por André Felipe de Lima
Quem visitar a sede do F.C. Barcelona vislumbrará, logo na entrada do edifício, uma fotografia monumental do atacante brasileiro Evaristo de Macedo Filho. Para os catalães, ídolo histórico na mesma proporção de Kubala ou Samitier. Mas Evaristo também encantou torcedores brasileiros, especialmente os do Flamengo. De família economicamente confortável, Evaristo nasceu no bairro do Engenho Novo, subúrbio carioca, no dia 22 de junho de 1933. Seu pai, Evaristo de Macedo, foi um dos goleiros do Fluminense no começo dos anos de 1930, mas com o profissionalismo de 1933, decidiu encerrar a carreira para priorizar seu empreendimento no setor de material de construções. Evaristo cresceu, ao lado da irmã mais velha, no bairro do Grajaú, zona norte do Rio. Um tio rubro-negro levava o menino aos jogos do Flamengo. Nasceu ali o gosto pelo clube da Gávea e de seu craque na época: Zizinho.
A família mudou-se para Teresópolis e o garoto passou a cursar o ginásio em Juiz de Fora. Estudava no Instituto Grambery, um dos colégios mais conceituados daquela cidade mineira. Seria um afastamento temporário do Flamengo. Com 16 anos, regressou ao Rio e acompanhou um amigo que faria um treino no Madureira. Ao chegar lá, acabou fazendo um teste também. Foi aprovado, naturalmente.
Evaristo jogava o fino. Ainda garoto, mostrava habilidade e marcava gols aos montes. Pela seleção da Guanabara, foi tricampeão do campeonato brasileiro de seleções estaduais juvenis [Taça Paulo Goulart]. Vestindo garbosamente a camisa do Madureira e do escrete da Guanabara, o menino Evaristo foi lembrado pelo treinador Nilton Cardoso [filho do folclórico Gentil] para compor a seleção brasileira de amadores, que participou das Olimpíadas de Helsinque, em 1952. Ao lado de Evaristo figuraram o goleiro Carlos Alberto [então jovem tenente da Aeronáutica], Larry, Zózimo, Vavá, Wassil e Paulinho de Almeida. Mas Evaristo não entrou em campo naquela Olimpíada.
Terminados os Jogos de Helsinque, o atacante regressou ao Madureira. E tome gol e festival de reportagens sobre o “broto” com pinta de craque. Um garoto prodígio como aquele não ficaria muito tempo no tricolor suburbano. Batata, escreveria Nelson Rodrigues, um dos inúmeros fãs de Evaristo na crônica esportiva. Permaneceu no clube suburbano até os 19 anos e só foi para o Flamengo após uma hábil negociação dos cartolas rubro-negros com o seu pai, que exigiu que o passe do rapaz ficasse com o jogador. Uma ação incomum para a época. Ao jornalista Roberto Sander, Evaristo confirmou que os dirigentes do Flamengo só aceitaram a proposta por não acreditarem que o jogador vingaria no clube. Em fins de 1952, Evaristo jogava sem receber um centavo sequer do Madureira. Outros ares lhe seriam mais justos, sobretudo financeiramente. Rumou para a Gávea, em 1953, e formou uma poderosa linha de frente do time de aspirantes com Paulinho, Duca, Maurício e Zagalo, que, no mesmo ano, conquistaria o Campeonato Carioca, abrindo a série que culminaria no segundo “tri” rubro-negro, em 1955.
O começo na Gávea foi complicado. Dividia os jogos e treinos com o curso do CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva]. O futebol nunca impediu os estudos. Mais tarde, Evaristo ingressaria na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas, na Praça da República. Jogador disciplinado e estudante responsável, Evaristo não deixava, contudo, de curtir sua juventude. Ao lado do amigo Joel, então ponta-direita do Flamengo, frequentava assiduamente o piano-bar Sacha’s e os botequins com sinuca do Lido.
