por Sergio Pugliese
Numa conversa com amigos psicólogos comentei sobre a criação do Museu da Pelada, esse site que, humildemente, se propõe a eternizar histórias bacanas de boleiros. Nunca imaginei que a notícia desencadearia uma sessão de análise em plena mesa de bar.
– Interessante essa iniciativa! Até me animo em escrever um artigo propondo uma discussão epistemológica para o estudo do futebol como objeto científico – dissertou Paulinho Assef ou Dr. Assef para os “analisados”.
Achei o comentário denso e, não tendo cultura suficiente para debater o tema, pedi um pastel de angu. Mas Julinho Bandeira, colega de profissão de Assef, não fugiu ao debate.
– O Museu desperta os sentimentos de afetividade e paixão, como enredo para o entendimento do futebol para além do racional e pragmático.
Isso deve ter sido lindo, pensei, mas sem universitários por perto recorri ao garçom.
– Mais uma gelada!!!!
O papo se aprofundava, intenso, recheado de psicologês. Mas meu radar captou um termo que sempre adorei ouvir: memória afetiva. Não saberia explicá-lo tecnicamente. Certamente os meus amigos cabeçudos clareariam meus pensamentos, mas, mergulhei, solitário, numa sessão de regressão etílica e me lembrei do Capri, meu primeiro campinho de futebol e onde vivi, sem qualquer sombra de dúvida, alguns dos melhores dias de minha vida. Exagero? Não, certeza!!!!
– Posso elaborar esse artigo, Pugliese? – perguntou Assef, como se eu estivesse a seu lado, deitado num divã.
O Capri merecia bem mais do que um artigo. Deveria ter sido tombado pelo Patrimônio Histórico. Era a memória afetiva de um bairro! Memória afetiva, adoro falar isso!!!! Quando entrei no Capri pela primeira vez senti uma emoção muito, mas muito, mas muito maior do que em minha estreia no Maracanã para assistir Vasco x Portuguesa. O campinho ficava, na Murtinho Nobre, em Santa Teresa, nos fundos do colégio Machado de Assis, onde estudava. Não fazia ideia de sua existência até, um dia, vários garotos entrarem correndo no pátio da escola para resgatar uma bola que caíra na área da cantina. A partir daí, eu, Luís Antônio, Paulo Roberto, Carlos Gordo, Mauro, Zezinho & Cia elegemos o Capri como nossa segunda casa. Cresci ali! Na mesa, o debate prosseguia:
– Fatores chamados não-cognitivos influenciam no desempenho da memória de maneira significativa – ensinava Julinho.
Talvez minha memória seja seletiva porque só me lembro de momentos especiais, pelo menos os vividos no Capri. Na rua do campo, moravam dois cracaços, Orlando Bomba e Edu Tostão. Ficar sentado, sob as árvores vendo jogá-los era uma dádiva. Ali, vi os caras que conquistaram o primeiro título do Aterro, em 66, Hugo Aloy e Rony, deitarem e rolarem. Quantos tênis o explosivo Rony arremessou no telhado do Machado de Assis!!!! E Porquinho, o artilheiro Duílio, o trio Roberson, Flávio e Ruy? Seu Djalma marcando o tempo e vendo o filho Márcio encher Cesar de gols. Meu irmão Bruno, o Diabo Louro, espanando, na zaga, e meus amigos da vida toda Guará, Wilsinho e os saudosos Vitinho, Adãozinho e a pontinha Mônica Villaça. Será que isso é memória afetiva? Na verdade, o Capri foi parte da memória afetiva de um bairro inteiro.
– Você lembra de seu primeiro campo, Pugli? – perguntou Assef.
Ah, como lembro, pensei!!!! Quando anunciaram que na semana seguinte o Capri seria interditado para a construção de uma praça, anexa ao Parque das Ruínas, a resenha virou uma terapia coletiva. Aquele campo tinha um valor social além da conta!!! Vi amigos chorando e, claro, desabei também. Percebi, talvez, pela primeira vez, que a relação entre o homem e a bola ia muito além da imaginação. Talvez naquela situação se encaixasse a frase atualíssima do Assef: “entendimento do futebol para além do racional e pragmático”. Deve ser isso. Só sei que ontem fui ao Parque das Ruínas para ver a exposição do parceiro Cosme Martins. Tantos anos sem ir lá, uns 35 talvez. Encontro Guará e Wilsinho!!!! Caraca, memória afetiva perde!!!! Mas é isso, memória afetiva é um armazenamento de sensações sedimentadas, que explodem, brotam, ganham vida própria quando, por exemplo, encontramos o Guará e o Wilsinho!!! E do alto do Parque das Ruínas, coração disparado, os três olhando para o que um dia foi o Capri, Guará, conservando a pureza juvenil, abre a porteira das emoções com uma pergunta objetiva, curta, no fígado da memória: “Lembra?”.
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