por André Felipe de Lima
Nenhum outro jogador de futebol passeou pelo inferno das críticas vorazes e depois galgou ao céu das Copas do Mundo da forma como protagonizou Carlos Caetano Bledorn Verri. Foi considerado o culpado pela pífia campanha do Brasil na Copa de 1990, na Itália, quando o seu nome serviu para definir uma “Era” fracassada do futebol brasileiro. Convenhamos, uma grande injustiça com o cidadão Carlos, que quatro anos depois ergueu como capitão da Seleção Brasileira a Copa do Mundo nos Estados Unidos. A controversa personagem construída ao longo da carreira permanece viva até hoje. Porém o capitão do Tetra de 94, que foi um jogador capaz de despertar raiva e ao mesmo tempo respeito nos torcedores e jornalistas, é o mais verossímil sinônimo de um guerreiro em campo. Um gladiador das canchas futebolísticas. Dunga é histórico para o futebol brasileiro, e isso não se questiona.
O ato derradeiro da carreira dele como jogador foi salvar do rebaixamento no campeonato brasileiro, em 1999, o Internacional, clube em que começou a carreira, com um gol nos últimos minutos do último jogo da dramática campanha colorada. Um herói da garra.
Nascido em Ijuí, no interior gaúcho, no dia 31 de outubro de 1963, Dunga cresceu com pouco, mas bastante feliz ao lado dos pais Edelceu e Maria. Deleitava-se com uma mistura exótica que considerava sua sobremesa favorita: Fanta Uva com chocolate Diamante Negro. Uma guloseima “inventada” por ele, aparentemente banal, mas considerada um luxo para quem teve muito pouco quando criança. O pai trabalhava duro o dia inteiro na Prefeitura de Ijuí e após o expediente vendia bilhetes de loteria para engrossar a renda. A mãe era professora e sempre estudou. Da casa quem cuidava eram os filhos. Cabia ao Dunga varrer o chão e lavar a louça. No colégio, um tanto preguiçoso, contudo. Matar aula representaria um puxão de orelhas da mãe, e na frente dos colegas para aprender a lição. Não havia refresco para Dunga. A disciplina e o jeitão exigente, o de general dos gramados, talvez tenham vindo dessa fase infanto-juvenil.
Quem o levou para o Internacional foi o padrinho Perondi. Mas Dunga tinha tudo para parar em outros clubes gaúchos. Edelceu foi jogador do antigo Cruzeiro de Porto Alegre e o tio Marimba jogou pelo Grêmio, na década de 1950. Mas os auspícios indicavam outro caminho para o garoto. Aos 15 anos, Dunga foi treinar no Beira-Rio. E, por incrível que pareça, como meia-atacante. “Era um menino pesado, de pernas grossas e curtas [daí o apelido, Dunga]. Não acreditei nele, mas estava errado. Ele pode até não ter sido um craque, mas jogava com a cabeça, é disciplinado, um vencedor”, disse Perondi à brava repórter Mirelle França.
Em 1983, Dunga subiu ao time principal e passou a condição de volante de contenção, treinado por Abílio dos Reis. E tinha de ser mesmo titular do Inter, afinal, Dunga foi campeão mundial de sub-20, no México, naquele mesmo ano. Um time que apresentou uma geração ao futebol brasileiro que ninguém mais esqueceria. Bebeto, Jorginho, Geovani, Mauricinho… um time verdadeiramente talentoso e que já havia conquistado o sul-americano da categoria. No mesmo ano, Dunga foi medalha de prata nos Jogos Pan-Americanos e em 84 pendurou no pescoço a medalha de prata durante as Olimpíadas de Los Angeles. Sem contar o bicampeonato gaúcho, em 1983 e 84. Todas essas conquistas ainda em início de carreira o credenciaram para uma aventura em algum clube milionário da Europa. Foi aí que surgiu a Fiorentina.
Os italianos contrataram Dunga, mas o emprestaram ao Corinthians, onde seria vice-campeão paulista. O volante, De León e o centroavante Serginho acabaram repassados ao Santos. Na Vila Belmiro, Dunga permaneceu de 1985 a 86. Mas foi em 1987, no Vasco, que o jogador presenciou um ano especial. Com clube carioca, foi campeão estadual, em um time que contava com Geovani, seu ex-companheiro do Mundial de juniores de 83, e Mazinho.
