Entusiastas como André de Paula, fundador da torcida AnarcomunAmerica, renovam devoção ao clube em jornadas na Segundona do Carioca
por João Vitor Lopes e Rodrigo Carauta
“Hei de torcer, torcer, torcer, hei de torcer até morrer, morrer, morrer”. Os versos iniciais de um dos mais belos hinos do futebol brasileiro retratam bem a perseverança apaixonada vivida pelos torcedores sobreviventes do América. Há décadas eles resistem à decadência do clube que encantava o Rio com o indefectível uniforme vermelho e jogadores bons de bola.
Passados 41 anos da coroação como “campeão dos campeões”, o declínio esportivo, econômico e midiático não desbota a importância histórica do America Football Club (sem acento, frisam os tradicionalistas), fundado em 1904, na Tijuca, Zona Norte carioca. Tampouco diminui a idolatria reciclada nas arquibancadas do subúrbio, da periferia e do interior fluminenses. A devoção – escancarada já no hino composto, em 1945, por Lamartine Babo, ele próprio torcedor americano – renova-se entre a realidade de partidas sofríveis na segunda divisão do Carioca e o sonho de voltar à elite do futebol.
Boa parte dos que acompanham o America no prolongado purgatório não conheceu seus tempos de glória. No entanto, gerações distintas de torcedores alimentam, com o Diabo, uma relação acima dos resultados. Cultivam uma conexão além do futebol, uma identificação movida a afeto.
O time hoje flerta com a zona de rebaixamento para a terceira divisão do Campeonato Estadual. Martírio inimaginável para um clube que soma sete títulos cariocas – o último em 1960 – e arrebatou, em 1982, o Torneio dos Campeões. Convidado para esta competição nacional, que reunia os campeões e vice-campeões brasileiros, o America roubou a cena. Venceu o Guarani por 3 a 1 na final. Mais do que a conquista singular, a equipe rubra encantou por reunir talentos como Pires, Eloi, Moreno, Gilson Gênio.
Sucessivos desacertos administrativos, políticos e financeiros empurraram o clube ladeira abaixo no fim do século passado. Para torcedores e dirigentes atuais, inúmeras são as razões de o America ter sumido das principais competições e dos holofotes. Envolvem desde brigas com a Federação do Rio e com a CBF até uma sequência interminável de equívocos gerenciais.
Conhecido como o clube mais simpático do Rio, “segundo time de todos”, o Mecão desfruta de um apoio generalizado à sonhada e difícil volta por cima. Parte dos torcedores preferiria, contudo, vê-lo temido pelos rivais, em vez de tratado como amigo da vizinhança:
“Fico feliz quando passo com a camisa do América e o porteiro brinca: ‘Aqui é Flamengo, nada de America neste prédio’. Precisamos recuperar esse reconhecimento”, enfatiza André de Paula, o André das Faixas, criador da torcida AnarcomunAmerica. Ele integrava às três centenas de abnegados que incentivavam o time contra o Macaé na ensolarada tarde de 27 de maio. Mesma data, lembra André, do 0 a 0 entre o Mecão e o Besiktas, da Turquia, em 1959.
Os entusiastas agregados no estádio de Edson Passos, na Baixada, buscavam não só a vitória do anfitrião sobre a equipe costeira. Almejavam, acima de tudo, um reencontro com dias melhores.
Diante da decadência americana, uma parcela dos torcedores refugia-se na nostalgia. Alguns deles apontam a mudança do campo – do Andaraí para Edson Passos – como um dos motivos da derrocada, e de certa perda de identidade. Na arquibancada, olhares desanimados suspiram saudades do “America de verdade”.
Outros mantêm a animação e a fé. Vibram com cada vitória chorada na Segundona. Desencavam formas independentes de ajudar o clube. Assim se comportam os integrantes da AnarcomunAmerica.
Liderada por André, a torcida nasceu em 2018 também como resistência ao governo que começaria naquele ano. Um resgate das origens do clube, justifica o fundador. Ele argumenta que futebol e política costumam se misturar:
“A ditadura sabotou Zico nas Olimpíadas de 1972, por conta de perseguições ao seu irmão Nando (Fernando Antunes Coimbra). Já havia sabotado Edu, seu outro irmão, não convocado para a Copa de 70, apesar do ano magnífico”, exemplifica.
