por Paulo Roberto Melo
Segundo o Houaiss, ídolo é pessoa ou coisa intensamente admirada, que é objeto de veneração. O mesmo autor, em seu dicionário, diz ainda que, na tradição judaico-cristã, ídolo é um indivíduo real, uma imagem representativa de uma entidade fantástica, ou a própria entidade, considerados, de maneira equivocada e herética, portadores de atributos divinos – a quem, Dona Cotinha ensinava no catecismo da Paróquia Santo Afonso, na Tijuca, não se deve cultuar, pois divino e perfeito só Deus. Sendo assim, eu, pecador, me confesso: sim, em garoto, eu clamava pelo socorro do meu ídolo, Roberto Dinamite, nas terríveis batalhas travadas na grande área, pela sua bomba milagrosa e indefensável que, a qualquer instante, viria nos redimir.
Bem, é isso. Como acredito que ficou bem claro, no futebol, o meu ídolo sempre foi o Roberto Dinamite. Admirava nele a enorme capacidade que tinha para fazer gols de todas as formas: de cabeça, com ambos os pés, de falta, de pênalti. Seus mais de setecentos gols na carreira falam mais do que minhas pobres palavras.
Considerava admirável nele o fato de muitas vezes fazer, dois, três gols em uma partida. Quando fez cinco gols no Corínthians de Sócrates, Caçapava, Jairo e outros, foi memorável! Mesmo quando o time do Vasco não era bom, era só lançar ou cruzar uma bola para o Roberto, que nascia uma real chance de gol. Em uma época, suas cobranças de faltas eram tão mortais, que me lembro de estar na geral do Maracanã e correr para trás do gol, como nos pênaltis, tal era a certeza de que a bola iria na rede.
Além de tudo isso, admirava no Roberto a sua humildade. Seu constrangimento diante de um microfone ou de uma câmera, dava uma sensação de estar vendo uma boa pessoa, de origem humilde, que havia lutado para estar naquela condição em que se encontrava. Enfim, tudo isso fazia parte da minha admiração.
No dia 8 de maio de 1983, um domingo, eu e a nossa imensa torcida bem feliz, precisávamos mais do que nunca do nosso ídolo. Pelas quartas de final do campeonato brasileiro daquele ano, Vasco e Flamengo disputavam a passagem para a semifinal em dois jogos. O Fla havia vencido o primeiro jogo por 2×1 e naquele dia, jogava o segundo jogo, por um empate ou uma derrota por um gol para se classificar, graças a melhor campanha que possuía. O Vasco para se classificar, precisava ganhar por uma diferença de dois gols.
Meu pai e eu estávamos no Maracanã. O Flamengo ainda contava com a geração mais vencedora de sua história, que, em três anos conquistou três campeonatos brasileiros, uma Taça Libertadores da América e um Mundial de clubes, além de um punhado de estaduais. O Vasco havia se reforçado para esse campeonato. Trouxera Edevaldo (cria do Fluminense, que estava no Internacional), Daniel Gonzalez (do Corínthians), Elói (do América) e contava, claro, com ele, Roberto Dinamite, a explosão do gol.
Jogo disputado, 121 mil pagantes no estádio, um clima de tensão percorria todo o anel da arquibancada, avançava pelas cadeiras azuis e transbordava da geral. No final do primeiro tempo, o Vasco fez 1×0, com Elói. O segundo tempo foi terrível! O Vasco precisava se lançar ao ataque, para fazer o segundo gol, que nos daria a classificação, mas não podia se descuidar. Afinal, era necessária atenção redobrada com Zico, Adílio, Júnior e Baltazar.
Quando tudo parecia se encaminhar para a magra e insuficiente vitória do Vasco, Adílio escapou pela direita e cruzou para Zico tocar para o gol vazio, aos 44 minutos e 40 segundos. Festa na arquibancada do lado do Flamengo e tristeza do lado do Vasco. Enquanto alguns jogadores do Flamengo festejavam o gol do Zico, Andrade prendeu a bola entre os pés, no intuito de retardar o reinício do jogo. Roberto Dinamite, nervoso e esgotado por causa da difícil partida, chutou a bola e os pés do craque rubro negro, sendo imediatamente expulso pelo árbitro Valquir Pimentel.
Foi difícil tirar o Dinamite de campo. Repórteres, policiais, jogadores reservas, comissões técnicas e os intrometidos de plantão invadiram o campo, e a confusão foi geral. Quando enfim retiraram a multidão e o prórpio Roberto saiu de campo, o jogo foi reiniciado. Muitos torcedores do Vasco já haviam deixado o estádio após o gol do Flamengo, mas meu pai e eu havíamos permanecido. Um dos ensinamentos que aprendi com ele foi o de não sair de um estádio antes do apito final de um jogo. Esse ensinamento me proporcionou ver empates e vitórias que pareciam impossíveis.
Naquele dia, não sair antes do apito final, me proporcionou outro ensinamento. Nos acréscimos do jogo, sai do túnel do Vasco um Roberto Dinamite diferente: furioso, sem camisa e sem as chuteiras, só de calção e meiões, invadindo o gramado para agredir o árbitro. Meu pai, eu e a torcida que estava no Maracanã, ficamos de pé, atônitos com aquela cena.
Alguns jogadores do Vasco tentaram segurar o Roberto, sem sucesso. Foi então que, como se estivéssemos num imenso teatro, outra cena aconteceu diante dos nossos olhos: Zico agarrado na cintura e Júnior nas pernas do Dinamite impedindo-o de uma agressão que prejudicaria sua carreira. Não era mais Vasco x Flamengo. Eram companheiros de profissão, eram amigos que a rivalidade não separou.
Enfim conseguiram levar o Roberto de volta para o vestiário, e a partida chegou ao fim. Meu pai e eu voltamos para casa, e a vida seguiu. O Flamengo conquistou seu terceiro título brasileiro, batendo o Santos por 3×0 em um Maracanã abarrotado. Mais tarde, li na revista Placar que, na semana do jogo decisivo contra o Flamengo, Roberto Dinamite tinha recebido o diagnóstico da doença que, um ano depois mataria sua então esposa, Jurema.
Meu ídolo no futebol foi e ainda é o Roberto Dinamite. Um versículo da Bíblia diz que “os ídolos são feitos de ouro, prata, bronze, pedra e madeira.” (Ap 9,20) Naquele domingo de maio de 1983, em um Vasco x Flamengo, com o Maracanã cheio, meu ídolo era de carne, osso, sentimentos e emoções, assim como eu.
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