por André Felipe de Lima
Iniciamos ontem uma série sobre samba e futebol. Hoje, 25, damos sequência a esta viagem musical falando do personagem (ao lado de Pelé, naturalmente) mais eloqüente da história do futebol brasileiro: Garrincha.
Muitos sabem que Garrincha teve compostos em sua homenagem algumas belas letras da MPB, como a emocionante “Balada número sete”, assinada por Alberto Luiz, em 1971, na voz de Moacyr Franco. Não se trata de um samba, mas a letra é verdadeiramente comovente e traduz com fidelidade a trajetória de Garrincha até aquele ano.
Mas o papo aqui é sobre samba, e o samba entrou em definitivo na vida de Garrincha graças a Elza Soares, imediatamente após se conhecerem, em 1962, pouco antes da Copa do Mundo, no Chile, na qual Garrincha “ganharia sozinho”, como muitos dizem, a disputa pelo caneco. O início do relacionamento com Elza promoveu uma reviravolta na vida de Mané, que, socialmente mais refinado, passou a freqüentar rodas de samba e até montou, com ela, um bar, que não deu certo. Mané arriscou-se, inclusive, como compositor e escreveu duas letras de samba para a voz de Elza Soares: “Receita de balanço” e “Pé redondo”.
O saudoso repórter Mário de Moraes — o primeiro vencedor da história do também saudoso e inesquecível Prêmio Esso de Jornalismo — registrou (na revista O Cruzeiro, de julho de 1962) o “ingresso” de Garrincha no mundo do samba:
“Mané Garrincha, que sambou como quis frente a “João” de toda ordem, e balançou muita rede internacional com seus chutes de endereço certo, volta ao cartaz numa nova faceta, bem diferente da que o fez famoso. Garrincha, agora, fará os outros sambarem, dando receita para balanço. Não é conselho para furar arco adversário, mas forma acertada de cair no mais autêntico samba brasileiro. Porque Mané virou sambista. E, na base do teleco-teco, lançou seu primeiro sucesso, que tem como título ‘Receita de Balanço’. E, com intérprete, Elza Soares, a bossa em pessoa.
“Há dias Elza Soares preparava, na cozinha da sua bonita casa da Ilha do Governador, um bem temperado feijão, quando ouviu o ritmado assovio. O samba não era conhecido. O assobiador, sim. Mané Garrincha surgiu, e com ele o diálogo:
“— Onde aprendeu esse samba, Neném?
— Não aprendi, Crioula. É meu.
— Seu? E tu é sambista?
— Não sou, mas dou meus assobios.
“A música era gostosa. Faltava a letra. Ali mesmo, entre pratos e panelas, Mané Garrincha preparou a primeira parte. Depois do almoço, saiu a segunda. Elza deu uns retoques, e veio o batismo: “Receita de Balanço”.
“— Vou gravar esse samba, Neném.
— Deixa pra lá, Crioula.
— Mas, ele é muito bonito.
— Então, é todo seu.”
A reportagem de Mário de Moraes também destacou o interesse imediato da Odeon, que imediatamente agendou a gravação do samba semanas depois de ouvi-lo. “Receita de Balanço” integrou um disco vinil compacto com mais três sambas. “O morro”, “Bossambando” e “Na roda do samba”. Garrincha formou a lista de compositores do pequeno álbum com gente bamba. Além do Mané, estavam lá, no vinil, músicas assinadas por Carlinhos Lyra, Helton Menezes e Orlandivo, que, lamentavelmente, morreu neste ano.
OUÇA AQUI “PÉ REDONDO”: http://www.musicasamba.com/elza-soares/um-show-de-elza/pe-redondo-garrincha/
Antes da sensacional, épica, cinematográfica e dançante história de amor de Garrincha e Elza Soares, Mané manteve, em 1958, um flerte acalorado com uma das mais destacadas vedetes brasileiras do teatro rebolado: Angelita Martinez, que foi filha de outro ídolo do futebol brasileiro, o zagueiro Barthô, que brilhou na já extinta A.A.São Bento (sendo campeão paulista em 1925) e no antigo C.A.Paulistano, com o qual conquistou vários títulos e no qual jogou ao lado de Friedenreich e Filó Guarisi.
Angelita, destaca Ruy Castro na excepcional biografia “Estrela solitária — Um brasileiro chamado Garrincha” (Companhia das Letras/ 1995), chegou a manter um relacionamento com o ex-zagueiro Pavão, do Flamengo, e outro bem mais rumoroso e turbulento com o ex-presidente João Goulart, que parou inclusive nas páginas policiais. Mas com Mané foi mais tranqüilo e célere.
Em 1958, o genial (e inveterado rubro-negro) Wilson Baptista compôs, em parceria com o bicheiro Jorge de Castro e Nóbrega de Macedo, a marchinha “Mané Garrincha”. Escalaram Angelita Martinez para dar voz à canção. Preocupados em fazer da marcha sucesso no Carnaval de 1959, encontraram como estratégia uma visita surpresa de Angelita a General Severiano, em pleno treino da moçada do Botafogo. Ela, obviamente, sedutoramente vestida com a camisa alvinegra. Somente isso e as fotos publicadas pela imprensa de Garrincha ao lado dela poderiam — acreditavam os sambistas — emplacar a marcha.
No campo do Botafogo Angelita reinou naquela tarde. Posou ao lado de Mané para os flashs e um gabola Garrincha virava-se para os companheiro a dizer: “Vocês são uns trouxas. O degas aqui está com tudo.”
Ruy Castro escreveu que naquele mesmo dia Garrincha e Angelita iniciaram um caso. Àquela altura, Garrincha morava, no Rio, com Iraci, a rival de Nair – a primeira esposa de Mané —, que morava em Pau Grande com a filharada do casal.
Para tentar despistar Iraci, dizia: “Amor, hoje não vou poder ficar. A Angelita vai ensaiar a minha música e quer que eu escute” ou “Amor, estou chispado. Tenho de ir com Angelita num baile em que ela vai cantar a minha música”. E a música foi mesmo longe.
A letra da marchinha diz: “Mané, Mané /Até hoje meu peito se expande/ Mané que brilhou lá na Suécia/Mané que nasceu em Pau Grande”. Esta última frase era a mais efusiva nos shows de Angelita, quando a plateia, sarcasticamente, alterava a letra e cantava (em alto e bom som): “Mané que nasceu de pau grande”. Sobre isso, assim escreveu Ruy Castro: “Com toda a sua quilometragem masculina, [Angelita] nunca vira ninguém como ele. Garrincha devia ter em torno de 25 centímetros.”
A diretoria do Botafogo parecia não implicar com o relacionamento de Mané e Angelita, apenas João Saldanha torcia o nariz. A marchinha teve um sucesso tão efêmero quanto o caso dos dois amantes.
Como destaca o historiador da MPB, Renato Vivacqua, Garrincha foi, talvez, o jogador mais citado em sambas. O mesmo Jorge de Castro, com Luiz Wanderley, compôs “O feiticeiro da pelota”, cujo áudio, infelizmente, não conseguimos obter, mas vai lá a letra: “Olé, Olé, O feiticeiro da pelota é seu Mané/ Garrincha em Viña del Mar/ Fez a platéia vibrar/ O feiticeiro do mato/ Foi o herói do bi-campeonato.”
Mais recentemente, o ardoroso botafoguense Vinícius Cantuária fez singela e gostosa homenagem ao Botafogo, destacando na letra, claro, Mané Garrincha.
Garrincha foi assim, samba no gramado, samba na vida. Samba no destino. Um épico samba de todos nós.
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