Não obstante os ideais políticos, a campanha principal da torcida organizada concentra-se em atrair novas adesões ao America. Não raramente a organização banca o ingresso e o transporte daqueles que não podem arcar com os custos para ver o time nos gramados. Sem esforços deste tipo, o duelo contra o Macaé, pela terceira rodada da Série A2 do Estadual, teria reunido menos ainda do que 328 torcedores.
O sol vespertino atormentava tanto quanto a sacrificada qualidade técnica do jogo. A equipe tentava corresponder ao clamor da arquibancada. Acumulava gols perdidos.
A partida aproximava-se do fim quando esperança converteu-se em desespero. Aos 44 minutos do segundo tempo, o Macaé achou o gol em um escanteio. Quem não faz, toma, ensina a máxima do futebol.
A torcida mal esboçou reagir. O golpe parecia nem doer mais. Gritos pediam Romário, torcedor ilustre, para presidente do clube. Foram logo abafados por integrantes da AnarcomunAmerica.
O bate-boca tornou-se inevitável. Confusão no campo e na torcida. Apesar da frustração, os alvirrubros, escaldados com o longo inferno, aparentavam não se abalar. Uns guardavam os instrumentos de percussão. Outros combinavam o encontro para o jogo seguinte, garimpavam aspectos positivos da partida, faziam contas para fugir de mais um rebaixamento.
A despeito dos percalços, o vice-diretor de Planejamento e Comunicação do America, Marcelo Burgos, confia na recuperação esportiva e social. Projeta a expansão da torcida impulsionada por uma integração comunitária e histórica:
“Esperamos expandir novamente a nossa torcida, conquistando o público dos arredores de Edson Passos com projetos sociais, oficinas e com um trabalho de base, principalmente do futebol feminino, que tem dado bons resultados. Além deste vínculo local, apostamos na identificação do público com as origens e a história do América”. Burgos completa:
“Quando a obra do Shopping em Campos Salles (sede do clube, na Tijuca) ficar pronta, até o fim do ano, começará a cair um bom dinheiro pro América. Quantia que pode servir para reestruturar o clube e reaproximá-lo do público geral, com ganhos esportivos”.
Em busca de horizontes mais doces, os adoradores do Diabo ancoram-se na tradição, nas glórias e nas histórias que eternizam o America Football Club entre os grandes. Algumas delas são lembradas por André das Faixas, uma enciclopédia, nesse breve papo extraído naquela tarde de sol, futebol, paixão:
Como você virou o torcedor do América?
Fui com o meu pai, rubro-negro, ver um jogo do Flamengo no Maracanã. O América jogava a preliminar. Quando olhei para aquela camisa vermelha, pensei: esse é o time para o qual vou torcer. Isso foi em 1985, quando o America ficou quase o ano todo sem vencer. Depois, estudando a história do clube, descobri que era o time não só com a camisa mais bonita, mas também com o hino mais bonito.
Você se identificou também com a história do clube…
Sim. O America Football Club nasceu na Gamboa, um bairro proletário, fundado por anarquistas, daí a cor preta. Depois é que mudou para o vermelho. O anarquismo era a ideologia dominante dos operários. O clube nasceu, portanto, num bairro pobre, com a camisa preta, para combater os grandes da época. Por isso, era chamado pejorativamente de urubu de sarjeta. É um clube historicamente protagonista de resistências políticas, o que se refletiu em brigas com a Federação do Rio. Assim, o America acaba sempre prejudicado, apesar de ser campeão da lisura, da disciplina, da simpatia. O America pacificou o futebol carioca, ajudando a unificar as duas ligas (em 1937). Fez, com o Vasco, o Clássico da Paz.
Outro marco histórico refere-se ao, como se diz hoje, ao fair play de Belfort Duarte, que se acusava ao cometer uma infração…
Isso mesmo. Ele teve a honradez, por exemplo, de falar para o juiz que a bola não tinha entrado, num gol consignado a favor do America. Foi um grande zagueiro, um líder do primeiro título estadual americano, em 1913. Belfort Duarte destacava-se também pela lisura. Nunca foi expulso. Por isso, inspirou o prêmio que leva o seu nome, concedido aos jogadores que passam dez anos sem serem expulsos. O Alex, maior zagueiro central que eu vi jogar, também nunca foi expulso. O estádio do Coritiba, até pouco tempo atrás, era chamado Belfort Duarte. Há de se ressaltar ainda a importância histórica do clube contra o racismo. O America foi um dos primeiros a receber negros em suas fileiras, fato destacado por Mário Filho no livro “O Negro do Futebol Brasileiro”.
