por Claudio Lovato Filho
O treinador se acomodou na poltrona, ajeitou o microfone à sua frente e passou os olhos pela sala lotada de jornalistas.
“Bom dia”, ele disse, num tom de voz de quem, na verdade, estava dizendo “vão pro inferno”.
O assessor de imprensa, que de tempos em tempos olhava para o treinador com nítida preocupação, avisou que a entrevista coletiva iria começar, mas, quando se preparava para iniciar a chamada dos repórteres, seguindo, como de praxe, a lista de inscrição, ouviu um pedido do técnico.
“Ô, Zeca, só um segundo, por favor. Eu quero dizer umas palavras antes das perguntas”.
O silêncio se fez por completo no auditório recém-reformado, todo decorado em diferentes tons de amarelo e cinza, as cores do clube. Zeca, o assessor de imprensa, passou a mão no cavanhaque, ajeitou os óculos de aro fino e sentiu a pressão arterial subir.
“Claro”, disse.
Um burburinho ameaçou se formar.
“Pessoal, só um minuto, um minuto, por favor”, pediu o assessor.
“Professor, fique à vontade”, disse, e fez um sinal em direção ao microfone do técnico.
O treinador pigarreou. Pigarreou de novo. E mais uma vez. Então, por fim, falou.
“Eu gostaria de dizer a alguns repórteres que estão aqui que eu acho que vocês estão na área errada. Em vez de trabalhar com futebol deveriam escrever em publicações de fofoca”.
O burburinho desta vez veio com tudo. Zeca, o assessor de imprensa, levantou os dois braços num nervoso e infrutífero pedido de calma.
“Então agora a vida particular do técnico e dos jogadores é assunto de, como é que vocês chamam, ‘reunião de pauta’?”, indagou, irônico, o treinador. “É assim que vocês chamam, né, ‘reunião de pauta”, acrescentou explicitando seu desprezo na pronúncia lenta, feita sílaba a sílaba.
Foi adiante: “Não respeitam nem problema conjugal! Vocês chamam isso de jornalismo?”
Ele ainda não havia terminado: “E daí se eu jogo pôquer, canastra, pontinho, biriba, dama ou dominó? Hein? O que é que isso tem a ver com o meu trabalho aqui no clube…”
“Turfe também”, alguém disse lá de uma das fileiras do meio, no volume certo para ser ouvido por todos os que estavam à sua volta, alguns dos quais não fizeram questão de conter o riso. “Os cavalinhos”.
“… e até a bebida que eu tomo é assunto! Vocês estão mais preocupados com esse tipo de coisa do que…” – o rosto do treinador tinha ficado vermelho escarlate, e ele agora enfrentava uma evidente dificuldade para articular as palavras – “… do que com o esquema tático do time!”
“Que esquema tático?”, a mesma voz se manifestou, anônima, mas audível, para deleite dos colegas em seu entorno.
Foi nesse momento que, lá no fundo da sala acarpetada, ouviu-se um barulho de coisa quebrando, plástico ou madeira, e um grito, “Ai, tá maluco!?”, e outro barulho de impacto, superfície dura contra superfície nem tão dura, e outro grito, agora com um pedido de socorro agregado, “Me ajudem, me ajudem aqui”, e então os seguranças do clube finalmente interferiram e o que se viu foi um jovem com agasalho do clube, que de imediato foi identificado como membro da comissão técnica, e um colunista de um portal de notícias, sendo separados. Zeca, o assessor de imprensa, que agora sentia a coluna começar a travar, olhou para o técnico, que, de pé e com as mãos na cintura, sua pose preferida, olhava fixamente para um dos jornalistas sentados numa das fileiras do meio do auditório, e esse repórter aparentemente preferiu não dar sopa para o azar, levantou-se e foi saindo, esgueirando-se pelo corredor lateral, mas, ao abrir a porta, foi arremessado de volta para dentro por uma jovem alta, corpo esguio realçado pelos sapatos de salto altíssimo, que olhou para o repórter caído como se ele fosse uma folha seca na calçada, uma folha seca e amarela e triste ao lado de outras mil, e, por fim, gritou: “É isso mesmo! Eu e o Jales estamos nos separando!”, e disse isso olhando para o jovem da comissão técnica, que não se chamava Jales, mas Alberto Carlos, Albertinho, que ainda era contido por um segurança, e foi então que um estrondo veio lá da frente do auditório, e era o púlpito usado por Zeca, o assessor de imprensa, que havia ido para as cucuias, desabado, espalhando papéis, microfone e celular no chão, e junto com isso tudo o próprio Zeca, que apesar de ter o rosto pressionado contra o tapete novo e felpudo, dizia “deu, deu, chega, vou embora, vou embora…” E como se tudo isso não bastasse ainda havia uma parte muito impactante para se agregar ao enredo, e de repente o auditório foi invadido por um grupo de mais ou menos vinte representantes das três maiores torcidas organizadas do clube, e eles se dividiram na tentativa de se aproximar do repórter, que ainda tentava se erguer, e do treinador, a quem dirigiam xingamentos, e quando o treinador fez menção de partir para cima dos invasores foi puxado pelo braço por um jovem jornalista da equipe de Zeca, um jovem jornalista que já havia aprendido a arte safada de vazar informações para a imprensa e que agora só conseguia dizer “vamos vazar, professor, vamos vazar”.
Nas horas que seguiram ao espetáculo bizarro ocorrido no auditório de entrevistas coletivas do clube, muitas matérias foram publicadas e exibidas nos sites, portais, rádios e TVs relatando para a cidade, o estado, o país e o mundo o que havia acontecido ali naquele final de manhã.
Meia dúzia de boletins de ocorrência foi registrada. Outros dois casamentos foram desfeitos. Uma comissão técnica inteira ficou desempregada, a equipe de seguranças foi substituída por completo e a assessoria de imprensa do clube, terceirizada. (Acrescentando-se a isso a rapidíssima negociação de Jales, volante promissor criado na base do clube, negociado com um clube do Uzbequistão.)
Para a empresa de prestação de serviços de assessoria de imprensa que estava chegando ao clube, a principal determinação vinda diretamente da presidência dizia respeito à retomada das entrevistas online, via aplicativo de videoconferência. Até segunda ordem, as coletivas presenciais estavam suspensas.
E foi isso.
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