por Cesar Oliveira
Para Guy Câmara e Nelson Lima, tricolores de coração.
Neeeeeeeeeeeense!… Neeeeeeeeeeeense!…
O grito apaixonado ecoava pelos ares da Rua Álvaro Chaves, no bairro das Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro, bem em frente à sede do aristocrático Fluminense Football Club, a ponto de chamar a atenção das pessoas que estavam nas lotadas arquibancadas do estádio, e olhavam para cima.
Afinal, era um Fluminense x Grêmio, pela primeira fase do Campeonato Brasileiro de 1991. E a torcida lotava o velho estadinho naquele dia 3 de março para ver o Fluminense derrotar os gaúchos pelo placar de 2×0, com dois gols do Super Ézio e belos passes do baiano Bobô.
Sentado na tribuna de imprensa do Estádio Manoel Schwarz, o veterano repórter do Jornal do Brasil, Oldemário Touguinhó (1935-2003), um dos mais importantes e respeitados de sua época, não entendia de onde vinham aqueles desbragados berros de torcedor. Por que as pessoas estavam olhando para cima?
Mas por que o Fluminense jogava nas Laranjeiras, depois de tanto tempo? É que o falecido Maracanã estava interditado para uma daquelas “obras” que, agora, a gente sabe para que serviam… Mas isso é papo para uma futura coluna (mas apenas se o Museu da Pelada me garantir um advogado pra me defender dos processos…).
A HISTÓRIA DO CAMPO DO FLUMINENSE
O campo fora inaugurado oficialmente em 1904, na então Rua Guanabara, com o campo no sentido longitudinal à rua que hoje se chama Pinheiro Machado. Foi mandada construir uma pequena arquibancada de madeira e, então, cobrados os primeiros ingressos de uma partida de futebol.
Em 1905, Eduardo Guinle – de tradicional família da elite financeira e social carioca desde a primeira década do século XX, fundadora da Docas de Santos e dona do Copacabana Palace Hotel – construiu, por sua conta, a primeira arquibancada de concreto em campos de futebol do Rio de Janeiro.
O estádio foi ampliado para o Sul-Americano daquele ano, vencido pelo Brasil, com o histórico gol de Arthur Friedenreich (1892-1969) que motivou a criação do chorinho “1×0”, de “Pixinguinha” (Alfredo da Rocha Viana Filho – 1897-1973) e do macaense Benedito Lacerda (1903-1958). No jogo da reinauguração, pelo Sul-Americano de 1919, o Brasil venceu o Chile por 6×0, sendo de Fried o primeiro gol do novo estádio.
A configuração do campo mudou em 1961, quando todo um anel, em uma faixa de terreno situada na Pinheiro Machado, foi demolido para a construção do sistema de tráfego do Túnel Santa Bárbara e duplicação da Rua Pinheiro Machado.
Isso aconteceu, depois de dois anos de entendimentos, iniciados com a Prefeitura do antigo Distrito Federal, e foram concluídos com o Governo do então Estado da Guanabara. O Fluminense teve então parte de seu terreno desapropriado, recebendo quase Cr$50 milhões e mais as áreas remanescentes dos terrenos da esquina das ruas Álvaro Chaves e Pinheiro Machado, no valor de Cr$31 milhões.
A IMPORTÂNCIA DAS LARANJEIRAS
Antes da existência de São Januário, o campo do CR Vasco da Gama (inaugurado em abril de 1927) e do Maracanã (construído para a Copa de 1950), o Estádio do Fluminense era o campo de futebol do Rio de Janeiro.
Nele, foram decididos 14 títulos de Campeonatos Cariocas, e dois títulos da Copa América, entre outros títulos importantes. Lá foram realizados também os Jogos Olímpicos Latino-Americanos em 1922. Foi o primeiro estádio do Brasil especialmente construído para grandes espetáculos.
No primeiro jogo ali, o Fluminense goleou o Paysandu Cricket por 7 a 1, no dia 3 de maio de 1906. Desse jogo, registra-se o primeiro gol contra de um Campeonato Carioca, marcado por W. Murray (do Paysandu), contra as suas próprias redes.
O Jornal do Brasil registrou:
“Inaugurou-se hontem como o grande meeting, a estação de football. A concurrência de circunstantes foi numerosa, podendo-se calcular em 1.000 pessoas. As amplas e elegantes archibancadas encheram-se au grand complet, e em todos notava-se muito interesse pelo match. O Fluminense fez-se representar por um team de respeito. Foi elle o vencedor do primeiro match, por sete golos a um”.
Hoje, o estádio do Fluminense abriga alguns treinamentos do time profissional, e comporta apenas oito mil pessoas. Em 1919, comportava 18 mil pessoas; em 1922, 25 mil. O recorde de público — 25.718 pessoas — é do Fla-Flu do primeiro turno do Carioca de 1925, com vitória do Fluminense por 3 a 1.
MAS… E O TORCEDOR QUE INCOMODAVA OLDEMÁRIO TOUGUINHÓ?
Eu lhes conto agora, senhoras e senhores: era meu tio Guy Câmara (1931-2002), desbragado torcedor do Fluminense, carioca do bairro da Saúde, casado com tia Sonia, irmã de minha mãe.
