FAUSTO, O ‘MARAVILHA NEGRA’ DO ENCANTADO E NÃO DE CODÓ
Pelo papel essencial no resgate da memória do futebol raiz brasileiro, escolhi o Museu da Pelada para revelar a verdadeira origem de um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos: Fausto dos Santos, que muitos acreditavam, até hoje, ter nascido em Codó, no Maranhão. Confira a verdadeira origem do maior ídolo da Era amadora do nosso futebol
por André Felipe de Lima
Há mais de 20 anos, desde que iniciei pesquisas jornalísticas sobre os maiores ídolos do futebol brasileiro, venho, dia a dia, obtendo resultados que exigem a reconstrução das biografias de grandes jogadores do passado, alterando dados considerados “oficiais”, sobretudo datas de nascimento e de morte; locais onde nasceram e morreram; enfim, uma penca de informações que precisará ser revista. Um destes ídolos cuja história revirei do avesso faz parte do primeiro volume de três da enciclopédia “Ídolos & Épocas – A Era amadora do futebol brasileiro, de 1900 a 1933”. Falo de Fausto dos Santos, que, ao lado de Friedenreich, pode ser considerado o maior craque brasileiro na fase do amadorismo.
Muito se escreveu sobre ele. Há, inclusive, duas biografias sobre Fausto contidas em duas obras monumentais da história do nosso futebol. A primeira, O negro no futebol brasileiro, tem como autor Mario Filho. Nela, um pouco da vida do Fausto é narrada pelo inigualável cronista, que empresta o nome ao estádio do Maracanã tamanha sua importância para o futebol brasileiro; a segunda, Gigantes do futebol brasileiro, impecavelmente escrita pelos mestres Marcos de Castro e João Máximo [que assina o texto sobre Fausto], apresenta, a meu ver, dados mais consistentes sobre a trajetória de Fausto dos Santos. Mas, enfim, qual a descoberta em torno de Fausto dos Santos, o “Maravilha Negra”, como chamavam os uruguaios após se encantarem com ele na Copa do Mundo de 1930?
Até hoje falam ou escrevem que Fausto teria nascido em Codó, no interior do Maranhão, sendo ele descrito como descendente direto de ex-escravos vindos do Daomé, essenciais para a identidade cultural naquele estado nordestino. Mas essa informação não corresponde à verdadeira origem de Fausto, que realmente nasceu no dia 28 de fevereiro de 1905, porém no Rio de Janeiro, e quem confirma a informação é Rosa Eulina Judice dos Santos, a mãe de Fausto, em depoimento ao jornal carioca A Batalha, na década de 1930.
Rosa nasceu em Campos, no Norte-Fluminense, onde muitos da família Judice já não existiam no começo do século XX. Era roça. A menina impetuosa quis deixar para trás a vida do campo para conhecer o mundo de cimento da cidade grande. Chegou ao Rio de Janeiro e logo se instalou no Encantado, bairro suburbano. Foi babá e cozinheira, mas também lavava e passava. Começou assim e terminaria do mesmo modo. Casou-se com o Manoel Faustino dos Santos, pai do Fausto e de Fernando, o mais velho dos dois meninos. Manoel também morava no Encantado, onde Rosa e ele se conheceram. Ou seja, a remota Codó jamais poderia fazer parte da vida de ambos. “Mas ele se foi cedo demais, como o filho, como o nosso Fausto, que só me pregou uma peça: a de morrer antes da hora”, disse Rosa ao jornal, cuja página perdeu-se no tempo e que conseguimos resgatar para o livro “Ídolos & Épocas” e que agora revelamos em primeira mão no Museu da Pelada.
Fausto mal conhecera o pai, que morreu na segunda metade de década de 1910. A informação de que o pai e a mãe dele se conheceram no Encantado é extremamente relevante porque traz à luz a verdadeira origem de um dos maiores gênios que o futebol brasileiro já teve. “Ao assistir as demonstrações de simpatia que o bondoso povo faz ao meu Fausto, eu já chorei sem saber por que chorava e senti um calafrio no dia em que o vi carregado pela multidão no estádio do Vasco da Gama. Quando meu filho nasceu em 28 de fevereiro de 1905, na casa número 14 da rua Fagundes Varela, no Encantado, eu jamais pensava que atingiria ele o grão de popularidade que hoje desfruta”. Bingo! Aqui a confirmação de Fausto era carioca, e da gema!
Logo após a morte de Manoel, Rosa e os dois filhos trocaram o Encantado pela antiga Aldeia Campista, região que hoje compreende áreas de Vila Isabel, Andaraí e Tijuca, na zona norte do Rio. Fausto cresceu ali. Tornou-se homem e passou a gostar do samba que exalava aquela região. Foi naquela época de rapaz nas ruas da velha Vila que se tornou fã do Noel Rosa. “Solfejava os sambas dele”, contava sempre a mãe coruja do Fausto. A recíproca era a mesma. Noel só gostava de futebol por causa do Fausto, como uma revista já extinta confirmou. Mas o menino trocaria as peladas das ruas da Aldeia Campista pelas pelejas da grama. As oficiais.
Fausto seguiu para o Bangu. O dinheiro que recebia não vinha do clube. Isso era extremamente proibido na era do amadorismo. Punia-se jogador e clube com o banimento do futebol caso rolasse salários. A grana dele vinha de um emprego que mantinha na fábrica de tecidos de Bangu. “No princípio trabalhou a sério, mas não durou muito na fábrica”, narrara Rosa.
Do Bangu foi para o Vasco, que abandonou durante uma excursão na Espanha após conquistar títulos e se tornar ídolo de várias torcidas. Assinara um contrato com o Barcelona na busca pelo salário gordo que no escravizante futebol brasileiro era uma ilusão. A doença começou a, impiedosamente, destroçá-lo, e aos poucos. Defendeu em alguns jogos um inexpressivo time suíço, o Young Fellows. Voltou ao Brasil para o Vasco, novamente. Não deu certo e foi para o Nacional de Montevidéu. Estremeceu-se por lá, com Atílio Narancio, presidente do clube uruguaio — igualmente ao que fizera com os cartolas vascaínos —,até que o Flamengo o acolheu. Mas Fausto já não era mais o “Maravilha Negra”. Cismou com o técnico húngaro Dori Kruschner e o presidente do clube, José Bastos Padilha. Perdeu todo o dinheiro que sobrara em uma refrega judicial com o Flamengo. A tuberculose também lhe roubou muito dinheiro antes de roubar-lhe a vida. O torturou durante anos. E Fausto, calado, sem fazer alarde desse sofrimento. Somente a mãe, a pobre Rosa, percebia a dor do filho.
Fausto morreu esquecido em um sanatório da antiga Palmira, atual Santos Dumond, no interior de Minas Gerais, no dia 28 de março de 1939.
A casa no Encantado, onde nasceu o grande ídolo, hoje se resume a um muro velho, de uma construção que certamente foi erguida posteriormente ao imóvel em que morou a família dos Santos na década de 1920. Esse resgate de memória sobre um dos maiores ídolos da história do futebol é inegavelmente um marco.
Mais justas e precisas são as palavras do jogador Tinoco, de quem o grande “Maravilha Negra” era grande amigo e com quem jogou pelo Bangu e pelo Vasco: “Igual a Fausto não houve. Nem antes, nem depois dele.”
Não duvido do Tinoco. Não duvido da dona Rosa. Não duvido da história.
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