por João Carlos Pedroso
Tive 12 anos de novo no sábado, 23. E fé, do jeito que só uma criança pode ter. O destino quis que passasse todo o tempo de um dos jogos mais importantes da história do Flamengo em um casamento na Bahia, marcado cruelmente para praticamente a mesma hora, num lindo cenário à beira mar, mas sem televisões e com sérias restrições de postura e comportamento – isso mesmo o noivo sendo um rubro-negro apaixonado mas em momento de mostrar maturidade e compromisso com outro amor, ao contrário dos outros 40 milhões de companheiros de sofrimento. Entre eles, eu!
Cheguei puro linho, calça e camisa – o manto sagrado, estilo vintage (década de 70, o 8 de Geraldo Assoviador às costas) guardado numa sacola. Uma rápida sondagem mostrava celulares potentes captando transmissões piratas de Flamengo x River Plate. Vimos os times entrarem em campo (Gabigol bolinando a taça, safado) os times se perfilando… mas aí todas se perderam, sinal cortado, coração partido.
Era nossa hora de se perfilar, para ver a noiva entrar em campo. O noivo à espera num arranjo que parecia um gol – juro, não é delírio, ele no meio daquilo esperando, eu com um olho nele e outro no celular, acompanhando tempo real… Até que apareceu Flamengo 0 x 1 River no alerta do telefone.
Olhei para trás e meus companheiros de torcida encaravam estarrecidos para um tablet que resistia bravamente transmitindo o jogo – com delay. Me recusei a ver, dispensei um fone de ouvido oferecido, me concentrei na cerimônia. Chorei um pouco, misturando emoção e medo, talvez. Mas as porcentagens maiores eram de emoção e empatia: bonito ver um noivo com cara de bobão recebendo a mulher de sua vida. Mas angústia estava lá.
Amigo casado, hora de festa. Flamengo começou o segundo tempo um pouco melhor. O tablet resistia numa mesa e me e recusava a acompanhar por ele, queria estar junto, torcer com delay era vibrar pelo que já aconteceu, energia desperdiçada. Queria jogar junto, carai!
Peguei meu celular, fui para o YouTube e botei na Tupi. A câmera fica no Garotinho e no Apolinho, não tem imagem de jogo, mas é “ao vivo”. Rejeitei definitivamente o tablet. Voltei aos 12 anos, radinho colado no ouvido, com rápidas pausas para checar o semblante cada vez mais preocupado de Washington Rodrigues, o jornalista que rompeu a quarta parede ao ser técnico de seu clube de coração e o decoro ao mergulhar na banheira do vestiário numa comemoração.
O tempo passava e o coração apertado. Estava numa festa, gente e música, muita comida – e alguns torcedores descarados reunidos diante do tablet marcha lenta. Eu já era um pária naquele evento, mas consegui me isolar ainda mais: quando faltavam uns dez minutos para o fim do jogo, me escondi atrás de uma estátua de papagaio (o lugar da festa se chamava “Barraca do Lôro”) e entrei em outra dimensão, a dos meus 12 anos, em 1974, o ano em que mais torci por futebol na vida – o ano do primeiro estadual conquistado na era Zico (ele entrava no time desde 71, mas…) já com Júnior, na época na lateral direita.
Eu regredi, sim. Mas na verdade ia e voltava no tempo, conforme a necessidade apertava. E abraçava todos os credos. Rezei forma convencional, criei algumas orações originais naqueles poucos minutos. Lembrei do meu pai, zagueiro do Flamengo e que me passou tanto amor, pela vida e pelo clube. E do meu filho, hoje um homem de 22 anos e que no título de 2009 “batia” escanteios da arquibancada (ainda) nos jogos mais difíceis. Rezei para os dois, também.
E então aconteceu. No meio da narração confusa e picada, quando já estava quase em lágrimas (“isso não vai ser assim, não pode ser assim”) José Carlos Araújo gritou “goooooooooooooooool do Flamengo”. Surtei, saindo do meu esconderijo aos pulos e esgotando todo os palavrões acumulados em anos de vida pacata e ordeira, para espanto da incrédula turma do tablet, que só “viu” minha profecia mais de 20s depois. Peguei a camisa do Fla da bolsa e coloquei nas costas.
Eu quase foquei de vez na prorrogação, em parte satisfeito e totalmente exausto, já de volta ao meu esconderijo. Mas aí, quando tirei o telefone do ouvido para respirar um pouco, vi o Garotinho se esgoelando e Apolinho COLOCANDO A FAIXA! Gol de novo, milagre realizado e eu novamente sabendo antes de todo o mundo.
Mesmo escaldados, meus colegas de sofrimento voltaram a não acreditar na minha euforia solitária e só vibraram quando a tola objetividade das imagens garantiu que era fato. Eu arranquei do corpo o linho branco e vesti o manto. Campeão. Como se fosse pela primeira vez…
Ps: Só soube que os gols eram do Gabriel um bom tempo depois. Até porque requisito coautoria neles.
Ps1: O noivo vibrou como um louco, tirando dos ombros a “culpa” de trocar o Flamengo pela mãe de seus futuros filhos. A noiva agradeceu que o Flamengo esperasse o fim da cerimônia para marcar seus gols.
Ps2: Sempre fui medium, só nunca desenvolvi, segundo minha mãe.
Ps3: Obrigado, Raoni e Carol (os noivos), pela experiência única e inesquecível.
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