Apesar do grande prestígio, Evaristo demorou para ser convocado para a seleção principal. O que aconteceu somente em 1955, quando o Brasil enfrentou o Chile, no Maracanã. Um jogo que marcou a despedida do técnico Zezé Moreira e, sobretudo, a estreia do mais genial ponteiro que o mundo já viu: Mané Garrincha.
No ano seguinte, Flávio Costa convocou craques para a polêmica excursão da Confederação Brasileira de Desportos à Europa. Polêmica sim devido ao episódio que envolveu o ponta-direita Sabará, alvo de comentários racistas da imprensa inglesa pelo simples fato de ter descido ao hall do Hotel Luxor de agasalho da seleção e com uma toalha no pescoço.
Evaristo teria nova oportunidade na seleção em 1957, com Osvaldo Brandão. Jogou muito bem, mas não o suficiente para que o Brasil saísse de Lima como campeão sul-americano. Se o escrete terminou a competição em segundo lugar, Evaristo não teve do que se queixar. Mas, afinal, fez jus aos elogios que recebeu. Marcou cinco dos nove gols na rotunda goleada aplicada nos colombianos.
No dia 19 de janeiro de 1957, o poderoso Honved, com sete jogadores da fantástica seleção da Hungria da Copa de 1954, entrou no gramado do Maracanã para enfrentar o Flamengo. Grosics, Boszik, Lantos, Puskas, Kocsis, Czibor e Budai. Craques, sem dúvidas. Mas aquela tarde foi de Evaristo, que marcou duas vezes no jogo que terminou 6 a 2 para o clube da Gávea.
Com os gols de Evaristo na seleção e o show de bola aplicado pelo Flamengo no mitológico Honved, olheiros europeus se alvoroçaram para levar o craque. Especialmente espanhóis, do Barcelona. Antes, porém, de embarcar para a Catalunha, Evaristo ajudou o Brasil a eliminar o Peru e a classificar-se para a Copa de 58. Representando o Brasil, Evaristo fez 14 partidas e marcou 8 gols.
No final de 1957, Evaristo arrumou as malas e foi para o Barcelona. Na capital da Catalunha viveu uma grande fase e fez história com a camisa azul e grená do Barça. Ajudou a equipe a conquistar dois títulos espanhóis seguidos, em 1959 e 1960, e títulos da Copa da UEFA [ainda com o nome de Competição das Cidades de Feiras de Comércio], em 1958 [representando a cidade de Barcelona], da qual foi o artilheiro, e em 1960 [pelo clube]. Conquistou também a Copa do Rei de Espanha, em 1959. Disputou a final da Copa da Europa dos Clubes Campeões de 1961, perdendo para o Benfica. O torcedor do Barcelona viveu um de seus dias mais felizes ao vibrar com um time que contava com Kubala, Evaristo, Luis Suarez e Cizbor. Quando defendeu o Barça, Evaristo disputou memoráveis clássicos contra o Real Madrid, de Di Stéfano, em jogos que sempre superavam o número de 90 mil espectadores. Em seu jogo de estreia contra o Real Madrid, no estádio Camp Nou, Evaristo marcou três dos quatro gols do Barcelona. O público o aplaudiu de pé e os gandulas cercaram o craque para abraçá-lo. Após o jogo, o húngaro Czibor, companheiro de Puskas na inesquecível seleção da Hungria, da Copa do Mundo de 1954, declarou-se fã de Evaristo, sobretudo após a grande performance dele com o time merengue: “Foi a vitória do melhor quadro. O brasileiro Evaristo foi um monstro. Já enfrentei grandes quadros, mas, com sinceridade, não vi outro jogador tão espetacular e verdadeiro artista da pelota como esse meu companheiro Evaristo. Com esse futebol, é o melhor jogador do mundo.”
Evaristo era tão querido pelos espanhóis que encontrava dificuldade para fazer compras, por exemplo. Quando saía de sua casa em companhia de sua esposa, quase não podia caminhar devido ao assédio de seus fãs pedindo autógrafos. Uma compra que duraria 30 minutos levava entre duas e três horas.