Tio Guy era um tremendo sacana, gostava de goró e crianças, e – quando eu era criança – se juntava aos meus outros tios, já marmanjos e até casados, na casa da vovó Hilda e vovô Nelson (outro tricolor…) para soltar pipa e cruzar à vera.
Meus avós maternos moravam numa vila que costeia uma colina na Rua Caminho do Mateus, no bairro da Abolição, subúrbio do Rio de Janeiro, o que lhes permitia ter uma visão da “baixada” lá embaixo (onde havia um campo de pelada, que lotava nos finais de semana) e passar o rodo nas pipas dos incautos, debicando de repente, com velocidade.
Impressionava que eles passavam cerol em um carretel “dos grandes” de linha 10 – já com a pipa no ar, em trabalho colaborativo – e, só depois, emendavam outro carretel. Era quase um quilômetro de linha, e iam cruzar em lugares que a nós, crianças, era impossível ver, tamanha a distância.
UM ACIDENTE DE CARRO MUDA NOSSAS VIDAS
Em 1964, Tio Guy dirigia um Gordini que foi fechado numa curva perigosa da Avenida Edson Passos, no Alto da Boa Vista, na Zona Norte do Rio de Janeiro, sofrendo grave acidente que vitimou fatalmente três membros de nossa família: meu tio Nelson Lima Jr. (fanático rubro-negro, casado com Marily, irmã de Guy) e minhas primas Márcia Maria (8 anos, filha dele) e Kátia Regina (4 anos, filha de Nelson e Marily). Depois disso, ele nunca mais foi o mesmo. Sempre teve, contudo, o desejo de “ficar perto” do seu Tricolor.
Então, um dia, com a aposentadoria pelo Banco do Brasil, onde fora funcionário por décadas, realizou o acalentado desejo: comprou um apartamento na Rua Álvaro Chaves, 44, bem em frente à portaria do Clube. Antes, morava num apê na mesma rua, mas de fundos. Ele não descansou enquanto não arrumou um bem de frente pro lendário gramado.
Por conta das dificuldades de locomoção, uma das sequelas o acidente, Tio Guy ficava na janela do apartamento 902, vendo treinos e jogos do seu tricolor. Sempre com uma bandeirinha tricolor, e sempre se manifestando – aos berros! – lá de cima.
E foi isso que chamou a atenção do Oldemário que, seguindo o faro que o fez lendário na profissão, fotografou o “maluco tricolor” daqui de baixo e foi atrás da história: tocou o interfone, se identificou e subiu para conhecer a história daquele fanático torcedor.
Vibrando com a vitória do Tricolor, Tio Guy e, com ele, num programa familiar de domingo, meu primo Márcio Marcio, engenheiro, que morava no Largo do Machado, mas fazia questão de ir até a casa do “velho” para, com ele, assistir os jogos.
Hoje, meu Tio Guy vibra com o Fluminense ao lado do meu avô Nelson Lima, do Nelson Rodrigues, do Sobrenatural de Almeida e do Benício. E Mário Márcio, casado com Laura Regina e pai de Michel, preserva as lembranças tricolores do pai, que “contaminaram” a banda tricolor da família.
VEJA OS GOLS DA VITÓRIA TRICOLOR EM 1991 SOBRE O GRÊMIO
UM LIVRO DIFERENTE SOBRE O ESTÁDIO
Existe um ótimo livro online sobre o estádio, chamado “Estádio das Laranjeiras – Monumento Nacional”, que é “um projeto cultural de acesso livre e sem fins lucrativos” de Eduardo Coelho. O conteúdo e o design editorial são de autoria de Nelson Moreira e Luiza Silva.
Veja em https://pt.slideshare.net/luizasilva/estadio-laranjeiras-monumento-nacional
ALDEIA GLOBAL DO FUTEBOL
Buscava informações sobre esse encontro do Tio Guy com o Oldemário, e falei com minha prima Claudia Naíra, filha dele.
Ao mesmo tempo, pedi que o meu amigo Alexandre Mesquita, pesquisador vascaíno e fuçador de papeladas futebolísticas, também me ajudasse. Acabamos descobrindo que um tio do Alexandre – de nome Camillo – foi um dos maiores amigos do Tio Guy, era igualmente tricolor e foi várias vezes à “Arena Guy Câmara” ver o Fluminense de cima… Mundo pequeno!…
E quem me proporcionou recuperar no acervo do velho e bom Jornal do Brasil, a matéria e as informações para este texto, foi o professor e pesquisador tricolor Sergio Trigo, 44 anos, servidor público federal, autor de importantes livros sobre o seu Fluminense: “A verdadeira máquina tricolor” (iVentura, 2011) e “Bíblia do Fluminense” (Prime Books, 2014).
Por incrível que pareça, Sergio é amigo do meu primo Márcio Marcio…
Mundo pequeno é pouco!
AUXÍLIO LUXUOSO
“História dos Campeonatos Cariocas de Futebol –1906/2010”, de Roberto Assaf e Clovis Martins (Maquinaria, 2010)
“O livro das datas do futebol”, de Rodolfo M. Rodrigues (Panda Books, 2004)
Árvore Genealógica da “Família Lima Oliveira”, hospedada no site My Heritage
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