por Pedro Barcelos
Os dias anteriores da final foram tensos. Noites mal dormidas, pouca alimentação e algumas palpitações preocupantes na região do peito. Estava indo para a minha primeira final de Libertadores e nada me preocupava mais do que isso.
Ano passado, também em novembro, fui até um cardiologista por conta de palpitações semelhantes. Quando cheguei ao consultório do Doutor Ivo, ele perguntou:
– Estou vendo no seu cadastro que você só tem 33 anos, aparentemente está saudável, qual grande problema você veio trazer hoje? – seu tom de ironia não abalou minha missão.
– Doutor, eu sou fumante há 17 anos, bebo mais que um Opala e ultimamente tenho sentido umas dores estranhas na região do coração. Vim aqui hoje só pra saber se eu consigo chegar ao final do Campeonato Brasileiro vivo.
Entre ignorar a parte de “dores estranhas no coração” e focar em “chegar ao final do Brasileirão”, ele preferiu não se preocupar (o que me preocupou ainda mais). Prescreveu dois exames quaisquer, apertou minha mão e praticamente me expulsou do consultório.
Nunca fui muito bom com exames médicos, mas dessa vez eram necessários. Eu precisava estar vivo no primeiro título revelante do Botafogo neste século.
Saiu o resultado e, de fato, para minha sorte, Doutor Ivo estava certo. Tudo “normal” com meu coração. 2023 terminou e todos sabem o desfecho. Foi horrível, mas sobrevivemos (eu e o Botafogo).
Dito isso, pensei bastante no Doutor Ivo nas últimas semanas. Mais até do que eu gostaria. As palpitações voltaram, mas não valeria a pena voltar ao consultório. Provavelmente ele se preocuparia tanto quanto no ano passado: muito pouco ou quase nada.
Cheguei em Buenos Aires na quinta, encontrei a torcida do Botafogo e não consegui dormir direito. Na sexta, o roteiro foi bem parecido. No sábado, se eu consegui dormir 30 minutos seguidos acho que foi muito. Pesadelos recorrentes, uma azia violenta e as tais palpitações. Só conseguia pensar: “Porra, Doutor Ivo, você deveria ter me ouvido! Isso não pode ser normal”.
Quando desisti de tentar dormir e levantei da cama, rapidamente a azia passou. Pelo menos isso. Tomei um café da manhã pouco reforçado e comecei a peregrinação para o estádio.
Marquei um ponto de encontro com um grupo de amigos botafoguenses em Palermo e de lá partiríamos andando pro Monumental, cerca de 3,5 Km de caminhada.
Todos almoçaram bife à milanesa, menos eu. A única coisa que cabia no meu estômago era a quantidade de adrenalina que eu mesmo produzia. Só isso e nada mais.
Chegamos ao estádio com duas horas de antecedência. Eu e João subimos para a arquibancada superior, enquanto o restante foi para a inferior.
O estádio ainda estava começando a encher. Andei por toda a arquibancada tentando encontrar o lugar ideal para assistir o jogo. Não encontrei. O desespero foi batendo. Não era culpa do estádio, o Monumental é excelente, mas aquela não era a minha casa.
João, meu irmão de Botafogo desde sempre, concordou que só pararíamos quando achássemos o lugar certo. Problema que o tempo passa e, faltando apenas 10 minutos pra começar a partida, a situação só piorava.
Quando aquela festa da Conmebol acabou (festa estranha, com gente esquisita), achamos o lugar para assistir o jogo: um corredor de acesso às arquibancadas. Eu conseguiria assistir o jogo em pé sem atrapalhar alguém, a visão do campo era excelente, não tinha luz do sol na cara, aparentemente nenhum chato por perto… “é aqui”!
Os times entraram em campo e o jogo mais importante da minha vida ia começar.
Esse momento de tranquilidade não deve ter durado 30 segundos. Eu ainda não sabia, mas claramente este era um sinal do que estava por vir: os tais trinta segundos.
Minha tranquilidade acabou quando um grupo de pessoas atrasadas chegou correndo nos acessos das arquibancadas. O empurra-empurra foi geral.
Inconformado com a situação, falei pro João: “vamos procurar outro lugar”. Os times já estavam perfilados, hinos tocando… pensando racionalmente, seria uma péssima estratégia sair dali, mas não teria jeito.
Procuramos até encontrar um lugar. Era meio ruim, longe do ideal, mas teria que ser ali. Nós não escolhemos.
Jogo começou. Não deu tempo de pensar em nada, Gregore foi expulso. Dos trinta segundos de jogo até os 30 minutos do primeiro tempo, eu não sei o que aconteceu. Não faço ideia. Só lembro de olhar pro nada, sem saber o que estava acontecendo a minha volta. Na expulsão, eu perdi minha visão do gramado e não lembro de ter feito esforço algum pra tentar ver de novo.
Ver o jogo já não era uma prioridade pra mim, eu só queria entender o que estava acontecendo. Não tive sucesso. Essa meia hora passou em cinco minutos pra mim. Foi uma merda, eu me endividei para estar ali, era o dia mais importante da minha vida e eu simplesmente não sabia que o estava acontecendo. Nada, naquele momento, fazia sentido pra mim.
