por Rubens Lemos
Desejo minha pureza na gula pelos bolos de chocolate feitos por minha avó. Não tenho a infância, perdi minha avó e estou proibido até de ver chocolate a anos-luz do meu confinamento, em respeito ao mínimo de controle da taxa de glicose.
A memória é possível rever a partir de 1977, aos sete anos, quando disputava campeonatos de futebol de botão com meus amigos de rua, era apresentado ao ABC, ao Vasco e ao universo do futebol no qual mergulhei sem cilindro de oxigênio.
Quando menino, praguejava a idade desejando ver filmes censura 18 anos no infecto cinema Panorama nas Rocas. Nossa turma até que tentava subornar o bilheteiro, mas nossos trocados eram tão miseráveis que o sujeito patusco e afetado nos enxotava, rabugento e exagerado nos trejeitos.
Entre 7 e 10 anos, a vida me foi surpreendente. Sem níquel, nem intervalo de agitação. Brincávamos, criávamos armadilhas para os velhotes chatos e, em doses cavalares, arrancávamos pedaços de dedo nas peladas de calçamento fervendo sob o sol e a floresta do bairro do Tirol. O sol é impossível de ser comprado, a imensidão verde é pulverizada nos arranha-céus crescendo dia após dia.
Os adultos notavam nossa fascinação pelo futebol do passado e exageravam nas histórias. A tragédia de 1950 nos fazia odiar os uruguaios cujo pecado foi cumprir o papel de vencer de virada uma seleção brilhante massacrada pela pressão politiqueira de um título a qualquer custo.
Em casa, convivia com um inconformado pelo Maracanazo. Meu pai, vascaíno radical, queria seu clube erguendo a Taça Jules Rimet. O Vasco ostentava a nata do time: Barbosa, Augusto, Danilo Alvim, Maneca, Ademir Menezes e Chico. E eles fracassaram.
– A culpa foi de Bigode, que levou um tapa de Obdúlio Varela! e o Uruguai ganhou sendo macho! – irritava-se papai, sem estender o debate à hesitação de Barbosa entre sair do gol e ficar na trave, como de fato ficou, levou o 2×1 dos pés de Ghighia e cumpriu pena máxima pelo crime de solidão na trave, não previsto no Código Penal Brasileiro.
Aos 9 anos, vi a impecável partida do Brasil contra o Uruguai. No Maracanã. O técnico Cláudio Coutinho, do escrete terceiro lugar invicto na Copa do Mundo da Argentina, no ano anterior, mudava seus conceitos defensivos e convocava novos nomes que seriam consagrados.
A narração da TV Globo ficou a cargo do melhor da história, Luciano do Valle. O Uruguai fez 1×0. Edinho empatou saindo da defesa. O magricela Sócrates desviou de Rodolfo Rodriguez na virada e, de cabeça, fez 3×1. Um dos últimos pontas brasileiros, Nilton Batata, do Santos, decretou 4×1 e Éder encerrou os 5×1.
Nenhum gol valeu o lance do nome da partida. Esticaram uma bola ao ponta Ocampo na esquerda, perto da bandeirinha de escanteio. Falcão partiu à cobertura em movimento de garça.
Os dois, um contra o outro, bola com o uruguaio que a deixou fugir por milímetro. Falcão, peitoral de chanceler, deu toque de biquinho de chuteira, tirando o pé para não levar uma entrada covarde. Um edredom cobrindo o humilhado atacante. Impôs o banho sutil e saiu para armar o contra-ataque.
Eis o lance intacto pela infância. Não vou esquecer, e nenhuma questão faço de saber como foi o recente Brasil 2×0 Uruguai. Vitória não produz cópia malfeita. A glória é a que a memória preserva.
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