por Zé Roberto Padilha
Estava me preparando para sair no Bloco das Piranhas (segundo Moisés, o zagueiro que fez seus seguidores atravessarem os atacantes ao meio, conduzindo-os ao gelo, um Voltaren no músculo e uma estadia no DM, boleiro que se preza não ganha o Troféu Belfort Duarte – e sai de mulherzinha no sábado de carnaval) quando resolvi dar uma olhada na telinha que transmitia Fluminense x Madureira.
A partida estava paralisada e o replay provocava frios na espinha diante de um carrinho criminoso dado em cima do Gustavo Scarpa. Um serial killer de amarelo dera um salto sobre o camisa 10 tricolor no gramado escorregadio, o que aumentava a velocidade do tiro, e suas balas passaram a centímetros da tíbia, do perônio, dos quatro meniscos e dos seus ligamentos cruzados.
Em um só instante revi o carrinho do Márcio, do Bangu, que abreviou tantos momentos de genialidade que o Zico ainda tinha para nos oferecer. E lembrei-me daquele outro imbecil que nos roubou John Lennon e tantas canções que ele iria nos presentear. Imagine all the people. Imagine as pessoas vivendo a vida em paz!
A arte é a perfeição alcançada por um dom concedido pelo criador aos seus filhos para tornar a vida mais bonita aqui embaixo. Vale para a pintura, a arquitetura, para música, dança e também para o futebol. A este menino simples e humilde, formado nas divisões de base em Xerém, foi concedido um futebol requintado, com resquícios do passado. Nada daqueles toques para o lado do Márcio Araújo, para o companheiro mais perto para o show do intervalo elevar o índice de acertos e previsibilidade. Muito menos para trás, jogando aos pés dos que não sabem sair jogando a missão de distribuir as jogadas.
Gustavo Scarpa escapa da mesmice e, como Gérson, Didi, estica o passe, alonga o jogo, enxerga sempre um companheiro livre porque nenhum zagueiro acredita em uma conexão tão rápida. Bate com jeito na bola, como Jair da Rosa Pinto, Zizinho e Silveira, não com força, daí a velocidade com que o goleiro Rafael, do Globo-RN, foi surpreendido, porque ele não tomou a distancia comum e necessária para acertar um chute daquela distância. Foi apenas um retoque de pincel sobre uma tela verde e iluminada. Uma obra de arte como muitas que ele tem ainda a nos oferecer.
Igualmente revelado nas divisões de base em Xerém como ele, Paulinho, Mário, Zezé, Gilson Gênio, Wallace e tantos canhotinhas tricolores, tive minha carreira abreviada por quatro intervenções cirúrgicas na caneta esquerda. Antes do Bloco das Piranhas teve uma pelada à fantasia aqui em Três Rios e minha mente foi convidada. Meu corpo? Fui nadar. Às vezes ando de bicicleta, vou caminhar, correr não dá mais!
Às vezes fico pensando: de que vale um dom herdado para sempre danificado? Mas após aquele carrinho criminoso que demorou a deixar a minha mente, antes do bloco fiz uma prece por este menino. E agradeci, como tricolor e apaixonado pelo futebol, por ele ter escapado ileso daquela covardia. O futebol, e sua arte, não podem mais se dar ao luxo de perder um dos poucos artistas que lhe restam.
0 comentários