Após a passagem por São Januário, Dunga embarcou de vez para a Europa. Na Itália, defendeu o Pisa e, em seguida, a própria Fiorentina, por onde ficou durante cinco anos, período em que foi vice-campeão da Copa da Uefa na temporada 1989/90 e cultivou um interesse especial sobre arte e cultural italianas, principalmente após a passagem por Florença. Dunga é capaz de destrinchar toda a vida dos Médici com a mesma facilidade com que desarmava um atacante desavisado.
O meia jogou também pelo Pescara e foi assediado pela Juventus, mas a negociação nunca foi concretizada. Em 1993, conheceu o futebol alemão, atuando pelo Stuttgart. Dois anos depois, aventurou-se no rico futebol japonês, porém em fase de estruturação. Dunga defendeu o Jubilo Iwata e conquistou o título nipônico de 1997. Mais até. A temporada no Japão proporcionou o contato com flores e plantas, um hobby com o qual Dunga convive até hoje para manter-se calmo.
Tanto tempo fora de casa, Dunga sentiu necessidade de voltar. Mas voltar para o seu Rio Grande do Sul. Ao seu Colorado. Em 1999, ele desembarcou em Porto Alegre, mas nem deu tempo de matar as saudades porque no final do ano deixou o clube, apesar de a diretoria confirmar que Dunga teria assinado um contrato de dois anos. Sem traumas, Dunga deixou o Beira-Rio de bem com a torcida. Foi dele o gol “redentor” contra o Palmeiras, que livrou o Inter da segunda divisão do campeonato brasileiro.
Se a história do craque com o Inter é mágica, com a seleção brasileira, então, nem se fale. Já havia mostrado nos escretes de juniores e de novos que era líder e tinha pé-quente. Estreou na seleção principal em 1986 sob a intervenção de Jair Pereira. Em 1989, a consagração. As gerações de Bebeto, Dunga e Jorginho, alinhada com a de Romário, foi campeão da Copa América de 1989. Há 40 anos que o Brasil não erguia o tradicional troféu.
Tudo indicava que estávamos diante de um punhado de craques que acabaria também com o jejum em Copas do Mundo. Veio 1990 e com ele a Copa na Itália. No comando da seleção, Sebastião Lazaroni, treinador que papou vários campeonatos cariocas, por Vasco e Flamengo, na década anterior. Lazaroni usava um discurso empolado, prolixo pra caramba. Ninguém deve ter entendido patavina na concentração e o Brasil acabou eliminado pela Argentina nas oitavas-de-final, após um “apagão” na defesa brasileira que propiciou a arrancada de Maradona, sem que Dunga conseguisse alcançá-lo, e o gol de Caniggia.
Aquela geração — sobretudo o fiasco na Itália — ficaria marcada como a “Era Dunga”, expressão que por quatro anos serviria para se referir a um grupo de jogadores injustamente qualificado como sem talento. Um momento do futebol nacional que virou sinônimo de futebol feio.
Deixe estar. O mundo não acabaria ali, diante da milonga dos hermanos e da água suspeita oferecida pelos argentinos em campo e ingenuamente bebida pelos jogadores brasileiros. Depois da decepção de 90, Dunga só reapareceu nas convocações em 1993, ano das Eliminatórias, sob o comando de Carlos Alberto Parreira. O Brasil se classificou com certa dificuldade e o time era considerado pouco inspirado e retranqueiro. Porém, no Mundial, Dunga tornou-se capitão da equipe, com Raí, o mais badalado do time ao lado de Romário, barrado por Parreira.
A Copa de 94 acabou e foi ela a tradução mais fiel do que representava a “Era Dunga”. Mas reconheçamos naquela seleção algo quase sobrenatural. Algo, digamos, envolto em um salutar carma coletivo. Foram campeões mundiais juntos desde as divisões de base. Dunga é um predestinado.
Acabou a Copa como o jogador que mais desarmou jogadas e ainda mostrou bom futebol na distribuição de passes. Fez, por exemplo, um lindo lançamento para Romário marcar contra Camarões. Após a vitória contra a Itália, na disputa por pênaltis, Dunga ergueu a taça e gritou “Isso é pra vocês, seus traíras”, em desabafo justo, convenhamos. Afinal, carregar nos ombros um fardo por conta de um desatino coletivo quatro anos antes não era para qualquer um. Era, sem trocadilhos, somente para um jogador como Dunga, que teve outro momento feliz, vencendo a Copa América de 1997, na Bolívia, a primeira conquista brasileira de um sul-americano fora do país.
