por Rubens Lemos
Quem vê Neymar, não viu o que eu vi. Ou aquilo que só a minha geração teve direito como num efêmero voo de uma gaivota. Se os que endeusam o hábil Neymar pudessem, ainda que por segundos sutis, haver olhado Dener Augusto de Sousa, a concepção de magia seria outra. Muito melhor.
Dener morreu há 26 anos, num 19 de abril. Hoje, faria 50 de idade. Vinha de carona no seu carro que se espatifou contra uma árvore na Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. O cinto de segurança matou Dener por asfixia, logo ele, que liberava pelos seus pés, o ar de graça, estilo e deboche perdidos no futebol de orangotango.
Dunga já mandava na seleção. Era o capitão do time de Parreira, que vetara Dener pela sua irreverência exagerada. Tenho quase certeza de que o dedo de Zagallo funcionou como em outros casos.
Dener, o camisa 10 perfeito para o time campeão de 94 sem um camisa 10 de respeito. No dia seguinte à sua morte, o Brasil jogou contra a França, em Paris. Se fosse convocado, Dener não haveria de passar pela Rodrigo de Freitas naquele fim de madrugada.
Mas a vida não faz concessões ao se. O se é o pequeno rasgo de qualquer sentimento.
De esperança: “Se Deus quiser”, De inveja: “Se eu fosse igual a ele”. De remorso: “Se eu tivesse pensado antes”. De soberba: “Se fosse comigo, tinha sido diferente!” Dener pode ser considerado o se do futebol brasileiro embora tivesse sido, por um tempo mais-que-finito, de verdade.
Driblava com a facilidade que as crianças têm de se enturmar num parque.
Ele era um menino.
Achava o drible mais bonito do que o gol. Surgiu e foi-se ligeiro, porque os bons partem primeiro.
Dias antes do acidente, lá estava eu na arquibancada do estádio Machadão, Natal, ABC x Vasco pela Copa do Brasil. Dener absolutamente inerte, aéreo, longe do jogo. Recebe uma bola pela ponta-direita, em frente à Frasqueira, onde ficava a massa alvinegra. Dener tenta um cruzamento e a bola sai torta, horrível.
Toda a multidão é assustadora e, na cega paixão, comete sua estupidez. A torcida do ABC cobriu de vaias o camisa 10 do Vasco. A cena está aqui, à minha frente, no HD da memória, tanto tempo depois. Dener olha ao povão e levanta a mão mandando que todos esperassem, numa ameaça que deixou o estádio lotado num silêncio fúnebre e premonitório.
No lance seguinte, quase no mesmo lugar, balança diante do volante Júlio e do lateral-esquerdo Jailton. Na ginga, os dois se chocam e ele passa, luminoso, partindo, em quadro belo e assombroso, para cima do capitão Romildo.
Experiente, o zagueiro espera, com instinto de defesa aceso. Dener também está parado. Entre os dois, assustada, a bola. São poucos segundos torturantes. Touro e toureiro. Numa inversão, o touro era franzino, o toureiro, um Hercules de força e pânico.
Dener passa o pé sobre a bola. Romildo parado. Olhos nos olhos. Dener decide fintar para dentro, dando um toque rápido que fez o corpo do marcador se movimentar em sua direção. Dener puxa o freio imaginário, Romildo, gira e lhe dá às costas, sem querer, postando-se como um pêndulo. Suas pernas abrem por um milésimo. Fecham-se quando Dener, já jogara jogado a bola por dentro delas e, à Charles Chaplin, seguiu sorrateiro para chutar na trave.
A torcida do ABC, num aplauso reverencial, me fez provar que é mesmo o futebol a maior expressão cultural da história, porque é acessível a todos. Dener foi mais importante que o jogo e seus 21 figurantes. Ainda no primeiro tempo, driblou os dois volantes do ABC e tabelou na perna esquerda do zagueiro-central
A bola, como uma prostituta apaixonada, abriu-se para o que quisesse fazer. Ele ameaçou bater e o goleiro Marcelo caiu. Ele tocou com classe e fez o seu penúltimo gol na vida.
Dener Augusto de Sousa, o se do futebol, deveria ter nascido Dener Augusto dos Anjos.
Foi um poeta intuitivo, com repentes de ternura e final de tragédia grega.
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