E os marcos esportivos do América?
No campo das glórias esportivas, fora os sete títulos estaduais e a conquista do Torneio dos Campeões, o America é o vingador do futebol brasileiro. Ganhou por 3 a 1, em 1951, do Uruguai, representado pelo Peñarol, vingando o Maracanazo (vitória do Uruguai sobre o Brasil, 2 a 1, na decisão da Copa de 1950, no Maracanã). Em 1948, o America jogou oito vezes no exterior para defender a primeira Fita Azul. Em 1959, foram 17 jogos. Em 1961, mais sete jogos. O America e a Portuguesa de Desportos são os únicos clubes brasileiros que têm a Fita Azul (título honorífico concedido pela antiga Confederação Brasileira de Desportos, atual CBF, ao time brasileiro com a melhor excursão no exterior). Temos também várias taças internacionais, como a conquistada em Nova York.
Que outras referências históricas ou curiosidades singularizam o América?
É o clube com mais homônimos no Brasil, cerca de 190. Até 1940, tínhamos a maior torcida do Brasil. Falando nisso, a torcida Brigada Rubra enfrentou a ditadura militar, como a AnarcomunaAmerica vem enfrentando [movimentos antidemocráticos]. Colocamos, no estádio, uma faixa contra a Reforma da Previdência, por exemplo.
Como surgiu a ideia dessa torcida?
Surgiu no governo Bolsonaro, homofóbico, racista, arbitrário. Como achamos que o futebol sempre foi instrumentalizado pelas elites, resolvemos fundar a AnarcomunaAmerica. Sempre nos manifestamos nos jogos, na política interna do clube, na política nacional.
Como vocês se organizam para acompanhar os jogos?
Vamos a todos os jogos do masculino e do feminino e a alguns da base. Não importa a colocação, estamos em todas as partidas. Nunca pedimos nem aceitamos ajuda da diretoria. Somos independentes. Temos uma cotização entre nós, sócios da torcida. Cooperamos para que os torcedores pobres possam ir aos jogos. A gente paga o ingresso deles e fornece o transporte nas longas viagens. Alugamos kombis para nos levar nos jogos inacessíveis por transporte público.
Esses esforços conseguem renovar a torcida?
Isso é um trabalho lento. Não temos nenhum meio de comunicação. Depois que conhecem a história do América, muitos passam a torcer pelo clube. Por outro lado, futebol é resultado. O pessoal quer ir pro clube que está ganhando. Neste sentido, fica difícil convencer uma pessoa a torcer pela América. Mas posso te garantir que, lentamente, a AnarcomunaAmerica está crescendo.
O que esperar do América nos gramados em 2023?
Bom, acho que o América não deverá subir [para a elite do Carioca], porque a Federação dificulta. E a diretoria não a enfrenta. Faz a política da boa vizinhança, mas acabamos sempre prejudicados. Portanto, acho que ainda não sairemos desse atoleiro. Mas tenho esperança quanto ao trabalho de base que está sendo feito. Será que Romário, chamado para assumir o clube, poderá transformar o seu prestígio em mudanças efetivas para o América? Eis uma grande interrogação. Acredito que ele tenha condições de captar recursos para o clube. Eu espero que ele também enfrente va Federação.
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Fim da entrevista
Se o Shopping levará o clube a caminhos mais prósperos no futebol, não sabemos ao certo. O que se sabe é que independente disso seus fiéis torcedores estarão apoiando. Um até brincou que não seria tão ruim cair pra terceira divisão, pois pelo menos, seriam adversários diferentes. Retomando o que disse no início, esse sentimento vai muito além dos valores do futebol. Vai na contramão da lógica resultadista, nacional, ou até global. Ver que a graça, talvez, não esteja apenas na vitória, no título, na divisão de elite, mas sim no processo, no ato de torcer em si, cada um na sua forma. Ter também o clube como uma figura próxima, que convirja com sua história e valores. É o esporte na sua mais pura essência. Como disse o André: O America é tão superior que não precisa nem vencer”
E nós somos tão superiores, que não precisamos nem vencer. O America é uno e múltiplo. Essas são as razões que me fazem cada vez mais me ligar ao America, estando ele vitorioso no campo, ou sendo derrotado no campo, uma vez que o America está muito acima das vitórias conjunturais que possam acontecer no campo.
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