por André Felipe de Lima
Pelé estava milionário — apesar dos graves problemas financeiros com a Fiolax, indústria de borracha de sua propriedade — e não sabia bem o que fazer na reta final da carreira, ou seja, administraria o tantão de dinheiro que merecidamente conquistou ou permaneceria por mais tempo num gramado jogando bola? Esse dilema pintou na cuca do Rei lá pelos meados de 1975. Já havia se despedido da seleção brasileira e do Santos. Nada mais haveria, em tese, a fazer no futebol. Digo “em tese” porque ao falarmos do “Negão” a saudade da bola era preponderante e vice-versa. Despedir-se dela e ela dele parecia improvável. O fim do Pelé constituía-se em algo que todos neste planeta categoricamente negavam. Afinal, o Rei é eterno e sempre terno com seus súditos. Nunca poderia abandoná-los. Não havia e até hoje não há fronteiras que impeçam de oidolatrarmos. Idiomas, culturas, nuances e salamaleques de cada um em cada canto do mundo jamais impediram que um cidadão — mesmo aquele mais distraído com as coisas do futebol — amasse Pelé. Um destes “distraídos”foi o todo poderoso e não menos controverso Henry Kissinger, então secretário de estado americano naquele ano do dilema “peleniano”, que mandava mais que o próprio presidente dos Estados Unidos, o pouco ou nada carismático Gerald Ford. Kissenger tem em seu currículo um suspeitíssimo Nobel da Paz e a péssima fama de ter idealizado ditaduras na América Latina, no Timor e até o golpe militar no Chile, que matou Salvador Allende. Mas estamos falando do Pelé, e foi por ele que Kissinger clamou. Exatamente no dia 2 de junho de 1975, o chanceler brasileiro Antonio Azeredo da Silveira recebera um telegrama do americano implorando para que convencessem Pelé a aceitar a proposta do New York Cosmos. Kissinger alegava que a permanência de Pelé nos Estados Unidos contribuiria para estreitar as relações entre os dois países, principalmente no campo esportivo. Ele dizia que a ida de Pelé para lá popularizaria o futebol em um país onde reinavam (como é a até hoje) o baseball e o basquete. Um apelo similar de alguém tão poderoso dos Estados Unidos, quase um chefe de estado, para que um jogador estrangeiro defendesse um clube de seu país é algo que, humildemente confesso, ignorava. Kissinger “convocar” Pelé é algo quase inverossímil. Mas Pelé é Rei, é fora de qualquer lógica futebolística. Com ele, tudo poderia acontecer, como guerras cessarem e o relógio parar.
Obviamente, a imagem de mítico jogadorbrasileiro estava sendo explorada por um marketing político descarado. O Brasil vivia um período dos mais dolorosos e cruéis da ditadura militar. O mesmo acontecia no Chile desde 1973 e estava prestes a emergir na Argentina. Para o plano de supremacia americana na América Latina, ter Pelé defendendo um clube de Nova York era perfeito. O fato é que Azeredo tratou de entrar imediatamente em contato com Pelé para comunicar o apelo do secretário de estado americano que mais soaria como ordem:
“Tenho o prazer de comunicar-lhe que recebi mensagem do secretário de estado norte-americano, Henry Kissinger manifestando seu interesse pessoal em que possam chegar a bom termo as tentativas entre o Cosmos Clube e V.Sa. para a sua contratação pela equipe de Nova Iorque. Caso V.Sa. decida firmar aquele contrato, estou seguro de que sua permanência nos Estados Unidos contribuirá de forma muito significativa para uma aproximação brasileiro-norte-americana no campo esportivo. Cordiais saudações. AntonioAzeredo da Silveira, ministro de estado das Relações Exteriores.”
Alguns dias após Kissinger pedir ao Rei para aceitar a proposta do clube americano, o Cosmos, no dia 10 de junho, informou oficialmente que Pelé assinara um contrato de três anos, confirmando as especulações da imprensa e até mesmo por parte de Pelé de que estava tudo certo entre ele o clube antes mesmo do telegrama de Kissinger.
O acordo com os gringos permitiu ao Rei matardois coelhos com uma cajadada só. Ele manteve-se perto da sua bola de futebol, rolando-a nas gramas sintéticas de estádios de basebol adaptados para o bom e violento esporte bretão, e de quebra engordou ainda mais sua já parruda conta bancária com estratosféricos salários em dólares que o tornaram o mais bem pago atleta do planeta na ocasião.
A relação de Pelé com a turma da Casa Branca era mais estreita do que se supõe. Recentemente, a CIA revelou documentos que provam que Kissinger promovera um encontro de Pelé com Ford e o conselheiro de segurança nacional Brent Scowcroft dias após o envio do telex ao chanceler brasileiro. Seria aquela a segunda ida de Pelé ao famoso salão oval da Casa Branca. Richard Nixon, antecessor de Ford, recebera o jogador em 1973.
O marketing politico estava consumado. Pelé e Kissinger se tornaram chapas, como vários registros fotográficos apontam em uma breve pesquisa em algum software de busca na internet. Enquanto isso, por aqui, o país andava para trás, e Kissinger tinha um dos dedos (ou mesmo a mão inteira) nesse plano político sórdido na contramão dos direitos humanos. Seria mera semelhança vivermos resquícios disso hoje no Brasil? A despeito da especulação política o pior de tudo é que não temos sequer um craque com pelo menos um por cento do Pelé para fazer farol no exterior. Vivemos a decadência total. O país, a política e o futebol.
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