Já com 34 anos, Dunga foi titular da Copa de 1998, na França. Apesar de desorganizado, o time tinha um elenco forte e avançava rumo à final. Contra Marrocos, o Brasil venceu por 3 a 0, mas Dunga perdeu as estribeiras, discutiu com Bebeto e deu-lhe uma cabeçada.
A seleção chegou à final contra os donos da casa. Como se o destino não quisesse que aquela equipe fosse campeã do mundo, um episódio até hoje mal explicado marcou a tarde do jogo. Ronaldinho sofreu convulsões antes da escalação oficial e Edmundo foi anunciado como titular. Mesmo assim, Ronaldinho entrou em campo, mas o Brasil parecia completamente aturdido. O jogo terminou 3 a 0 para a França de Zidane. Dunga jogou ao todo 18 partidas em Copas do Mundo. É, indiscutivelmente, um dos nomes mais singulares de toda a história do futebol brasileiro.
Após a Copa dos franceses, Dunga não voltou mais à seleção. Mas nem por isso abateu-se. Não precisava provar mais nada a ninguém. Continuou jogando a sua bolinha e mostrando o caráter ímpar que sempre o envolveu.
Ao receber 372 mil reais pela rescisão com o Internacional, doou o dinheiro a instituições de caridade que amparam crianças. Alegou que sempre ganhou dinheiro trabalhando. “As coisas que adquiri em minha vida foram sempre conquistadas com trabalho, com meu esforço. Então, se não trabalharia, por causa da rescisão, o correto seria deixá-lo de lado. Como profissional, é legal e moral. Mas, como homem, não poderia aceitá-lo […] achei melhor doá-lo para uma instituição em que geraria muito mais alegria”. Dunga, que já havia sido o precursor de uma campanha entre os jogadores para ajudarem o Instituto de combate ao Câncer, decidiu terminar o segundo grau e continuar estudando. Como muitos outros craques de sua geração, mantém um projeto social denominado Esporte Clube Cidadão, na Restinga, bairro da periferia de Porto Alegre, que atende cerca de 400 crianças.
Estava tranqüilo, na sua residência em Ipanema, bairro de Porto Alegre, cuidando de seu jardim e conversando com os amigos vizinhos em meio a rodadas de chimarrão, quando mais uma vez o destino lhe reservou uma missão. O predestinado Dunga teria de recuperar o prestígio da seleção brasileira abalado após a desastrosa campanha na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha.
Em 24 de julho de 2006, Dunga assumiu o cargo de treinador do escrete canarinho. Mesmo inexperiente na função, chegou por causa da fama de brioso. Choveu crítica de todos os lados. As estrelas Ronaldinho Gaúcho e Kaká pediram dispensa do time na Copa América de 2007, que aconteceu na Venezuela. E o velho Dunga, verdadeira madeira de jequitibá, duro, impávido, resistiu às críticas mais pusilânimes, que implicavam até com a sua roupa, cujos modelos foram criados pela sua filha Gabriela Verri. Dunga aguentou tudo. Era como se o fantasma da injusta “Era” que lhe atribuíram estivesse o rondando. O ex-craque respirou fundo, olhou para frente e liderou, mesmo que do banco, Robinho e cia. durante a campanha da Copa América. Parecia o grande capitão de 94 em cena. E era mesmo. Brasil campeão e novamente com o general Dunga, que também lideraria a seleção, primeira colocada nas eliminatórias, à Copa de 2010, na África do Sul.
O Mundial foi, contudo, uma experiência incômoda para o ex-craque. Envolveu-se em várias polêmicas na África do Sul. Muito pressionado pela imprensa e opinião pública quanto à confiabilidade do time, Dunga chegou a desrespeitar Alex Escobar, jornalista da TV Globo, durante uma coletiva com a imprensa. A missão de Dunga como treinador da seleção parou na Holanda, que eliminou o Brasil da Copa após virar o jogo para 2 a 1.
Dunga foi crucificado, como fora Telê Santana, em 1982 e 1986. Mas guerreiros dão a volta por cima. E a história de Dunga prova isso.
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A biografia completa do Dunga consta do IV volume (a Letra “D”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição do querido Cesar Oliveira.
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