Por volta dos trinta minutos, me encostei numa parede de concreto do estádio. Ao fundo, bem longe, conseguia ver parte do telão do estádio. Ver o gramado não era um objetivo meu. Aos poucos, minha consciência foi voltando. A única informação que eu conseguia processar era o som da torcia, e mesmo assim com certa dificuldade.
Alguns segundos depois, já comecei a entender as imagens que o telão transmitia. Aparentemente, tudo certo comigo. “Doutor Ivo tinha razão”, pensei.
Almada pega a bola e fica parado na frente do marcador. Fica um segundo parado. Dois segundos parado. Três segundos parado. Seis segundos parado. Ali, ele me conectou ao jogo. “A gente vai vencer essa porra”.
Consciência de volta, gol do Botafogo.
Lembro de algumas pessoas desconhecidas virem falar comigo, baterem nas minhas costas, mas eu não tinha reação. Aquela parede que eu tava encostado era a única coisa que me entendia naquele momento.
Pouco tempo depois, pênalti pro Botafogo. Alex Telles cobra: 2 a 0.
Para fugir de pessoas que tentavam socializar comigo na comemoração do gol, fui andando meio que sem rumo, na direção oposta da arquibancada, e acabei chegando no final da escada que dá acesso às arquibancadas superiores. Olhei o horizonte, fora do estádio, tentando buscar algum ponto de referência com a realidade. No meio dessa loucura, ouço:
– Irmão, irmão!!
Alguém me chamava. Olhei pra escada, e alguns lances abaixo, bem abaixo, provavelmente uns vinte metros abaixo de mim, vi um torcedor do Botafogo, com a camisa listrada e óculos escuros.
– Irmão, quanto tá o jogo aí? – perguntou gritando.
A cena foi tão absurda que minha única reação foi levantar a mão com dois dedos e gritar o resultado de volta pra ele. A felicidade dele foi instantânea. Provavelmente aquele cara estava sem receber qualquer informação da mundo exterior há 40 minutos.
– Porra, muito foda!! Vamos vencer, Fogo!!! – respondeu gritando de volta.
Aquele cara me salvou. Não foi o Luiz Henrique, não foi o Telles, o Almada ou o Arthur Jorge. O herói daquele jogo foi aquele completo desconhecido que provavelmente nunca mais verei na vida e nem saberei o nome.
Terminou o primeiro tempo e estávamos no caminho certo. No intervalo, consegui achar um lugar na arquibancada pra ficar. Ali, eu conseguiria ver o gramado pela primeira vez depois de muito tempo. “Excelente, está tudo dando certo”, pensei.
Juíz apita o início do segundo tempo, gol do Atlético.
“Não é possível, eu vou voltar pra parede do corredor de acesso. Eu não vim pra assistir o jogo, eu vim pra ser campeão”. Esse pensamento me acompanhou pelos próximos 50 minutos, mas eu não conseguia me movimentar. Estava paralisado.
Júnior Santos entra e o Atlético se caga de medo. Ensaiou primeiro, perdeu a bola. Tentou de novo, conseguiu, entrou na área, arriscou a assistência, não deu certo, lutou, insistiu, gol!! Não um gol qualquer: o gol do título! Expressão muitas vezes banalizada, mas que aqui faz total sentido.
Chorei igual uma criança. Provavelmente o choro entalado na garganta desde o tempo em que eu era criança. Doutor Ivo tinha razão, eu estou bem, vou sobreviver. E o Botafogo? O Botafogo também vai sobreviver e muito bem, obrigado.
Acaba o jogo, tento sair da arquibancada, mas não consigo. Os policiais travaram o corredor de acesso, de forma que nem ao banheiro os torcedores do Botafogo poderiam ir. Esse bloqueio duraria uma hora. “Questão de segurança”, disseram.
Lembro vagamente de um idoso vindo correndo da arquibancada e tentando furar o bloqueio.
– O meu voo é daqui a meia hora. Eu preciso ir ao aeroporto se não eu vou perder minha passagem.
– Lo siento, pero ningún aficionado del Botafogo puede salir del estadio ahora – respondeu um dos policiais.
Nesse princípio de confusão que começou, vejo o tal desconhecido da escada correndo desesperado para entrar, pela primeira vez, na arquibancada. Aos prantos, só conseguia dizer: “somos campeões, somos campeões”.
Passou pelo cinturão de policiamento e encontrou alguns conhecidos seus, provavelmente familiares. Chorou copiosamente. Aquele era o ponto de encontro da ilusão com a realidade. As coisas ali fizeram sentido. Todos os torcedores do Botafogo sabiam que dali em diante, tudo seria mudar.
Aquele maluco da escada foi o herói improvável do meu jogo. Ele me fez ser mais Botafogo, coisa que eu achava que seria impossível até aquele momento.
Essa final me fez ser mais Botafogo, assim como algumas derrotas pesadas do passado também fizeram. O Júnior Santos e o Arthur Jorge me fizeram ser mais Botafogo, assim como o Gregore também fez. O Monumental de Nunez me fez ser mais Botafogo, por mais bizarro que isso possa parecer.
Não é fácil entender o Botafogo ou o que se passa na cabeça de um botafoguense. Mas uma coisa o Doutor Ivo tinha razão: nós sobrevivemos.
O Doutor Ivo também me fez ser mais Botafogo, mesmo sem saber disso.
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