futebol brasileiro, entre 1958 e 1970, coincide com o desenvolvimento de um país que deixava espaços vazios para a brincadeira e o improviso na transição entre campo e a cidade. O jeito de jogar refletia uma maneira de viver tipicamente brasileira. As sociedades industriais e pragmáticas, que não conheciam nem uma coisa nem a outra, entravam na roda, dançavam e ainda batiam palmas. Ao botar o futebol na balança, a rota do comércio internacional começou pelo fim. Primeiro, o Brasil levava ao mundo seu produto beneficiado, com longas excursões de seus times e seleções. Depois, passou a mandar apenas a matéria prima, bruta, e cada vez mais verde. Com a exportação progressiva e prematura, a terra nua, pelada, já não produz safras como aquelas que fizeram o torcedor propor o brinde e levantar a taça.
Com a evolução dos transportes e das comunicações, o mundo ficou pequeno. Num clique, é possível reproduzir a música, o comportamento e o esquema tático adotados em qualquer parte. Se a natureza de cada cultura já não basta para produzir futebol de excelência, o caminho mais curto para o gol vem da repetição dos processos de formação e treinamento. Explorado por cartolas e governantes como o esporte da política, o futebol agora exige uma política esportiva. Na dificuldade de refazer as estruturas, restam as obras de fachada, como um alambrado, refletores novos e o tapete verde para esconder a terra arrasada. O reflorestamento leva mais tempo e exige que se recupere o contato com as raízes. A pelada é princípio meio e fim desse processo, a julgar que todo jogador acaba voltando ao lugar de origem. Alguns esperam as férias para jogar pelada. Outros conseguem manter a paixão paralela à atividade profissional. Misturam as leis da educação física à filosofia de botequim para que um só corpo esteja em dois lugares ao mesmo tempo.
Deixar a noiva nas cobertas e partir para a pelada não oferece risco ao matrimônio. A fidelidade, antes de tudo à pelada, impede que o futebol entre amigos seja deixado para depois. No meio de um tiroteio, um policial ligou para botar seu nome na lista para o primeiro jogo daquela noite. Estas e outras aberrações, que não surpreendem aqueles que amam demais, foram tema, durante quase cinco anos, da coluna “A Pelada Como Ela É”, nas páginas de O Globo. O espaço limitado da publicação impressa remete à formação do futsal. Com a técnica aprimorada, e muitas conquistas no período, veio a necessidade de ampliar os domínios, atravessar o portal e chegar ao museu.
Para além da paródia rodrigueana, “A Pelada Como Ela É” é objeto de interesse das ciências humanas. O traço de comportamento comum, entre pessoas tão heterogêneas, leva o futebol para o campo da antropologia. Além do banco de reservas, lugar de teórico é no grande círculo, onde o debate e as celebrações ocorrem. Do Egito antigo aos povos das Américas o homem se vale de narrativas diferentes para contar as mesmas histórias. O fenômeno se repete nas peladas, em que o culto aos mitos e lendas serve para manter a coesão da tribo. Diante do mistério infinito, a esperança de salvação até o último minuto reforça a importância do herói.
A afirmação sincera “de que ninguém jogou tanto quanto fulano”, chama mais atenção pela banalidade do que pela qualidade do jogador. Em toda pelada, o melhor jogador do seu mundo é igual aos craques do mundo todo. A província e o cosmos se encontram na trajetória esportiva de Pelé, entre Bauru e Nova York. Para além da figura do rei, os arquétipos da pelada são bem conhecidos. Suas múltiplas faces formam uma só identidade. Peladeiro é aquele que vai a um jardim e se admira com a grama em vez de olhar para as flores. Quando visita um museu, sua imaginação desenha um gol entre as colunas. Numa igreja, vê a abóboda como cobertura para uma quadra de futsal dos deuses. Aqueles que não viajam para tão longe, conseguem se transportar por meio de uma caixa de sapatos, onde guardam fatos e fotos para a vida toda. Todo peladeiro é igual em suas diferenças
Embora o craque seja o mais reverenciado, a alma da pelada está no jogador limitado, que guarda posição e expõe suas vergonhas para que os demais se divirtam. Tem o jogador oportunista, que só liga para pedir carona. Tem o jogador de açúcar, que se derrete e faz doce para jogar sob chuva. Tem o jogador ostentação, que só chama atenção pelo material novo. Tem o malabarista palhaço, que aplica dribles desconcertantes e desiste da jogada para rir de sua vítima. Tem o que bagunça a defesa adversária e aquele que causa confusão no próprio time. Tem briga, muita briga; e um código de ética, gravado na pedra fundamental das peladas, para impedir que se carregue pela vida aquilo que ficou dentro de campo.
Essa linha já era bem marcada mesmo quando a cal se misturava à terra batida. Com a evolução dos materiais em detrimento dos recursos humanos, ficou mais difícil separar o romantismo da alta performance. Num momento em que o futebol profissional no Brasil remete a uma grande pelada, o museu anuncia o seu renascimento.
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