É bem provável que jamais apareça um lateral-direito como Leandro no Flamengo. Foi estupendo, um ídolo. Neste sábado, 17, o craque faz anos. Nas linhas abaixo, uma crônica sobre a trajetória do Leandro.
por André Felipe de Lima
— Olhe, primo, acho que você não vem treinar no Flamengo porque tem medo.
— Medo?! — indagou, contrariado, o outro primo, que completou a resposta com uma altivez comum aos que nasceram para brilhar:
— Se você for lá comigo perguntar a hora e o local do treino, venho hoje mesmo.
O garoto não se intimidou. Entrou no clube, com o primo a tiracolo, e realizou o primeiro treino com a camisa que jamais deixaria de vestir ao longo da carreira. O menino, hoje um ídolo inquestionável, chama-se José Leandro de Souza Ferreira e se tornaria uma espécie de Nilton Santos rubro-negro. Tanto ele quanto o “Enciclopédia” do Botafogo jamais vestiram outra camisa que não fosse a do clube do coração. No peito de Leandro bate o escudo do Flamengo, no de Nilton Santos, o do Botafogo. Nenhum outro brasão rouba-lhes o amor.
Foi assim, em 1977, com essa compreensível empáfia juvenil, que Leandro ingressou no clube da Gávea para tornar-se o melhor lateral-direito da história do Flamengo, superando na mesma posição outro “imortal” rubro-negro, o grande Biguá, mítico craque dos anos de 1940 e de 50.
Neste sábado, dia 17, Leandro, um dos mais extraordinários jogadores que o futebol brasileiro já produziu, comemora mais um ano de vida.
Escrevo sobre Leandro porque o que vi jogar e posso afirmar sem pestanejar, meus amigos: era um assombro com a bola nos pés. Polivalente, jogava na lateral, na zaga, no meio-campo e até mesmo no ataque, lá na ponta-esquerda, se assim preciso fosse. Era um jogador completo. Verdadeiramente incomparável. Fez parte da maior geração de craques que o Flamengo já teve, com Zico, Adílio, Júnior, Andrade, Tita, Mozer, Marinho, Lico, Raul, Nunes. Um timaço campeão mundial em 1981. Um time que mais se parecia com uma galeria de arte. Cada craque, uma genuína obra-prima. Naquele mesmo ano, o das maiores glórias do Flamengo em todos os tempos, Leandro declarou: “Até hoje ainda sou um torcedor. Não me importo com o número, com a posição. Minha alegria é entrar e sentir a força dessa torcida”.
O que faziam aquelas pernas arqueadas, meus amigos, era algo fora do comum. Leandro driblava com estilo, técnica, maestria. Sim, Leandro foi um esteta da bola. Uma espécie rara de se ver nos gramados de hoje em dia. Sejam os daqui como os lá de fora. Na arquibancada, em jogos do Flamengo contra seus principais rivais, era comum ouvir o seguinte quando Leandro tocava na bola: “Vai jogar bem assim lá no cacete!”. Eu mesmo ouvi isso várias vezes no Maracanã ou em um bar debatendo sobre a rodada do fim de semana.
Leandro parecia deslizar sobre a grama tal a capacidade que ostentava para dominar a bola com os dois pés. Um ambidestro que Zico (sim, o Zico, um dos seus mais ardorosos fãs) definia como fora de série. Olhá-lo com a pelota de pé em pé nos iludia. Vê-lo jogar bola fazia com que acreditássemos ser o futebol a coisa mais fácil de fazer no mundo. Bola e Leandro eram, definitivamente, irmãos siameses, simplesmente indissociáveis.
Quando Leandro estreou pelos profissionais do Flamengo, em fevereiro de 1979, não imaginava que chegaria ao topo tão rapidamente e de forma fulgurante a ponto de muitos (este jornalista, inclusive) achá-lo o “melhor lateral-direito” da história do futebol brasileiro. Superior, sobretudo, a dois monstros sagrados da posição: Djalma Santos e Carlos Alberto Torres, que conquistaram, contudo, o que ele jamais conquistou: Copa do Mundo. Será que os dois “cobras” eram tão (ou mais) completos que Leandro? A polêmica é a alma da paixão futebolística. Solte-se, portanto, no ar o saudável debate.
O caminho de Leandro a partir de 1979 não foi moleza. Além de disputar a posição com Toninho, sofrera com várias contusões em 1980, ano do primeiro título nacional do Flamengo. No seguinte, durante o carnaval, seu Puma capotou, e por muito pouco não o matou. Mas as suas inconfundíveis pernas arqueadas, que tantas alegrias proporcionaram, pareciam ser as algozes do craque.
Pernas que representavam um manancial de felicidade pareciam escravizá-lo. Por causa delas (ou das dores que elas provocavam), Leandro por pouco não teve o passe negociado ao Internacional de Porto Alegre, em 1980. O negócio só não foi concretizado porque os médicos do clube gaúcho alegaram que Leandro sofria de uma calcificação incurável no joelho, uma sequela de uma operação de meniscos. Vaticinaram os “doutores” do Beira-Rio: “Esse aí vai ter vida curta no futebol”. Erraram, e feio, para a sorte do Flamengo.