Quando chegou à Europa, Evaristo firmou contrato de três anos, recebendo uma fortuna, entre luvas e ordenados. Em seu auge, recebeu quatro milhões de cruzeiros em luvas e ordenado mensal de trinta mil cruzeiros, gratificações por vitórias e empates. Somente por conta daquela vitória de estreia sobre o Real Madrid, recebeu algo em torno de 500 mil cruzeiros.
Mesmo após 50 anos de sua chegada ao Barça, Evaristo considera sua ida para a Espanha uma surpresa: “Era tricampeão carioca pelo Flamengo e estava muito bem na seleção. No sul-americano de 1957, no Peru, fiz cinco gols num só jogo contra a Colômbia. Até hoje é o recorde em jogos oficiais da seleção. Nem conhecia o Pelé, que estava começando. Só tomei conhecimento dele depois da Copa de 58. Durante o campeonato dois senhores me apresentaram as credenciais do Barcelona, dizendo que estavam observando atacantes. No fim, fui o escolhido. O que pesou na minha decisão foi mesmo a grana. Com a transferência, comprei duas lojas e um apartamento no Leblon […] Pagavam bicho, e bom. O Santos só conseguiu segurar o Pelé porque fazia 50 amistosos no ano. Não saíam mais jogadores porque não havia proposta.”
Evaristo vestiu 219 vezes a camisa grená e azul e marcou 173 gols, uma estupenda média de 0,80 gols por jogo. Roberto Dinamite, ex-craque do Vasco da Gama, que também atuou pelo Barça, atesta o respeito da torcida espanhola por Evaristo: “O torcedor brasileiro não tem ideia de como o Evaristo de Macedo é idolatrado na Espanha. Foi, sem dúvida, um dos maiores jogadores do mundo em todos os tempos”. E, se depender dos espanhóis, foi mesmo. Do Barcelona, Evaristo foi seduzido pelo “canto” merengue, embora decidira retornar ao Brasil após longa jornada no Barça, que insistia para que se naturalizasse espanhol. O que teria, segundo reportagem da Gazeta Esportiva, de 1963, gerado uma indisposição com os cartolas do clube catalão e, consequentemente, culminado na rescisão contratual. Na mesma reportagem, Evaristo falou sobre a carreira na Espanha e a saudade do Brasil. “Não posso queixar-me, mas tudo isso é um preço muito alto para quem passa a viver longe da família. Sinceramente, não sei o quanto ganhei. Todavia, as economias deram para comprar algumas lojas em Copacabana, uma casa, um apartamento, uma oficina mecânica, ações de várias companhias e possuir algumas quirelas no banco. A maior parte do que ganho envio para meu pai, que tudo dirige. Fico com o essencial para levar uma vida normal, sem exageros. E assim mesmo deu para juntar o suficiente para adquirir ações de uma Companhia espanhola fabricante de máquinas de engarrafar.”
De 1962 a 65, Evaristo só vestiu a camisa do Real Madrid, para conquistar o tricampeonato espanhol, em 1963, 64 e 65. Apesar dos títulos, não conseguiu o mesmo brilho na capital espanhola e nas três temporadas ficou como opção no banco de reservas. Seguidas lesões prejudicaram seu desempenho.
Na Espanha, Evaristo deparou-se com um país que se recuperava de uma guerra civil. Com isso, aprendeu costumes e uma nova filosofia de vida: “Com o tempo, fui aprendendo um pouco de História e incorporei outros hábitos, como o vinho que fazia parte das refeições no clube. O time exigia que a gente se apresentasse sempre de terno e gravata.”
