por Bruno Sentone
Ao contrário de Marielle Franco, Christine não foi assassinada. Tampouco sua morte em decorrência de um câncer foi mundialmente noticiada. Por estes fatores e, até mesmo, por ter falecido no Natal (de 2015), quando as notícias costumam ser mais agradáveis, Christine Valette, talvez, possa não ser um nome tão conhecido, quem dirá popular, quanto deveria. Isto porque Christine foi porta-voz e uma das principais líderes da primeira ultra do Olympique de Marselha, chamada Commando Ultra ’84. Porém, sua morte comoveu, inclusive, torcidas rivais, como do Bordeaux – dentre tantos outros clubes europeus -, pelas quais era muito respeitada e admirada.
Agora, você deve estar se perguntando: “tá, mas o que há de mais em tudo isso?”. E eu respondo com outro questionamento: quantas mulheres que você conhece e que são líderes de alguma torcida organizada? Christine esteve à frente da ultra desde 1984, ano de sua fundação. Se, hoje, o futebol, como um todo, ainda é um ambiente majoritariamente masculino, imagine, então, na década de 80.
Atualmente, o estádio do OM, Vélodrome, recebe um notável público feminino para acompanhar os jogos do Olympique. Com certeza, isto também deve-se, e muito, à figura de Christine. Todavia, pode haver outros motivos: ao longo dos seus pouco mais de 35 anos de existência, o CU ’84 adotou um caráter antifascista, antirracista e, de certa forma, feminista (bem representado por Christine); e mais uma razão importante e que, sem dúvida, incentiva o apoio massivo das mulheres nas arquibancadas do Stade Vélodrome é a dedicação do clube para com o time feminino do OM. Em termos de estrutura, desde sua recriação em 2011, a equipe segue em constante evolução. A exemplo do rival Lyon – um caso de sucesso no futebol feminino dos últimos anos -, o Olympique tenta oferecer às mulheres as mesmas condições de trabalho dos homens. A paridade salarial, no entanto, continua sendo um tabu (não exclusivo do OM, mas, sim, global).
Normalmente, os ultras são anônimos, seus nomes raramente são divulgados e poucos são aqueles que possuem algum status especial ou papel, de fato, relevante dentro do clube. Não foi este o caso de Christine Valette, que faleceu aos 43 anos, ou seja, influente no Olympique desde criança, quando ainda só tinha apenas 12 anos de idade. Até hoje, quase 5 anos após sua morte, seu nome segue sendo lembrado e homenageado em cada partida do OM e também por torcidas aliadas, como do Sampdoria.
Assim como Christine participou do início do movimento ultra na França, igualmente, colaborou para que o mesmo se fortalecesse na Itália. O Commando Ultra ’84 esteve presente em Gênova, no dia 4 de Janeiro de 1987, para assistir Sampdoria x Roma e conferir de perto a Ultras Tito Cucchiaroni, cuja Europa inteira estava comentando na época. Tratava-se da precursora do movimento ultra no país italiano. Ali, logo, formou-se uma grande e duradoura amizade.
Mais tarde, uma segunda organizada do Sampdoria, chamada Rude Boys, foi convidada a unir-se às duas e, a partir de então, o CU ’84 passou a viajar para Gênova, praticamente, todo final de semana, a fim de encontrar-se com as ultras amigas. As três eram associadas aos dois clubes e frequentavam ambas arquibancadas, carregando consigo suas respectivas faixas e bandeiras.
Portanto, hoje em dia, o Commando Ultra ’84 orgulha-se em dizer que conhece tudo a respeito das torcidas italianas. Afinal, não somente viu tudo acontecer com seus próprios olhos, como ainda envolveu-se diretamente, contribuindo para com a troca de experiências e, principalmente, com seu apoio diligente.
Christine Valette foi a principal responsável pelo êxito da aliança entre o CU ’84 e a Ultras Tito. Ao mesmo tempo em que a ultra francesa aprendeu muito com seus companheiros italianos – com, pelo menos, 15 anos a mais de existência (1969) -, Christine conseguiu aplicar sua ideologia igualitária em mais uma torcida. Não à toa, algum tempo depois, o Rude Boys acrescentou & Girls 1987 ao seu nome.
Desde jovem, Christine entregou-se de corpo e alma àquilo que acreditava ser correto. Foram cerca de 30 anos de comprometimento e dedicação com os menos (ou nada) favorecidos, brigando por justiça, ainda que fosse uma pacifista, famosa por sua calma e serenidade. Seus esforços ultrapassavam o universo da bola e Christine também ajudava desabrigados da melhor forma que podia. Após ficar sabendo da sua doença, isto não a impediu de manter suas atividades, com a mesma vontade e bondade de sempre.
Mesmo que o Commando Ultra ’84 recorde, em cada jogo do Olympique de Marselha, que Christine continua presente, seja com homenagens, cantando e/ou vibrando por ela, ainda é pouco. Não digo por parte dos adeptos do OM, mas, sim, sobre o reconhecimento de Valette. Nossa sociedade está habituada em reproduzir que “futebol não é lugar de mulher”. E, neste ambiente hostil, uma menina de 12 anos de idade conquistou seu espaço e provou, para dois países tradicionalmente conservadores, justamente o contrário. O legado de Christine não pode limitar-se à França e Itália; deve ser enaltecido para além do continente europeu.
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