Embora com muito futebol para dar e vender, Leandro sofria dores homéricas. Sempre as sentiu. Desde que começara no Flamengo. Disputou a Copa do Mundo de 1982, jogando naquela que está entre as quatro maiores Seleções Brasileiras da história, ao lado das de 1950, de 58 e de 70. Como nós todos, sofreu com a derrota para os italianos, mas também sofreu com as dores nos joelhos, das quais jamais se livrou. Não me recordo de um jogador de futebol sofrer longos e tortuosos anos com dor. O pior dos convívios, diria. Reinaldo, do Atlético Mineiro, talvez sejam um exemplo igual ao do Leandro. Mas, mesmo assim, não é comum.
Na Copa seguinte, em 1986, Leandro pediu ao treinador Telê Santana para jogar na zaga. Os joelhos já não mais aguentavam. O tal “Mal de Cowboy” estava liquidando-o. O futebol de Leandro estava lamentavelmente acabando. “Cada partida que Leandro disputa é uma obra de arte do departamento médico do Flamengo”, dizia Giuseppe Taranto, médico do clube em 1987. Segundo Taranto, só havia, segundo os conceitos da Ortopedia da época, duas maneiras para corrigir pernas arqueadas como as de Leandro: a primeira opção seria entre dois e cinco anos, ou seja, usar gesso ou dormir com aparelho ortopédico nesta faixa etária; o segundo recurso, bem mais penoso, consistiria em, até os dez anos, submeter-se a uma cirurgia que quebraria as pernas e as engessaria para corrigi-las. Leandro perdera as duas possibilidades. Talvez, não tenha se arrependido de perdê-las.
Em 1983, o craque dava sinais de que o esgotamento físico também o atingira mentalmente. Leandro dizia em entrevistas que desejava abandonar a carreira em 1986, logo o ano da Copa. Nem chegaria, portanto, aos 30 anos.
A vida pessoal vinha sendo inadvertidamente invadida por parte da imprensa. Prato cheio para torcedores de clubes rivais, que o perseguiam insistentemente, com gritos e até faixas ofensivas contra a honra de Leandro. Isso o deixava muito triste.
Após um jogo contra o Bangu, vencido pelo Flamengo, no final de 1983, torcedores do alvirrubro suburbano xingaram Leandro, que, no vestiário, apenas chorou. Afinal, era um ídolo do futebol nacional e não apenas do Flamengo. O mínimo que exigia dos torcedores era respeito.
Famoso, bom de bola e boa pinta, Leandro despertava a inveja alheia com muita facilidade e o suspiro de muitas moças de boas (e famosas) famílias. Neuzinha Brizola, por exemplo, filha do político Leonel Brizola, foi mais famosa pelo estilo, digamos, extrovertido que propriamente por ser filha do ex-governador do Rio. Foi ela também uma “fã” do Leandro a ponto de falar publicamente que esperava um filho dele. As filhas de políticos pareciam se alvoroçar por ele. Andréa Neves, irmã de Aécio Neves e, portanto, neta do ex-presidente Tancredo, foi outra figura pública que teve, em 1985, o nome proximamente associado ao do ídolo rubro-negro. Tornou-se corriqueiro falarem bem ou mal do Leandro, que era uma figura para lá de popular. Especulação com o seu nome era um dos esportes preferidos nos tempos em que brilhou com a camisa do Flamengo. Da arquibancada ou das páginas dos jornais, forjou-se o impoluto ídolo, mas poucos quiseram compreender ou mesmo conhecer o homem Leandro e, sobretudo, os ditames que o guiava em meio ao turbilhão do sucesso.
Semanas antes de a Copa do Mundo de 1986 começar no México, Leandro e Renato Gaúcho tomaram um chá de sumiço e voltaram de madrugada para a concentração da Seleção. Estavam em uma discoteca. O técnico Telê Santana, por mais que gostasse dos dois, não teve escolha e os cortou do escrete. Cortaria (é verdade…) apenas Renato, mas Leandro, demonstrando um senso de solidariedade e justiça, pediu a Telê que o cortasse também. Telê resistiu, afinal era fã incondicional de Leandro, como jogador e, sobretudo, como um homem com caráter irrepreensível.
Telê admirava o espírito amigo que Leandro sempre externou aos companheiros. Fosse no Flamengo ou na Seleção, o craque, embora muito tímido, era bacana com todos. Tele se preocupava com ele como se fosse seu próprio filho, mas não abria mão de tê-lo, como na Copa de 82, na lateral-direita. Mas Leandro não queria mais jogar ali por conta das intensas dores no joelho, especialmente o da perna direita. Preferia manter-se na zaga, na qual o jogo era mais lento e menos penoso para suas combalidas pernas. Introvertido, Leandro raramente (ou nunca, segundo a imprensa) tocava no assunto com Telê. Sem o diálogo, preferiu deixar a Seleção. “Não estávamos de porre, embora houvéssemos bebido. Se o corte era necessário, os dois deveriam ter sido cortados”, ponderara Leandro em uma das diversas entrevistas que concedeu após o episódio com Renato.