As restrições dos clubes aos jogadores, sobretudo brasileiros que atuavam no futebol espanhol dos anos de 1950 e 60 eram flagrantes. “Não podíamos frequentar a parte social. Havia uma entrada para os profissionais. Dificilmente os dirigentes iam ao vestiário. O Santiago Bernabéu foi meu presidente. Era um velho bacana. O clube exigia comportamento dos jogadores mas, para quem gostava, a noite era uma criança […] A mudança [do Barça para o Real] não mexeu muito com a minha vida. Estava casado, tinha filhos pequenos e jogador de futebol é a mesma coisa em todo lugar. Gostava de ver os grandes toureiros como Dominguín e El Cordobés. Claro que Madri era uma cidade mais elitizada com seus museus e uma posição política centrista. Barcelona era mais povão, de esquerda. Os jogadores não levavam essas questões para o campo e acredito que hoje a tensão seja menor. As novas gerações vão se adaptando aos hábitos de outras regiões, mas ainda existe um ranço.”
Evaristo saiu de Madri e retornou ao Flamengo. Conquistou mais um campeonato carioca, em 1965, e encerrou a carreira em 1967, no América, após sofrer uma contusão no joelho.
A trajetória de Evaristo nos gramados foi coroada com muitos títulos e 298 gols. No dia 27 de outubro de 1956 fez, talvez, sua exibição mais eloquente com a camisa do Flamengo ao marcar cinco gols na maior goleada da história do Maracanã: Flamengo 12 a 2 no São Cristóvão.
O craque dos gramados se tornou um dos mestres da beira do campo. Pelo Alvirrubro da rua Campos Sales começou sua vitoriosa vida de técnico. Dirigiu diversas equipes do futebol brasileiro, como Grêmio, Cruzeiro, Atlético Paranaense, Flamengo, Corinthians, Vasco da Gama e Vitória da Bahia. Teve passagens marcantes pelo Santa Cruz, onde conquistou quatro campeonatos estaduais, em 1972, 78, 79 e 1980, e pelo Bahia. Aliás, foi no tricolor baiano que Evaristo carimbou seu currículo de grande treinador ao levar o clube ao inédito triunfo no campeonato nacional, em 1988. Pelo time da Fonte Nova, conquistou ainda os campeonatos estaduais de 1970, 71, 73, 88 e 98 e faturou o estadual e a Copa Nordeste, em 2001. Pelo Grêmio, ergueu a Copa do Brasil, em 1997, superando o Flamengo na final. Pela seleção do Qatar, conquistou a Copa do Golfo Pérsico, em 1992. Como treinador, teve uma passagem efêmera — e não menos turbulenta — pela seleção brasileira, em 1985. Mal ocupara o cargo no escrete, em maio, Evaristo deflagrou uma guerra contra a imprensa, que criticava a imposição da lei da mordaça aos jogadores da seleção. Nada do que acontecia na concentração poderia ser exposto. A decisão do técnico acirrou a discussão com jornalistas e o treinador levou a pior com o boicote. Ele deixou o cargo após a publicação de várias reportagens, algumas até ofensivas, como a publicada pela revista Placar, cuja capa mostrava fotos dos jogadores com um xis desenhado sobre suas bocas e estampava um título irônico: “A culpa é da imprensa! Burrice de Evaristo contagia a seleção!”. Dias depois, Telê Santana voltou ao cargo que havia deixado após a Copa de 1982.
O tempo é o melhor remédio para as rusgas que travamos com o destino. Um dia chove e, verdade seja dita, para Evaristo, na maioria das vezes, outros se firmaram ensolarados.
Em 2006, o Real Madrid prepara uma grande festa em homenagem a Di Stéfano, que completaria 80 anos. Em sua casa, no bairro de Ipanema, na zona sul carioca, Evaristo recebeu um envelope com o timbre do clube merengue, no qual continha um convite e duas passagens aéreas para que comparecesse à festa de Di Stéfano. No ano seguinte, foi a vez do Barcelona reverenciá-lo. Foi recebido com tapete vermelho e com a exibição, em um telão, de seu gol mais célebre, de peixinho, com a camisa azul-grená, no estádio Nou Camp, contra o Real, pela Liga dos Campeões.
O Rio de Janeiro, cidade em que nasceu, reverenciou-o como craque, mas não na mesma proporção de Barcelona. Lá, Evaristo de Macedo é rei… para sempre.
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