Bem antes de Telê saber, o desejo de Leandro em não mais ser lateral foi dito, em primeira mão, ao repórter Ronaldo Castro, que trabalhava na Rádio Tupi: “Não estou resistindo jogar na lateral. Já não tenho pique suficiente para ir e vir, meu joelho dói muito e não aguenta o esforço dos treinos físicos. Não posso ser lateral. Acho que vou embora porque Telê não me aceitará como zagueiro-central.”
Na noite do dia 8 de maio de 1986, Leandro estava devidamente vestido com o uniforme formal da CBF e com as malas prontas para viajar com a delegação da Seleção rumo à Toluca, no México. Na porta do apartamento em que morava com o primo Raimundo Nonato, que era contabilista da Varig, e o amigo José Marcos, o “Babau”, que era dono de uma loja de fotocópias, virou-se para Nonato e o amigo Vaguinho, presente no local, e exclamou: “Não vou mais!”. Vaguinho, sem entender patavina do que dissera o jogador, questionou: “Não vai para onde, Leandro?”. O craque foi pontual: “Para o México”.
Zico e Júnior, que já estavam no aeroporto, foram ao encontro de Leandro levados por um atônito Nonato. Zico argumentara com Leandro que ele próprio também representava uma inquietante incerteza na Copa. Estava mal fisicamente, mas que mesmo assim desejava estar no México. Leandro não coadunou com a tese do Zico. Os dois teriam se emocionado durante a conversa, mas Leandro mostrava-se inflexível. “Respeitem a minha decisão. Não posso ser lateral, não suportei o que foi feito com Renato e não me sinto em condições de falar com Telê”. Júnior esboçou uma última tentativa para que Leandro mudasse de opinião: “E seus companheiros de 1982? Temos tudo para conquistar a Copa, mas sem você fica bem mais difícil”. Não houve discurso que fizesse Leandro mudar de ideia. Naquela noite, o vôo 1046 da Varig decolaria com uma poltrona vazia.
Que pena Leandro não ter conversado abertamente com Telê sobre a possibilidade de jogar como beque na Copa de 86. Pena, sim, porque, caso ambos, ele e Renato, estivessem no México, o Brasil dificilmente deixaria de ir, pelo menos, à final.
Ao saudoso Tim Lopes e a José Antônio Gerheim, ambos, na ocasião, repórteres da revista Placar, Leandro desabafou: “Olha, sou muito fechado. Sofro, guardo tudo para mim, mas tem uma hora que não dá para segurar. Fui o culpado pelo que aconteceu naquele dia em que chegamos de madrugada à Toca da Raposa. Havíamos saído e, num determinado momento, Renato queria ir embora. Eu insisti para que ficássemos. Quando chegamos na Toca, havia três guardinha na porta e entramos. Ninguém pulou o muro, nem nada, ao contrário do que disseram. E evidentemente senti muito o corte de Renato. Senti e fiquei magoado com Telê.”
O episódio com Telê seria superado anos depois, com os dois, inclusive, trabalhando juntos novamente, no Flamengo. “Criado na Gávea, Leandro desenvolveu uma técnica refinada e, mesmo mudando de posição por questões físicas, marcou sua passagem pelo Flamengo como um dos grandes craques que passaram pelo clube”, assim declarou Flávio Costa, outro grande treinador da história do futebol brasileiro, em junho de 1989, quando Leandro se preparava para retornar ao time após mais uma penosa recuperação cirúrgica em um dos joelhos.
Leandro, o herdeiro de Biguá e muito superior a Jadir, Toninho ou Léo Moura, outros que trilharam (com maestria) a lateral-direita rubro-negra, foi excepcional. Sequer recordo de alguma pixotada em campo protagonizada por ele. Talvez a única falha gritante de Leandro foi, como o próprio confessou em entrevistas, um gol contra, na final do Campeonato Carioca de juvenis, em 1978. Mas o que representa um gol contra diante de tudo o que Leandro fez em campo e o representa para a memória do futebol nacional?
Leandro sempre soube o que fazer com uma bola de futebol. Por isso, raramente errava: “Fui um moleque fissurado em bola. Joguei até de pé gessado em peladas. Quando não tinha com quem brincar, ficava treinando na parede, aprendendo a matar no peito, dominar. E joguei oito anos de futebol de salão, em Cabo Frio (no litoral do Estado do Rio, para onde foi morar com apenas um mês de idade). Isso tinha de funcionar”. Ora, e como funcionou!
Devemos agradecer, porém, ao modesto clube Tamoio, de Cabo Frio, por revelar o gênio Leandro, o querido “Peixe-frito”, como o chamava o locutor Waldyr Amaral. Agradecer por apresentar ao futebol o Leandrinho da dona Cleuza e do rubro-negro Elisário. O Leandro, ídolo eterno da torcida do Mengão. Leandro… o esteta da bola.
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